Neste momento ando pelas Áfricas. A matar saudades... Não se trata de férias, mas de peregrinação religiosa. Na minha qualidade assumida de Desempregado do Império, é sempre com alguma emoção que revisito o antigo local de trabalho. Quanto a outras "revisitações", bem menos sentimentais, prosseguirão lá para sábado ou domingo. Assim que eu estiver de volta.
Não desesperem. Ninguém perde nada com a demora.quinta-feira, maio 28, 2015
quarta-feira, maio 20, 2015
Touradas democráticas
No antigamente, os pavilhões, embora escassos, serviam para práticas desportivas ou espectáculos de índole mais ou menos cultural . Actualmente, embora abundantes, já não chegam... e têm que ser improvisados recintos espaçosos para fenómenos degradantes, como julgamentos judiciais. Isto, por um lado, reflecte a tendência da justiça democrática (muito à semelhança da revolução francesa, seu paradigma) para se constituir em espectáculo público, com os agentes judiciários cada vez mais arvorados em artistas de variedades (desde juízes vedetas, a inspectores literatos, há de tudo); e por outro, ainda mais eloquente, anuncia uma certeza iminente: a esta velocidade, se algum dia a corrupção do actual regime chegar a julgamento geral, sempre podem requisitar todos esses estádios de futebol em desuso desde o Europeu de má memória. E, provavelmente, ainda vão ter que construir mais meia dúzia. Ou, caso a economia (ou a próxima troika) não o permitam, realizam a coisa ao jeito de festival de verão, sob patrocínio das marcas de cerveja (e da TVI e Correio da Manhã, bem entendido, que tratarão em exclusivo da reportagem e promoção). O basbaque indígena acampa à volta e paga bilhete para o (des)concerto. Vai-se a ver, ainda dava um lucro do caraças!... E agora que a tourada tradicional está cada vez mais mal vista, nada como avançar com as touradas democráticas.
segunda-feira, maio 18, 2015
Prelúdio em forma de Re-visão
Falar da "ditadura cultural da esquerda" tem os seus encantos... e os seus labirintos. Sobretudo em redor do conceito de "cultura". Estamos a falar de que "cultura", efectivamente?
Porque se levarmos em conta a cultura geral (ou popular) do pré-25 de Abril, damos de caras com o célebre triplo F - Fado, Fátima e Futebol. Certamente, não era sobre esta cultura do povo que a esquerda alimentava pretenções despóticas. A mesma merecia-lhe até o mais solene e arrogante dos desprezos. Traduzia, nos seus termos peraltas, a "alienação das massas", coitadas, analfabetas e pacóvias. Alienação, essa, de que cumpria libertá-las. O projecto da "esquerda" não era, por conseguinte, nem nunca foi, um projecto popular (embora o poder e a democracia por eles engendrada se mascarasse do termo). Não, tratava-se duma nova-elite, duma vanguarda esclarecida (da classe operária; e otária). Ao triplo F contrapunham o triplo B - Baladas, Balelas e bridge.
Mas antes da dissecação em ordem do assunto, duas pequenas (re)visões de como a aventura, entretanto, decorreu... e vem decorrendo.
O Farol dos Afundadores I
Dantes, no tempo do faxismo, nas trevas da longa noite, que bem me lembro, vi com estes que a terra há-de comer, ninguém me contou, era o Benfica – o clube do regime, marca de exportação, condição de cidadania, esteio da família, totem dum povo, entusiasmo da horda, embaixadeza da pátria avulso. Agora, e cada vez mais, é o Benfica, o Sporting, o FêCêPê, o Real Madrid, o Barcelona, não já clubes de futebol, mas espécie de seitas mau-mau, futemafias, histerismo troglodita, frenesim ululante. Outrora, por causa do Benfica batiam nas mulheres e na prole menos expedita; agora são capazes de matar ao calhas – bons chefes de família alimentam fantasias de hecatombe e extermínio.
Dantes, no tempo do faxismo, era a Senhora de Fátima, o ópio do povo. Lá continua, que Deus a guarde. Sim, mas reforçada (salvo o devido respeito) pelo pastor Tadeu, pelo bispo-empresário e secretário-geral Edir Macedo, pelo professor Karamba, pelo pequeno rabi e o compadre imã, pelo grande astrólogo Mané e toda uma chusma de videntes, cartomantes, mães-de santo e padres de vão de escada (ateus incluídos) feitos carraças dum povo rafeiro. Quer dizer, ao ópio do povo, adicionou-se o haxixe do povo, a marijuana do povo, o LSD, as anfetaminas, a cocaína, a morfina, o ecstasy e o vinho a martelo do povo. Grande povo, nação valente, que além de fumar, alcançou a ampla conquista, o inalienável direito de também se charrar, injectar, encharcar, tripar, snifar com uma variedade inaudita de droguinha religiosa da boa. Alleluia!...
