quarta-feira, outubro 27, 2004

Génios, Quimeras e Abismos

O postal que se segue não é recomendável a almas sensíveis. É iconoclastia da grossa. Aos leitores mais ousados que, mesmo depois do aviso, persistam em fazer a viagem, recomenda-se que apertam os cintos de segurança, desliguem os telemóveis e retirem os antolhos durante o mergulho. O abismo é para ser visto com a plenitude da visão. Para se descontrairem, à medida que aquecem os reactores, comecem por tentar adivinhar, conforme vão lendo, o autor da pólvora que em seguida se transcreve...
O Dragão deseja-vos uma boa viagem.

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Os que querem um Portugal honesto, feliz, rico e honrado, querem a negação da acção civilizacional portuguesa, querem que desçamos ao burguesismo nacional duma pseudo-nação como a Suiça ou a Bélgica, querem que abandonemos o nosso grande papel na construção do novo mundo, que abdiquemos de realizar em espírito aquilo que realizámos outrora em corpo – o alargamento do mundo e a descoberta de novas terras, de novos mares, de novos céus. Mais alta é a missão portuguesa do que tudo quanto pode sugerir a barriga dos portugueses, nessa pervertida teoria política que toda a chusma de traidores e de idiotas que são os nossos políticos e os nossos jornalistas querem impôr a Portugal. Mais alta é a obra, e ela, a ser feita, terá de ser feita, terá de ser feita quebrando aos pés toda a longa podridão humanitária, democrática, organizando uma aristocracia forte, dominando completamente a nossa plebe ineficaz salvo escravizada. (...)
Criar em Portugal o sentimento duma missão civilizadora! Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?
Grande e difícil é a obra! Grande e difícil o varrer dos ideiais democráticos, humanitários e utilitários. Mas a grande obra anti-cristã (anti-cristã em tudo, anti-democrática, anti-católica, anti-monárquica) deve ser feita. Tristes de nós se faltarmos à missão divina que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa e tais nos fez quais somos, nos impôs quando nos deu este nosso acesso e trancendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas.
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- Fernando Pessoa, “Páginas de Sociologia Política”

Imaginem que o maior poeta português era vivo e escrevia num blogue. Talvez se chamasse “Heteronimia”, “Heterografia”, ou coisa que o valesse. Imaginem que ele postava o texto em epígrafe. Calculem a gritaria, o alarido que se não levantava: Nazi! Nazi!! Estou em crer que a “esquerda lacoste” levantaria barricadas; a “esquerda pink”, lavraria protestos e apelaria ao índex. A direita quéque faria coro com e “esquerda pink”, clamando “nada de confusões, somos democratas”. O PR faria uma das suas redondas alocuções ao país. Em suma: chovia granizo, chuva zangada de todo o lado. Disparando em todas as direcções, o poeta da “Mensagem” tornava-se alvo de todas as partes.
E, todavia, o homem era um génio. Um daqueles raros que visitaram aqui o rincão. Como explicar esta tempestade furiosa? Habitava um monstro dentro dele? Um psicopata? Na sua múltipla personalidade estava incluído um Adolfo qualquer coisa? Acometiam-no delírios em que se fantasiava de tirano louco subjugando uma Europa fumegante, em escombros, a seus pés?
Verificado tão tenebroso depoimento, atestados os seus ignóbeis propósitos anti-democráticos – saliento: mais anti-democrático é difícil! – deviam ser as suas ossadas despejadas dos Jerónimos e substituídos pela dona Amália? Deviam ser os seus livros proibidos e varridos para fora das livrarias e bibliotecas? Devia ser o seu nome lançado ao opróbrio e a sua efígie queimada em praça pública? As ruas e alamedas com o seu nome deviam ser rebaptizadas? O quê?...
Enquanto as autoridades ponderam e cozinham a sentença, eu ouso ir divagando o seguinte:
É evidente que o nosso Fernando andara a ler Nietzsche. Ora, os efeitos inebriantes do filósofo alemão são por demais conhecidos, eu que o diga. É, pois, um Fernando Pessoa alterado, fora de si, heteroposto, que se imagina correndo a saloiada cá do bairro a pontapé e à metralha por amor duma louvável quimera que, num instante fugaz, o desinquietou. Não é que eu próprio, às vezes, não comungue de sonhos desses; simplesmente, uma coisa é a ficção, a fantasia filosófica, outra, bem diversa, é a realidadezinha e o “malhão, malhão”. Dir-me-ão: pífia justificativa, ó Dragão! E se algum exaltado avulso, desses símios de imitação que não podem ver ideia nenhuma que não queiram logo macaqueá-la, desata a exercitar-se nesses propósitos pelas avenidas?...Sim, o que vai ser das pessoas que forem por ali a passar?!...”
Concedo que a justificação não é das melhores. De facto, metralhar as ruas em tese, nada tem que ver com metralhá-las em sede própria. Não muito tempo depois do nosso Fernando ter escrito isto, houve até uns folgazões de gosto mais que duvidoso que sonegaram as metralhadoras da tese e foram experimentá-las na rua. Os resultados foram trágicos. Ora, isso é tão aberrante como pegar nas metralhadoras da rua e ir metralhar na tese; ou então chamar os polícias de ronda, para virem com os cassetetes da rua bater ao filósofo por causa da tese. (Tudo isto, nunca esquecendo que colocar uma tese explosiva nas mãos dum macaco é tão perigoso como colocar uma granada, admito-o).
Mas continuo na minha: o que era mesmo importante, higiénico, edificante era que, como dizia Baudelaire, se deixasse a cada qual a sua quimera. Que deixássemos de meter o naríz nas quimeras dos outros, e as quimeras dos outros na nossa cabeça. Não são inalações que se recomendem, sem as devidas precauções. Apreciemo-las, por cortesia, ou por fruição artísticas. Ninguém pode dizer que “Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?”, não é bonito, mesmo sublime, enquanto literatura. Eu, pelo menos, não digo.
E mais sublime ainda se pensarmos nos efeitos devastadores que seguramente causará nas carinhas sonsas dos filisteus cá do burgo. Mas livrem-se de atrelar ficção tão garbosa à carroça trafulha da política: perde-se a genialidade e não se logra benefício nenhum. Pelo contrário, garimpa-se imundície pegada.
Por conseguinte, e em conclusão: Respeitemos os desabafos e telhas dos génios, pois é um direito exclusivo que lhes assiste. Guardemo-nos de interferir com eles, quando passeiam entre as nuvens o bando trovejante das suas quimeras. Velemos-lhes as jornadas, mas devidamente abrigados dos seus raios, sempre prontos a fulminar o basbaque incauto.
Quanto aos coletes de forças, coleiras, trelas e açaimes que a prudência recomenda, são arreios, na verdade, indispensáveis, não aos génios, seres inexpugnáveis por natureza, mas aos políticos, essa matilha acéfala, tumultuosa, que em tempo ou modo algum convém ser deixada à solta!... Para que, sobretudo, não conspurque nem perturbe com as suas badalhoquices e macacadas – nem, pior ainda, armadilhe de porcarias – a digressão nefelibata dos outros.

