quarta-feira, novembro 30, 2022

Entre a superstição e a superficção

 

«Os preconceitos a favor da democracia pertencem à segunda classe: parecem, àqueles que os acarinham, sagrados, bem como razoáveis, moralmente certos, tanto quanto verdadeiros. A democracia é natural, boa, justa, progressista, e assim por diante. Os seus opositores são reaccionários, maus, injustos, antinaturais, etc. Para um vasto número de pessoas, a ideia de democracia tornou-se uma ideia religiosa que é dever tentar pôr em prática em todas as circunstâncias, indiferentemente dos requisitos práticos de cada caso particular. A metafísica de democracia, a qual foi na origem a racionalização dos desejos de certos homens franceses e ingleses para melhorarem os seus governos, tornou-se numa teologia universalmente e absolutamente verdadeira, que é do mais alto dever de toda a Humanidade colocar em prática. Assim, a Índia tem de ter a democracia, não porque o governo democrático seja melhor do que o governo indemocrático existente - é quase certo que seria incomparavelmente pior - mas porque a democracia, em toda a parte e em todas as circunstâncias, está certa. A transformação da teoria da democracia em teologia teve outro resultado curioso: criou um desejo de progresso no sentido de mais democracia entre numerosos povos cujos interesses materiais não são de qualquer modo prejudicados, sendo até activamente melhorados pela forma existente de governo que eles desejam modificar. Este alastramento do socialismo entre as classes médias, a concessão espontânea de reformas humanitárias pelos detentores do poder, para quem traria vantagens materiais exercer o seu poder cruamente e dele nada ceder - são fenómenos que se tornaram tão familiares que quase deixámos de os comentar. Mostram como pode ser grande a influência de uma teoria quando, pela sua familiaridade, se torna parte da mente daqueles que nela acreditam. No princípio é desejo; o desejo é racionalizado; a lógica elabora na racionalização e extrai conclusões; a racionalização, com todas estas conclusões jamais sonhadas em muitos casos por aqueles que primeiro desejaram e racionalizaram, torna-se num preconceito dos Homens nas gerações futuras; o preconceito determina o seu julgamento sobre o que está certo e errado, verdadeiro e falso; confere direcção aos seus pensamentos e desejos; arrasta-os à acção. O resultado é que um homem cujos interesses estejam ligados à ordem existente das coisas desejará fazer modificações nessa ordem muito mais extensas do que as desejadas pelo seu avô, embora os interesses materiais deste último fossem genuinamente prejudicados por isso. Nem só de pão viverá o Homem. A divina injunção era desnecessária. O Homem nunca viveu só de pão, mas sim de toda a palavra que procede da boca de todo o Deus concebível. Há ocasiões em que seria de grandes vantagens para o Homem se ele se confinasse, por um pouco, exclusivamente ao pão.»

           - Aldous Huxley, "Sobre a Democracia e outros estudos"

 Huxley terá escrito este texto em redor de 1927. Já passaram quase cem anos. Nem imagino o que ele escreveria agora. Num certo sentido, e com a devida vénia, escrevo eu por ele. O resultado mais evidente - e incontestável- da tal democracia, fazendo fé nesta nossa realidade circundante, é que, pura e simplesmente, constrói e redunda na sua - perfeita, concreta e completa - negação. Quer dizer, a prática devasta e aniquila a teoria. Parece que é uma maldição fatal dos "socialismos".

11 comentários:

  1. > é natural, boa, justa, progressista
    ...
    > tornou-se uma ideia religiosa

    Alguém diz que uma coisa é "boa, justa, veloz" ?

    Não, porque é um disparate, a velocidade não tem nada a ver com as outras duas coisas.

    Antes do século XVI, também ninguém poria "progresso" como terceira palavra - progresso significava simplesmente avançar numa deslocação, e a noção de "progresso histórico" ainda estava para ser inventada.

    Depois de ser inventada, como diz muito razoavelmente no título aqui do blog, é que passou a ser o caos; no princípio era apenas uma pequena confusão.

