Sobre o cinema, permitam-me que insista...
Retirado do Dicionário Shelltox Concise do Dragão:
CINEFILIA s.., perversão sexual que se traduz numa variante compulsiva de voyeurismo geralmente colectivo ou, no mínimo, às parelhas;
CINEMA s.m., (na América) arte de assassinar bons livros e de vender maus; indústria sofisticada de fazer embasbacar as pessoas; estupefaciente autorizado; propaganda camuflada.
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E, como para grandes males grandes remédios, directamente do "Tratado da Besta" (e vai um capítulo inteiro para não dizerem, os irredutíveis desta espelunca, que eu não os estimo e só me devoto ao desleixo):
«Cinemática e IdologiaSe na antiguidade grega se estimava sobretudo o teatro (theatron) , na actualidade ama-se cegamente o cinema. De raiz teaomai -contemplar, considerar, contemplar com a inteligência-, o teatro era o lugar da contemplação do homem no cosmos, do homem defronte do divino, ancorado algures entre a Necessidade e o Destino. O Homem contemplava-se, contemplando as suas máscaras e fantasmas. Ria-se e chorava com eles. Homens e deuses riam e choravam juntos. Entre o terror e a piedade, a metáfora e a catástrofe, o rosto e a máscara, o fio da Vida subia ao palco e a cena trágico-cómica da existência humana reflectia-se e ecoava pelas profundezas do Cosmos, em forma de choros e gargalhadas. A alma humana purificava-se.
Para os mesmos gregos já existia a palavra cinema (kinema). Significava movimento, dança, pantomina, agitação. Como existia a palavra eidolon (eidvlon). De eidos –forma, figura, ideia, aspecto exterior-, significava fantasma, simulacro, imagem. Depois de uma passagem pelo latim, transformou-se no português ídolo. As palavras, de facto, viajaram sem se alterar muito. Os homens, esses, alteraram-se muito mais.
O Novo Mundo do Consumo deixou de ser uma tragédia: foi promovido a filme. Em vez de palavras estagnadas, cenas cósmicas estáticas, temos agora um corrupio de imagens, um carrossel flamejante de fantasias. O cinema não exorciza nem purifica pela catarse: celebra, incita, promove, instrui, institui, induz. Não reproduz ou representa a profundidade abissal da existência humana: Na Nova Vida-Filme importam menos as palavras e mais os cenários, as poses, os esgares, os ângulos e perspectivas; os camarotes do divino ocupam-nos agora as super-stars, os ídolos. Os paradigmas deixaram de habitar e presidir a partir do passado: passaram a estrelas guias no presente –líderes de imagem, de mercado, de opinião-, vedetas da frivolidade histriónica que urge macaquear. Na Vida-Filme tudo se sobrepõe esfuziantemente; cada momento varre o anterior, cada imagem vampiriza a precedente. Não há sequer tempo para reagir ou apontar, tão pouco reflectir ou conversar: o Gastador-consumidor é um espectador pasmado na cadeira, deslumbrado e estarrecido por cenas cada vez mais violentas, explosivas e espectaculares. Está completa e fisicamente preso, dependente, agarrado ao ecrã. Os seus instintos mais radicais –de matar e copular, principalmente-, propagam-se e infectam todas as coisas, agentes e protagonistas do filme. Tudo, agora, se metamorfiza em potencial assassino ou violador: as casas jorram sangue, os ramos das árvores tornam-se braços estranguladores, cometas despenham-se em genocídio sobre as cidades, os animais organizam-se e marcham ao morticínio humano, os automóveis resolvem rancores antigos, os electrodomésticos revoltam-se, as máquinas conspiram, anjos psicopatizam e viram serial-killers, amigos de infância compram machados afiados, pais extremosos planeiam chacinas, donas de casa anódinas preparam macabros banquetes, a possessão, a licantropia, o vampirismo, o infanticídio, o canibalismo alastram em avalanches multicolores e apoteóticas; o estupro, o lenocínio, o sado-masoquismo lavram de enxurrada. O único fito permanente e obsessivo que parece palpitar em todas as coisas, seres e imaginários –presentes ou futuros-, é o de exterminar, estropiar ou, no mínimo, copular analmente as pessoas após preliminares escabrosos. A culpa colectiva elevada à paranóia global?...