E quando, em dias de festa, virdes o povo entusiasmado, atrás dos políticos, em animadas e turbulentas caçadas, desviai-vos para bem longe. O povo tem uma tara: perseguir desilusões.
(Espero que tenham feito uma boa viagem. Que o serviço tenha sido do vosso agrado e voltem a voar brevemente nas nossas linhas aéreas!...)


11 comentários:

  1. “O povo tem uma tara: perseguir desilusões” .Se calhar na proporção directa do gosto de venda de esperanças, não ?
    Pois é meu caro Dragão... Nunca encontrei grande genialidade no Pessoa fora da poesia e veja mais maçonaria ao gosto da época que Nietzsche nessas tiradas grandiloquentes da imortalidade da alma pátria. Mas tens razão: um macaco de acção munido de teoria é uma coisa muito mais perigosa... tem sempre um espírito de mercador maior que o artista, sente sempre a necessidade de a vender a bem ou a mal.

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  2. Pois, muito certo...Mas, não obstante...

    «AH! A selvajaria desta selvajaria! Merda
    Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disso!
    Eu pr’áqui engenheiro, prático á força, sensível a tudo!
    Pr’àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
    Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
    Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
    Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!

    Arre! Por não poder agir d’acordo com o meu delírio!
    Arre! Por andar sempre agarrado às saias da civilização!
    Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
    Moços de esquina –todos nós os somos – do humanitarismo moderno!
    Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
    Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
    Com a alma como uma galinha presa por uma perna!»
    - in Ode Marítima

    E, de facto, é Nietzsche, mal digerido é certo, mas Nietzsche, do "Anticristão", da "Gaia CIência"... Que se foda a maçonaria. De resto eu posto-te aí textos sobre a República, essa invenção maçónica, onde essas teses pró-maçónicas vão por água abaixo.
    O Pessoa tinha aqueles arrufos pelo ocultismo, mas a ideia que ele cultivava do 5ºImpério era sui-generis.
    O Pessoa da prosa, quanto a mim, é o poeta de sempre. Não vejo como é que fazes essa cisão bom/mau. Vê lá se ultrapassas isso, ó Zazie!...:O))
    Não se trata de concordar com ele, trata-se de admirar a pirotecnia. Em Portugal nunca houve nenhuma que lhe chegasse aos calcanhares.