Dantes, no tempo do faxismo, era o Império Ultramarino e os pretos tadinhos que eram explorados, escravizados, vilipendiados e oprimidos pelo colono infestante e a metrópole sanguessuga. Agora é o Império Intramarino, onde a maioria da população, mentecaptizada por todo o sortido de antolhos, ecrãs, mamãs e arreios de andar à nora, foi despromovida a pretos, enquanto uma minoria endogâmica de luminosos e outros caga-lumes doutores se diverte e recreia a colonizar os restantes, sob a supervisão embevecida dos tutores da estranja. Agora, por conseguinte, é a própria metrópole que, um tanto ou quanto esquizofrenicamente, se divide entre micrometrópole e neocolónia. Ambas dando corpo ao Sacro Império da Mediocridade.
Dantes, no tempo do faxismo, era o fado e a Dona Amália, estátua em vida, garganta do inefável chunga, enlevo das emigrâncias. Agora, além do fado, é o pimba, e o pop, e o hip-hop, e o rap, e a martelada das discotecas. E são chusmas de vedetas, chupetas, marretas, artistas, fadistas, herpetobatas* e palhaços de vida fácil, a chocalhar piada ao quilo e graçola a metro!
Dantes, no tempo do faxismo, era o Salazar, o António que não mudava de botas. Agora são os filhos, enteados, bastardos e netos do Salazar. Todos por inseminação balnear. Eu explico: parece que os espermatozóides libertados pelo feroz ditador, aquando de casuais e solitárias práticas, saíram pela retrete, viajaram pelo esgoto e acabaram, após peripécias várias ao sabor do capricho das correntezas, nas praias do Algarve e sul de Espanha, onde, ainda vigorosos, pujantes e perfunctórios, fertilizaram os úteros em molho incauto das mães dos filhos que nos (des)governam. Só que estes, mais espertalhões e cosmopolitas, mudam de sapatos todos os dias, de carros todos os anos e de casa, ideologia, sexo e, sobretudo, patrono, então, é melhor nem falar.
Dantes, no tempo do faxismo, estavamos orgulhosamente sós. Havia a censura, o lápis azul, o exame prévio. Havia a Pide, a Mocidade e a Legião. Agora estamos vaidosamente totós, de mão estendida, cuzinho em saldo e vaselina a jeito. Há o critério editorial, a mixordice jornalística, a ordem unida da notícia. Há o Tide, detergente mental logocida, em drageia ou supositório; as telenovelas da TVI e a Chusma xenolatra, de grunhofone em riste, a acelerar e telefonar por tudo quanto é estrada, ponte e caminho, e a abrir estradas, portagens e autódromos por tudo quanto é sítio!
Digo com franqueza: nunca tive uma visão idílica do antigamente, ainda menos em termos de política interna. Mas quanto mais anos usufruo das delícias deste admirável regime novo, para grande assombro de todas as minhas células, mais virtuoso e digno o outro me parece. A única monstruosidade aberrante que jamais lhe conseguirei perdoar, foi essa, reptiliana e lorpa, de, em tão má e porca hora, ter defecado um aborto - invertebrado e pífio - destes!...
Para estes pulcros da lábia, imaculados da concepção, era uma vergonha ter colónias que nem colónias eram, mas não é uma vergonha - pelo contrário, é uma gloriosa conquista - ser uma colónia.
Simulacro de gente, país postiço, alminhas de pechisbeque - aviltamento compulsivo de navegadores, ferrabrases e poetas a asnos sublimes, putas eruditas e punheteiros do currículo!...»
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O Farol dos Afundadores II
A América é o farol do mundo. Pena que seja um farol erguido por afundadores. Pena que o mundo seja um barco à deriva.
Hoje, a putativa super-nação, mais a sua super-democracia imaginária, entregam-se a uma fantochada eleitoral, ao nível das Angolas deste mundo, que vem servindo de pretexto a uma série de “americanos” na diáspora para vibrarem pelos seus paladinos. Não votam (por enquanto), mas fazem força. Gemem do lado de fora dos sanitários. Armam coros guinchantes, ao velho estilo do histerismo grouppie. Bradam incentivos para dentro, mensagens entusiásticas: “Coragem! Avante! Tu és o sol da nossa caverna!” Enfim, parturiam à distância. Tele-acolitam o seu favorito. Lançam cavacas ao lume.