Se o cosmos antigo era um palco da Necessidade (anake), a Nova Aldeia Global –de bimbos e saloios globais-, quer-se ecrã da possibilidade (dunamis). Ultra-dinâmico, o filme, por exemplo, instaura a possibilidade, dinamiza. Daí à realidade é um passo. Mais exactamente: a possibilidade –a dinâmica-, é já o hall de entrada da realidade. Depois, trata-se mais uma vez de mera inversão ou perversão dos processos antigos: faz-se da possibilidade uma necessidade. A diferença é que a necessidade contemporânea –ao contrário da antiga que era cósmica e emanescente-, é mundana, particular, egonóica, ou mero adorno de elites. E é também transcendente: não se compreende nem justifica – assiste-se. Veja-se a figura popular e emblemática do serial-killer, atracção de multidões e êxito garantido de bilheteiras: vê-se compelido por uma necessidade intrínseca e transcendente de chacinar engenhosamente pessoas. Secretamente, no seu íntimo, o espectador mastiga, compreende e absolve. Instala-se até uma certa empatia nostálgica. ( Por um momento, mentalmente, divaga-se: regressa-se ao tempo em que os animais já não falavam, mas ainda nos podíamos comer e chacinar carnalmente uns aos outros, sem subterfúgios).
O cinema, liturgia refinada da mudança, altar sumptuoso da metabolia, ditadura perpétua da agitação, debita, insinuante e cavilosamente, que tudo muda, tudo corre, tudo se transforma; nada permanece – a não ser aquilo que move o próprio cinema: as taras, fobias e traumas do saloio global; e os lucros da indústria. Ora, como já foi dito anteriormente, perfectófobo e edenoclasta, o Novo Homem Gastador-consumidor, bimbo da aldeia-inferno global, suporta cada vez menos palcos idílicos ou finais felizes. Apressa-se, desde cedo, em explicar às crianças que não existe pai natal, nem fadas, nem cegonha transportadora, nem menino Jesus, nem nada para além do salário do papá e/ou mamã, da vida selva/competição muito difícil, heróica e exigente, da economia de mercado, e dos espermatozóides à conquista dos ovários na epopeia da foda-queca. Para ele o mundo em si, na sua complexidade externa e hostil, é uma coisa suja, ameaçadora, cabalística. Donde nada de bom pode advir ou ser esperada. Só o trabalho salva: seja na forma palerma, naif, de assalariamento, seja no esquema fast, espertalhão, de nepote, familiar ou mafia, seja no parasitismo big de pseudo-administrações ou governos, a soldo da Indústria. O trabalho representa, assim, a esterilização do mundo, uma espécie de abstergência global ritualizada e neurótica-obsessiva. Ao contrário do espectador antigo defronte da tragédia, o consumidor-gastador não está minimamente preocupado com uma qualquer purificação interna; obceca-se outrossim com a lavagem e higiene externas –da sua pele, dos seus dentes, do seu cabelo, das suas unhas, enfim: da sua imagem, do seu aspecto, daquilo que se vê, como também do seu automóvel, da sua casa, da sua rua e cidade. Persegue e almeja um mundo limpo, desinfectado, asséptico. Mas limpeza não no sentido profundo, da sua sanidade ou do mundo -que os gregos chamariam higiénico-, mas numa acepção superficial, lavatórica, derivação do klysmos helénico: um Homo-clismo, simultaneamente heteroclismo e autoclismo. Porque ele próprio se vai esterilizando enquanto função reprodutora: de cobridor/reprodutor degenerou em operário do amor, quer dizer, muitos preliminares e penetração reduzida e minimalista.
Entretanto, a esterilização significa o resultado da confrontação profundo/superficial. A profundidade é associada da sujidade, do esponjoso, da negrura carbónica, da vala, caverna ou subterrâneo infectos; a superfície é normalmente aliada à limpeza, ao brilho, à claridade.
