Acontecem as coisas mais espantosas neste país. Agora, a propósito do circo eleiçoeiro, e no seguimento de queixas contra o slogan MRPP de "Morte aos traidores", veio não sei que comissão relevar a coisa como "não constituindo crime, mas apenas metáfora". Pessoalmente, acho que nem crime, nem metáfora: apenas folclore. Imaginar o MRPP sem estas frases perfunctórias é o mesmo que imaginar o PC sem a festa do Avante. Sim, eu sei, se em vez dum partido de extrema-esquerda fosse um partido vagamente de direita a sugerir a defenestração sumária dos parlamentares, lá se iam as benevolências e tolerâncias pelo esgoto e aqui-del.democracia que a besta fascista nos quer jugular a liberdade, a propriedade e a esperança!...
Mas por outro lado, até entendo as queixas: traidores é fauna que abunda e viceja entre nós em quantidades próximas da enxurrada omnipresente. Há traidores para todos os gostos e feitios - desde traidores à pátria (incontáveis) até traidores à raça humana (inúmeros, enlobbescidos até, grande parte)), passando por traidores à consciência, à moral, aos princípios, à religião, à justiça, à cultura, à honra, à palavra e o mais que ao diabo apeteça (entre nós o vira-casaquismo tornou-se quase segunda natureza; e o cata-ventismo é, por excelência, a ideologia hegemónica).. Pior, em Portugal alcança-se até a refinação inaudita de traição ao próprio clube de futebol.
Ora, é mais que natural que entre tantos espécimes refalsados, rabiem alguns quantos mais sensíveis e melindrosos. E havemos de concordar: um apelo ao abate de traidores, nesta data e latitude, traduz qualquer coisa como apelo ao extermínio, ao genocídio, senão mesmo a uma espécie de mini-holocausto (que nos perdoem os detentores da patente). Mesmo que isso inclua a auto-imolação dos proponentes, como é o caso, sobram razões de intranquilidade e preocupação para muito boa gente.
Claro que uma atenuante plausível seria a circunstância de estarem os traidores, na sua grande maioria, no desemprego. Ou na miséria. Nesse caso, o "morte aos traidores" emergiria como uma invectiva benemérita, valente e plenamente abençoada pela pia lógica da religião fundamentalista do Mercado. Gente que não contribui para a criação de nova-riqueza não é gente; constitui sorvedouro injustificável na economia e nos cofres do Estado. Porém, não é isso que, nem de perto nem de longe, se passa. Mais grave: é precisamente o contrário: Os traidores não apenas açambarcam empregos e remunerações bonificadas como trepam afoitamente nas carreiras, nas administrações e nas poltronas e tribunas do Estado. Disputam-nas mesmo, em regime cíclico de peixeirada, arruaça e acesso exclusivo. Se não és traidor, não entras. Se descobrem que não trais, estás-te a armar em especial e em virtuoso de corridas: sais em boa velocidade. Desqualificação sobretodas soberana e saneadora: não trair a verdade. Regra geral, elege-se o que mente melhor e dá mais garantias de trair com superior desembaraço.
Perante um tal panorama destes, talvez os comissários não devessem ser tão ligeiros na descriminalização do incitamento. Ou então é o ar do tempo, a espuma da hora que passa: se fosse "morte aos invasores!" é que era inadmissível!... Mesmo enquanto metáfora.
Não é patente: é "trademark"...
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