Antes de falarmos de Céline em espécie, recordemos um pouco do nosso Fernando Pessoa. Até porque o que eu aqui escrevi há anos, e que transcrevo de seguida, acerca do génio português é praticamente extensível ao francês, como, de resto, ponderarei num futuro postal.
« Os que querem um Portugal honesto, feliz, rico e honrado, querem a negação da acção civilizacional portuguesa, querem que desçamos ao burguesismo nacional duma pseudo-nação como a Suiça ou a Bélgica, querem que abandonemos o nosso grande papel na construção do novo mundo, que abdiquemos de realizar em espírito aquilo que realizámos outrora em corpo – o alargamento do mundo e a descoberta de novas terras, de novos mares, de novos céus. Mais alta é a missão portuguesa do que tudo quanto pode sugerir a barriga dos portugueses, nessa pervertida teoria política que toda a chusma de traidores e de idiotas que são os nossos políticos e os nossos jornalistas querem impôr a Portugal. Mais alta é a obra, e ela, a ser feita, terá de ser feita, terá de ser feita quebrando aos pés toda a longa podridão humanitária, democrática, organizando uma aristocracia forte, dominando completamente a nossa plebe ineficaz salvo escravizada. (...)
Criar em Portugal o sentimento duma missão civilizadora! Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?
Grande e difícil é a obra! Grande e difícil o varrer dos ideiais democráticos, humanitários e utilitários. Mas a grande obra anti-cristã (anti-cristã em tudo, anti-democrática, anti-católica, anti-monárquica) deve ser feita. Tristes de nós se faltarmos à missão divina que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa e tais nos fez quais somos, nos impôs quando nos deu este nosso acesso e trancendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas. »
- Fernando Pessoa, “Páginas de Sociologia Política”
Imaginem que o maior poeta português era vivo e escrevia num blogue. Talvez se chamasse “Heteronimia”, “Heterografia”, ou coisa que o valesse. Imaginem que ele postava o texto em epígrafe. Calculem a gritaria, o alarido que se não levantava: Nazi! Nazi!! Estou em crer que a “esquerda lacoste” levantaria barricadas; a “esquerda pink”, lavraria protestos e apelaria ao índex. A direita quéque faria coro com e “esquerda pink”, clamando “nada de confusões, somos democratas”. O PR faria uma das suas redondas alocuções ao país. Em suma: chovia granizo, chuva zangada de todo o lado. Disparando em todas as direcções, o poeta da “Mensagem” tornava-se alvo de todas as partes.
E, todavia, o homem era um génio. Um daqueles raros que visitaram aqui o rincão. Como explicar esta tempestade furiosa? Habitava um monstro dentro dele? Um psicopata? Na sua múltipla personalidade estava incluído um Adolfo qualquer coisa? Acometiam-no delírios em que se fantasiava de tirano louco subjugando uma Europa fumegante, em escombros, a seus pés?
Verificado tão tenebroso depoimento, atestados os seus ignóbeis propósitos anti-democráticos – saliento: mais anti-democrático é difícil! – deviam ser as suas ossadas despejadas dos Jerónimos e substituídos pela dona Amália? Deviam ser os seus livros proibidos e varridos para fora das livrarias e bibliotecas? Devia ser o seu nome lançado ao opróbrio e a sua efígie queimada em praça pública? As ruas e alamedas com o seu nome deviam ser rebaptizadas? O quê?...
Enquanto as autoridades ponderam e cozinham a sentença, eu ouso ir divagando o seguinte:
É evidente que o nosso Fernando andara a ler Nietzsche. Ora, os efeitos inebriantes do filósofo alemão são por demais conhecidos, eu que o diga. É, pois, um Fernando Pessoa alterado, fora de si, heteroposto, que se imagina correndo a saloiada cá do bairro a pontapé e à metralha por amor duma louvável quimera que, num instante fugaz, o desinquietou. Não é que eu próprio, às vezes, não comungue de sonhos desses; simplesmente, uma coisa é a ficção, a fantasia filosófica, outra, bem diversa, é a realidadezinha e o “malhão, malhão”. Dir-me-ão: pífia justificativa, ó Dragão! E se algum exaltado avulso, desses símios de imitação que não podem ver ideia nenhuma que não queiram logo macaqueá-la, desata a exercitar-se nesses propósitos pelas avenidas?...Sim, o que vai ser das pessoas que forem por ali a passar?!...”
Concedo que a justificação não é das melhores. De facto, metralhar as ruas em tese, nada tem que ver com metralhá-las em sede própria. Não muito tempo depois do nosso Fernando ter escrito isto, houve até uns folgazões de gosto mais que duvidoso que sonegaram as metralhadoras da tese e foram experimentá-las na rua. Os resultados foram trágicos. Ora, isso é tão aberrante como pegar nas metralhadoras da rua e ir metralhar na tese; ou então chamar os polícias de ronda, para virem com os cassetetes da rua bater ao filósofo por causa da tese. (Tudo isto, nunca esquecendo que colocar uma tese explosiva nas mãos dum macaco é tão perigoso como colocar uma granada, admito-o).
Mas continuo na minha: o que era mesmo importante, higiénico, edificante era que, como dizia Baudelaire, se deixasse a cada qual a sua quimera. Que deixássemos de meter o naríz nas quimeras dos outros, e as quimeras dos outros na nossa cabeça. Não são inalações que se recomendem, sem as devidas precauções. Apreciemo-las, por cortesia, ou por fruição artísticas. Ninguém pode dizer que “Esse deve ser o nosso ideal. O resto não importa. Que para chegar aí seja preciso varrer à metralha as ruas, calcar aos pés a felicidade e a liberdade do povo, arremessá-lo como um ariete de encontro às barreiras do nosso espírito – Que importa isso, se só assim, podemos deixar ficar Portugal no mundo depois de ele desaparecer?”, não é bonito, mesmo sublime, enquanto literatura. Eu, pelo menos, não digo.
E mais sublime ainda se pensarmos nos efeitos devastadores que seguramente causará nas carinhas sonsas dos filisteus cá do burgo. Mas livrem-se de atrelar ficção tão garbosa à carroça trafulha da política: perde-se a genialidade e não se logra benefício nenhum. Pelo contrário, garimpa-se imundície pegada.
Por conseguinte, e em conclusão: Respeitemos os desabafos e telhas dos génios, pois é um direito exclusivo que lhes assiste. Guardemo-nos de interferir com eles, quando passeiam entre as nuvens o bando trovejante das suas quimeras. Velemos-lhes as jornadas, mas devidamente abrigados dos seus raios, sempre prontos a fulminar o basbaque incauto.
Quanto aos coletes de forças, coleiras, trelas e açaimes que a prudência recomenda, são arreios, na verdade, indispensáveis, não aos génios, seres inexpugnáveis por natureza, mas aos políticos, essa matilha acéfala, tumultuosa, que em tempo ou modo algum convém ser deixada à solta!... Para que, sobretudo, não conspurque nem perturbe com as suas badalhoquices e macacadas – nem, pior ainda, armadilhe de porcarias – a digressão nefelibata dos outros.
E quando, em dias de festa, virdes o povo entusiasmado, atrás dos políticos, em animadas e turbulentas caçadas, desviai-vos para bem longe. O povo tem uma tara: perseguir desilusões.