O Homem Novo, cinemático, é cada vez mais superficial, bem como o seu mundo, isto é, a sua mundovisão. Mesmo a sua função amorosa reflecte isso mesmo: é cada vez mais um lambedor-dedilhador de superfícies, e menos um explorador de profundidades; cada vez mais um beija-flor e menos um falcão; se antes cobria, fornicava, agora faz amor; se antes salivava por uma boa foda, agora contenta-se com uma rápida queca; se antes rosnava, agora geme; se antes agarrava brutalmente, agora toca com ternura e carinho; se antes penetrava erecto, agora percorre e rasteja flácido; se antes enfrentava com paixão o oposto, agora masturba-se mecanicamente com o igual; se antes comia, devorava, agora petisca, debica.
Por ser coifómano –maníaco das superfícies, pouco lhe importa o resultado posterior, o escoamento das sujidades e impurezas. Já a mundatio latina significava “purificação”, como munditia traduzia “limpeza”, “elegância”, “adorno”, “enfeite”. A mundaneidade do Homem Novo é também mundícia: Mundo é o contrário de imundo. Só que, limitando-se à limpeza superficial, para enfeite e adorno, abominadora da profundidade, a escatologia não lhe interessa, ou seja, pouco lhe importa a finalidade e término da sua mundícia. A limite, acaba por lavar à superfície e emporcalhar no fundo. Por isso, o resultado dum mundo cada vez mais reluzente e enfeitado é um cosmos feito escouço e vala de excrementos. O Homo-clismo despeja para o mar, infecta solos, mares e rios: a grande cidade é, ininterruptamente, um grande complexo fabril de porcaria. A Mundícia é, no fundo, Polução. E o Pôr-loção é, no skatos como no skotos –no extremo/excreto como no esgoto, Poluição. Na admirável Idade do Lixo, o Homo-Clismo debruça-se e reflecte-se no abismo de ser, simultaneamente, boca e ânus, pele e excremento, latria e latrinário. Na verdade, o Homo-Clismo representa um Cataclismo – do grego kataclysmos ( kataklysmos), inundação. Uma ablução catastrófica, uma diluição –uma dis-loção, uma des-lavagem, enfim: um Dilúvio.
Talvez para não pensar muito nisso, dedica-se ao ludambulismo. Amante da volubilidade, da facilidade e do trânsito, apenas a imagem o cativa, o impressiona, o arrasta. Só o eidos, o ídolo, o seduz. Começando ou acabando pela sua própria imagem, objecto primeiro e último de idolatria fantasmática. A sua imagem amálgama e decalque, rebusque permanente de miragens idolofanas. A sua figura molde ávido dos padrões em permanente turbilhão no bazar cinemático –do cinema à televisão, da Net às revistas pink, passando pela publicidade e os videoclips. Por toda a parte, a cópia, a imitação, a momice e o mimetismo, para todos os sexos, estilos, taras e idades, a qualquer hora, via satélite e com cachet gratificante; um circo de monstros, narcisos amorfos, sem cara própria, que projectam ventas alheias para se deleitarem no espelho distorcido da vida-simulacro.
Na Aldeia Global tudo o que não for idolatrável não presta. Não merece a mínima atenção. Só às voltas no carrocel da imagem é que o Gastador-consumidor considera. De olhos caleidoscópicos e ouvidos estereofónicos, filtra alucinadamente a realidade. Nunca em si, mas sempre em transe, esquadrinha os arredores, sempre sequioso, anelante, maníaco de novas fantasias, aberrações, shows e quimeras. A palavra, como a música, tem que jorrar em fogo de artifício, ou em sugestões subtis, relances sedutores, flirts industriais. Caso contrário, não existe, não acontece, não resulta. A imaginação está no trono. O delírio é global. A política reedita, em papel de bíblia, a propaganda histriónica. A própria igreja, cansada de carantonhas e caturrices, samba e dança ao ritmo de pandeiros.