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  3. Só tu para me fazeres pensar nestas coisas... pois é, admirar a pirotecnia sempre admirei mas porque motivo nunca a tomei como grande pensamento é que é uma boa pergunta. Não é nada disso de ultrapassar o que é bom do que é mau. Acho que a história também em acontece um pouco com o Nietzsche, por isso também estive para te dizer que acerca do Nietzsche há coisas em percebo o Jorge Luís Borges quando dizia que lhe desagradava o tom... É um pouco isso, gosto muito da Gaia Ciência, mas no Anti-Cristo há por lá muita pirotécnica que sempre me pareceu funcionar mais pelo embrulho que pela profundidade de pensamento.
    Bem, mas com o Pessoa e o 5º Império e tudo o resto o meu problema é outro. É que pego nessas coisas no original, ali no tempo do D. Manuel e até de outras dos resi Católicos e são uma delícia. Ando até às voltas com umas coisas que nem são conhecidas e que mostram essas crenças em toda o esplendor da ingenuidade e credulidade do olhar da época. Agora no tempo do Pessoa a coisa parece-me tão postiça, tão bacoquinha... E ainda por cima é apresentada sem espírito crítico, tudo aquilo é discurso apologético á laia de novidade e descoberta como se fosse a primeira vez...
    Pode ser este o meu problema de nunca ter dado grande reparo ao que o Pessoa dizia, tirando o brilho e beleza da pirotecnia misturada com cabalísticas e esoterismos um tanto descabelados...

    Mas ainda bem que fizeste o reparo que se não fosses tu ninguém me lembrava essa história a que nunca dei grande atenção...

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  4. Bem, ó Zazie, prezo muito que me visites. Fica atenta. Vamos lá a ver se consigo demonstrar-te que o Pessoa (como o Nietzsche, nesse opúsculo problemático que referes), ao contrário de "postiço", até é duma profundidade abissal.
    Não quer dizer que eu seja detentor da verdade, não tenho essa presunção, mas expor-te-ei proximamente, com honras de postal, o 5º Império do Pessoa, tal qual eu o concebo.
    Já agora, a título de curiosidade, ainda me lembro, logo a seguir ao 25 de Abril, quando o Pessoa era personna non grata da "revolução". Estava no índex dos Liceus. na altura, quando ainda era praticamente um desconhecido, e ainda ninguém enchia a barriga de Pessoa, como outrora encheu de Camões, berrei, parti a loiça, escrevi e fui apupado. Ironias...

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  5. ironias, é verdade...
    então fico à espera que a honra e o prazer é todo meu ";O))

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  6. Em relação às filosofias, perante a minha ignorância dos nomes dos seus cultores, tento fazer a minha, caminhando na minha senda, de hábito de burel intelectual, à espera da côdeazinha que vou granjeando aqui e ali. É pouco alimento, a côdea; mas tem sido substancial para perceber que as iguarias têm que ser cozinhadas por nós mesmos. Ninguém consegue ensinar muito seja a quem for. Mas aprende-se um pouco, talvez mesmo pouco, ao ler; ao ver; ao ouvir e ao observar. É isso que me importa.

    O Pessoa ante 25A, aprendia-o nas imagens da gabardina esvoaçante no Chiado com óculos redondos em moldura pequena.
    Aprendi-o no quadro de Almada, imitação da arte surgida em Paris e que sintetizava o movimento mensageiro com a cor do vermelho e negro.
    COntudo, parece-me que havia uma insituição que se importava com o Pessoa: a Gulbenkian! Durante anos a fio, nos sessentas, o boletim informativo que se distribuia com os livros que costumavam emprestar a alunos das escolas primárias, trazidos em carrinhas Citroên de chapa ondulada, trazia artigos sobre a obra do Poeta.

    COmo disse, sou um diletante de burel intelectualmente grosseiro e apenas reivindico uma côdea de informação, onde quer que a veja. A curiosidade mata-me sempre o desejo de prosseguir no caminho das iguarias que se anunciam a quem sabe perserverar na senda do conhecimento. Eu perco-me sempre nos atalhos. Sempre.

    Por isso, vejo agora mais uma talho e já sinto vontade do o espreitar: bota lá a tua ideia sobre o Quinto dos Impérios que estou curioso!

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  7. Gulbenkian e as revistas. A Comtemporânea que já o meu avô coleccionava e que ainda tenho por cá publicava-o bem!

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  8. e o António Ferro foi iresponsável por muita coisa...

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  9. Por algum motivo foi depois colocado no índex...

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  10. pois, e se calhar aí é que foi irresponsável, que estupidez, queria escrever responsável por isso.

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