«E as almas, à medida que chegavam, pareciam vir de uma longa travessia e regozijavam-se por irem para o prado acampar, como se fosse uma panegíria; as que se conheciam, cumprimentavam-se mutuamente, e as que vinham da terra faziam perguntas às outras, sobre o que se passava no além, e as que vinham do céu, sobre o que sucedia na terra. Umas, a gemer e a chorar, recordavam quantos e quais sofrimentos haviam suportado e visto na sua viagem por baixo da terra, viagem essa que durava mil anos, ao passo que outras, as que vinham do céu, contavam as suas deliciosas experiências e visões de uma beleza indescritível. referir todos os pormenores seria, ó Gláucon, tarefa para muito tempo. Mas o essencial dizia ele que era o que se segue. Fossem quais fossem as injustiças cometidas e as pessoas prejudicadas, pagavam a pena de tudo isso sucessivamente, dez vezes por cada uma, quer dizer, uma vez em cada cem anos, sendo esta a duração da vida humana - a fim de pagarem, decuplicando-a, a pena do crime; por exemplo, quem fosse culpado da morte de muita gente, por ter traído Estados ou exércitos e os ter lançado na escravatura, ou por ser responsável por qualquer outro malefício, por cada um desses crimes suportava padecimentos a decuplicar; e, inversamente, se tivesse praticado boas acções e tivesse sido justo e piedoso, recebia recompensas na mesma proporção. Sobre os que morreram logo a seguir ao nascimento e os que viveram pouco tempo, dava outras informsações que não vale a pena lembrar. Em relação à impiedade ou piedade para com os deuses e para com os pais, e crimes de homicídio, dizia que os salários eram ainda maiores.
Contave ele, com efeito, que estivera junto de alguém a quem perguntaram onde estava Ardieu o Grande. Este Ardieu tinha sido tirano numa cidade de Panfília, havia já então mil anos; tinha assassinado o pai idoso e o irmão mais velho, e perpretado muitas outras impiedades, segundo se dizia. E o interpelado respondera:"Não vem, nem poderá vir para aqui. Na verdade, um dos espectáculos terríveis que vimos foi o seguinte: Depois de nos termos aproximado da abertura, preparados para subir, e quando já tinhamos expiado todos os sofrimentos, avistámos de repente Ardieu e outros, que eram tiranos, na sua quase totalidade; mas também havia alguns que eram particulares que tinham cometido grandes crimes - que, quando julgavam que iam subir, a abertura não os admitia, mas soltava um mugido cada vez que algum desses, assim incuráveis na sua maldade ou que não tinham expiado suficientemente a sua pena, tentava a ascensão. Estavam lá homens selvagens, que pareciam de fogo, e que, ao ouvirem o estrondo, agarravam alguns pelo meio e levavam-nos, mas, a Ardieu e outros, algemaram-lhes as mãos, pés e cabeça, derrubaram-nos e esfolaram-nos, arrastaram-nos pelo caminho fora, cardando-os em espinhos, e declaravam a todos, à medida que vinham, por que os tratavam assim, e que os levam para precipitar no Tártaro. (...)
[A Lotaria das Vidas futuras pelas Moiras]
«Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efémeras, vai começar outro período portador da morte para a raça humana. Não é um génio (daimon) que vos escolherá, mas vós que escolherteis o génio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou desonrar. A rersponsabilidade é de quem escolhe, O deus é isento de culpa.»
Ditas estas palavras, atirou como os lotes para todos e cada um apanhou o que caiu perto de si, excepto Er, a quem isto não foi permitido. Ao apanhá-lo, tornara-se evidente para cada um a ordem que lhe cabia para escolher. Seguidamente, dispôs no solo, diante deles, os modelos de vidas, em número muito mais elevado do que o dos presentes. Havia-as de todas as espécies: vidas de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. Entre elas havia tiranias, umas duradouras, outras derrubadas a meio, e que acabavam na fuga, na pobreza, na mendicidade. Havia também vidas de homens ilustres, umas pela forma, beleza, força e vigor, outras pela raça e virtudes dos antepassados; depois havia também as vidas obscuras, e do mesmo modo sucedia com as mulheres. Mas não continham as disposições de carácter, por ser forçoso que este mude, conforme a vida que escolhem. Tudo o mais estava misturado entre si, e com a riqueza e a inteligência, a doença e a saúde, e bem assim o meio termo entre esses predicados.»
- Platão, "Políteia" (vulgarmente traduzido por "República")
Quatro séculos antes de Jesus Cristo. Qualquer semelhança entre isto e o céu/ inferno cristão não é mera coincidência. Santo Agostinho usou e abusou.
O equivalente cristão do daimon/génio que a alma escolhe é o "anjo da guarda". Eventualmente, o nosso investigador do espiritismo vai falar-me em "guia".
Espero, sinceramente, que Platão esteja atestado de razão no que respeita àquela parte negritada. Temos por aqui, à beira mar plantada, abundante freguesia.
Não por acaso, vários filósofos lúcidos referem-se ao cristianismo como um platonismo para uso popular. Portanto, se querem crucificá-lo por ter inspirado algumas perversões comunistas, lembrem-se que antes disso arcou com a Igreja em peso e forneceu estrutura e consistência ao pensamento cristão.