Cinema, para os gregos antigos, também queria dizer “pantomina”, “agitação”. Nada mais profético. A Aldeia Global é mais pantomina que movimento, mais agitação que mudança. A Vida-filme rabia às voltas tontas num imenso carnaval diário, numa feira popular de farturas e algodão doce, entoando estridências pueris e goivos histéricos, à solta por montanhas russas, rodas gigantes e patuscadas nas barracas. Terreiro do grotesco, coreto da chocarrice simiesca, pátio de bufonaria lasciva, a Aldeia Global desinsofre-se em correrias e apanhadas, em jogos da macaca e cabras cegas, em abracadabras e mil e uma noites. Desorbitados, os foliões do consumo agarrados às saias da imagem, em rodopios psicadélicos, ora viajam supersónicos, ora cruzam langorosos mediterrâneos; ora desembarcam nas Caraíbas, ora embarcam para o Ceilão; ora peregrinam as índias, ora prospectam bordéis em Banguecoque. De roldão, em marabunta, às manadas. Com as kodacs e camcorders em riste, em punho, prontas a disparar. Do Kénia ao Japão, da Patagónia à Austrália, caça-se a imagem. E mata-se a paisagem. Porque, acima duma qualquer motivação ponderada ou razão aceitável, impulsiona-os uma febre desnorteante, fustiga-os, dilacera-os, subjuga-os, sem piedade nem interrupção, o látego desvairador da toleima e da toinice. São como Prometeus recauchutados, modernos que , em vez de agrilhoados, se agitam doravante em correrias desabridas, sem sul nem norte, sem rei nem rocha, perpetuamente atormentados pelo aguilhão dilacerante da águia do marketing e da publicidade, mandatada pela indústria divina. Não só a águia dá bicadas, como eles se pontapeiam, mordem e acotovelam entre si, numa competição para ver quem corre mais, mais longe, mais depressa e quem chega primeiro, a todos os lados e a lado nenhum. São também Tântalos e Sísifos, mas desenfreados.
Se bem que descendente de eidos, mãe da idolatria, existe, por último, uma palavra que não suportam: Idílio. Cheira a contemplações e monotonias, tresanda a paraíso e utopia. Nem o mais persuasivo conseguiria impingir idílios, quando o que agrada sobremaneira às massas é o Turismo dos infernos. E aí, de facto, ao não suportar idílios, o Homem Novo, num capítulo pelo menos, cumpre ainda as regras da poética, segundo Aristóteles: reclama verosimilhança. No filme, como na vida, posto diante do palco idílico, adormece, desinteressa-se, migra ou emigra. Não se reconhece nem descobre . Não descortina qualquer protótipo, arquétipo ou modelo. Entedia-se, resfolega, não se contenta nem o tamanho de dose mínima. Enfurece-se com o dinheiro e tempo malbaratados. A vida feliz não tem mortes violentas, nem tiros, nem explosões, assassínios, epidemias ou armagedões, resumindo: nenhuma diversão, péssimas performances, zero entretenimento. Tal qual o final feliz, que é uma lástima: sendo final, termina; não pressupõe nem apregoa sórdida continuação, novos episódios, reforçadas doses massiças. É que além de Ruminante-de-si, o Homem Novo, gastador-consumista, é um mascador de realidade: Cada filme é só um episódio, uma chewing-gum antes da próxima. Mas tem que segregar um sabor intenso enquanto dura. Por isso, crime, competição desenfreada, traição ignominiosa, correrias loucas, perseguições, assassínios, violações, catástrofes, etc, são fundamentais no argumento. É isso que o espectador consome, inspira, regurgita. É com isso que se alimenta interiormente e refastela o espírito. Não, não reflecte: absorve. O Homem-Novo, a que passaremos a chamar daqui em diante Homo-Spongius – Homem-Esponja.
Uma esponja à semelhança do universo em permanente contracção/expansão. O único problema é que como só absorve porcaria, quando se espreme só sai m...»
Mais claro que isto é difícil.
PS: Devia vir acompanhado dos termos gregos, como no original, mas eu não sei imprimir o grego (a máquina converteu automaticamente numas parvoíces quaisquer que nem me dou ao trabalho de corrigir) nesta porcaria internética.
PSS: E agora, como já devem ter percebido, das duas uma: ou encerro de vez esta merda; ou... enfim, descalço as luvas.