quarta-feira, outubro 20, 2004

A Metamorfose

Com o patrocínio de Franz Kafka e deste vosso humilde criado, aqui fica uma minuta que podereis utilizar para o personagem da vossa preferência. Significa isto que o nome do herói do pequeno conto é permutável: podeis substitui-lo por vários outros, a vosso gosto (eu sei que existem), que o texto não perderá sentido nem actualidade.

Quando Luís Delgado despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de animal: um homem.
Levantou-se, no singelo par de pernas, duma grossura espantosa, e, meneando um pouco a cabeça, constatou que o equipava agora uma coluna vertebral, bem como ossos e articulações por todo o corpo. Horrorizado, tentou deslizar viscosamente pelo quarto, como sempre fizera, mas só logrou espalhar-se ao comprido no tapete. Experimentou readquirir aquele teor celular gelatinoso, que tanto jeito lhe dava para se moldar e adaptar a qualquer circunstância ou conjuntura, mas em vão. Ao tentar exfiltrar-se sob a frincha da porta, à maneira dos moluscos, esbarrou com a cabeça teimosamente rígida contra a madeira impenetrável. Por mais que se contorcesse e contraísse, em busca das faculdades de larva ou lesma de outras épocas, o corpo, desajeitado, aprisionado naquele vil invólucro de mamífero superior, não respondia. Em desespero, tentou grudar-se à parede, de modo a amarinhar ao tecto, onde repousaria supenso em meditação, tentando congeminar uma solução para o ignóbil transtorno. Mas mesmo esse seu local predilecto, onde costumava exercitar o pensamento e alcançar as maiores inspirações, lhe estava agora inacessível.
Defronte do espelho, passou do horror à repugnância impotente. Em vez daquela baba peganhenta e esbranquiçada que tanta distinção ainda no dia anterior lhe conferia e lhe granjeara uma carreira triunfante e ascensional, coroavam-no agora cabelos ligeiramente mais finos e espetados que os dos macacos. Uma carantonha nojenta, com dois olhos descomunais e uma penca protuberante, fitava-o, hórrida, e adquiria, em simultaneo, uma cor lívida de suprema angústia. Delgado, munido subitamente dum pesadíssimo e complexo cérebro, com turbilhões de sinapses e neurónios, conseguia pela primeira vez arquitectar uma ideia e esta, para adensar o pesadelo, coincidia com um prognóstico: o de um futuro catastrófico e sombrio, em que a despromoção, o desemprego e o opróbrio lhes estavam reservados, caso não recuperasse urgentemente a sua forma natural de insecto. Escorraçá-lo-iam certamente como ao mais infame e repulsivo dos seres. Mal o imaginassem vertebrado, vertical, bani-lo-iam e ostracizá-lo-iam sem dó nem piedade, como a uma coisa obsoleta e inútil. Engoliu em seco. Um suor gélido começou a descer-lhe pelas costas, ao longo da coluna recente. Pior: como uma desgraça nunca vem só, juntamente com as vértebras experimentava doravante sentimentos, pelo que grossas gotículas salgadas, soltando-se dos olhos, inauguravam sulcos pelas asquerosas faces abaixo...Transformado num ser humano, num reles e insignificante ser humano, Luís Delgado encheu-se duma grande pena de si próprio.
E, contudo, pela primeira vez também na sua miserável vida, uma análise e previsão suas estavam rigorosamente certas.

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