    É claro que da invenção do progresso histórico à respectiva adoração foi um saltinho de pardal - andamos há mais de dois séculos a levar com teologias estapafúrdias acerca da melhor maneira de adorar o progresso e dele extrair o máximo de milagres.

    Nem os sacerdotes das antigas religiões se atrevem a dizer nada contra, tal é o esmagamento.

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  2. Há um indivíduo, professor, chamado Nuno Palma, que anda por aí a dizer verdades, cientificamente comprovadas, sobre a eficácia do Estado Novo, nomeadamente na instrução do povo e prosperidade geral; no que tem atraído sobre si, naturalmente, o ódio de toda a cáfila que manda e geralmente se sustenta à conta das mentiras assim desmontadas. Honra lhe seja feita, não claudica. Mas também não depende deles, o que deve ajudar bastante.

    Seja como for, o indivíduo sempre se desculpa, se justifica em dizendo que lá por aquilo ser verdade, nem por isso aprova o sistema político em causa, sendo, como é, demokrata desde pequenino. E depois diz assim: a democracia é um fim em si mesma.

    Eu cá acho que tamanha aberração jamais foi produzida por nem os mais puros e empedernidos totalitários, fossem national-socialistas, comunistas ou até mesmo talmudistas! Até o Partido, até o Estado, até mesmo o Sinédrio têm um fim que os transcende, por mais abstracto, indirecto ou mediado que seja ou possa ser.

    Mas, não. A democracia. Eis tudo.

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  3. A democracia é a auto-estrada do socialismo...
    Qualquer pessoa com 2 dedos de testa jamais a pode defender.


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  4. O Huxley fala numa teologia. Quanto a mim, exagera no optimisto e na benevolência. Não ultrapassa o feiticismo, a superstição epistemarada. Crença rafeira e auto-reforçante. Acreditam porque sim, porque os outros acreditam, porque há muita gente à porta da tasca, logo come-se bem. Pergunte-se o que seja, não sabem. Balbuciam banalidades do estilo "separação de poderes" quando nem existe definição de poderes, ou, a limite, sequer poder. Ganem "soberania do povo", quando nem existe soberania do estado que é suposto representar o povo. Ou então anedotas ainda menos edificantes - o "estado de direito". E treta mais torta e enviesada nunca se viu!...
    Glosando o Nietzsche, "contra a democracia não há argumento: há a casa de correção!"
    :O))))

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  5. E esta, Dragão?

    O Provisório Mais Duradouro que o Definitivo - António de Oliveira Salazar - 1965

    https://www.youtube.com/watch?v=5tZj2tlIYrA

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  6. Vivendi,

    esse Homem era um Mister!... :O)

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  7. Ele bebeu bem do sumo da tradição escolástica ibérica e da filosofia tomista!


    Um ser Genial!

    No inverno de vida ainda se deu ao trabalho de explicar tudo o que fez e porque o fez...

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  8. A Verdade - António de Oliveira Salazar - 1966

    https://www.youtube.com/watch?v=sdH-CIzzJcA&list=PLwMh-L9thviVd3Nji3w2nB_tEekRR4tWl&index=24

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  9. tendo e atenção o real resultado da "democracia" partidária que é termos ficado na mão de titãs empresariais e corporações d´-me ideia que está a ser imposta pelo mundo fora porque é a forma mais fácil e barata de comprar e corromper governantes.

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  10. Sem dúvida. É a "forma mais fácil e barata" e também a mais malignizante. Uma espécie de cancro socio-político. Sem ponta de exagero.

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  11. Belo vídeo do AOS, Vivendi!
    Graças a um confrade, ando a ler bastante AOS no meu tempo livre.
    Há um episódio no elogio fúnebre do Duarte Pacheco em que ele diz que Portugal não é um país rico, portanto tudo o que se constrói em Portugal tem de ser pensado para 100 anos.

    Miguel D

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