Mas o seu maior sonho seria poder estar também lá dentro, assoberbados nos trabalhos, espremendo o esfíncter de vanguarda, super-potente, mirando, finalmente, a obra fumegante, aspirando o odor revigorante, testando a consistência, a uniformidade da cor.
Quais vão ser as peripécias, que complicações e sobressaltos vão surgir – se vão ser necessários fórceps ou apenas clisteres -, aindas ninguém sabe ao certo. Mas adivinha-se.
Quanto aos “nossos americanos”, com as suas bandeirinhas Kerry Clinton e as suas bandeirinhas Bush, dir-se-ia que, como certas cadelas que emprenham fantasmagoricamente, também eles se entregam a gravidezes histéricas, e aguardam, em vigília angustiada, que venha à luz o americanozinho fétido que transportam nos seus miraculados e industriosos ventres.
Rezam para que nasça completo. Já que mongolóide vai ser de certeza. Pelo lado materno.
PS: coisas escritas há mais de dez anos aqui no Dragoscópio continuam plenamente actuais. Parece que ao nível da cultura a sério a "ditadura da esquerda" não é assim tão totalitária. Aliás, posso até adiantar, desde já, a conclusão do postal segundo sobre essa tal "ditadura": entre nós não existe nenhuma "ditadura cultural da esquerda", existe é uma "ditadura geral da estupidez". Também começa por "e", mas tem mais uma letra.
sábado, maio 16, 2015
Acromiomancia revisistada - XXVIII . A Incubadoura antifascista
«a) A guerra nasceu no campo: e o termo [em francês, tanto desiga campo como campanha militar"] manteve-se até aos nossos dias. Mas a partir de 1914 assiste-se à sua urbanização. Para a grande parte das massas de camponeses, a primeira guerra mundial foi um primeiro contacto com a civilização técnica. Uma espécie de visita dirigida à exposição universal das indústrias e artes aplicadas da morte, com demonstrações quotidianas ao vivo.
b) essa colectivização dos meios destrutivos, mecanizados, teve como efeito neutralizar a paixão propriamente bélica dos combatentes. Não se tratava já de violência do sangue mas sim de brutalidade quantitativa, de massas lançadas umas contra as outras, já não pelos movimentos do delírio passional, mas sim pela inteligência calculadora de engenheiros. Agora o homem é apenas o servo do material: ele próprio passa ao estado material, tanto mais eficaz quanto menos humano for nos seus reflexos individuais.
(...)
A política de massas, tal como foi praticada a partir de 1917, mais não é do que a continuação da guerra total por outros meios (para retomar mais uma vez, invertendo-a, a célebre fórmula de Clausewitz). (...) E por outro lado, o Estado totalitário não é mais do que o estado de guerra prolongado ou permanentemente recriado e mantido na nação.»
- Denis de Rougemont, O Amor e o Ocidente
Existem especificidades - algumas únicas, outras comuns - nas duas Guerras mundias do século XX. Ambas constituem manifestações de algo que se inaugura no século XX: a massificação. Mas há uma coisa que é absolutamente original na Segunda: a guerra total, ou seja, o confronto não apenas entre concepções totalitárias de Estado, mas igualmente entre concepções totalitárias de ideologia (que é como quem diz de "propriedade da verdade"). De tal modo, que o emprego de meios maciços de destruição - e destruição não apenas militar como também civil (os aliados inauguram a modalidade do massacre objectivo e estratégico sobre alvos não militares - melhor dizendo, os aliados estendem o conceito de "alvo militar" à própria população) -, é alargado aos meios de propaganda que se pretendem também de destruição maciça. Mais: a guerra total nasce primeiro na propaganda e materializa-se depois no terreno. Trata-se não apenas de destruir por completo o inimigo, em todas as suas estruturas físicas, militares e civis, mas também nas suas estruturas mentais. E o que o pós-guerra irá demonstrar é que essa devastação não termina com as próprias hostilidades bélicas no terreno: prossegue depois, abatendo-se sobre a própria história do conflito, que apagando quer adicionando, diminuindo ou ampliando, eventos de pura conveniência ideogramática. Quer dizer, na propaganda, a desvastação maciça e sistemática não termina com a guerra, porque a guerra continua naquilo a que podemos chamar "campanha de subversão global". E é e continua uma guerra porque persiste um confronto entre concepções não já essencialmente antagónicas (como era, por exemplo, o fascismo e o comunismo), mas concorrenciais, em disputa quase mercantil pela hegemonia à escala global. Trata-se duma guerra não já de intensidade militar aberta, mas, sobretudo, de competição geopolítica. E é até por isso, que, aquando do colapso soviético (que não é militar), o fenómeno surge enunciado e proclamado como um triunfo retumbante e definitivo duma "concepção económica" e respectivo modelo (que se pretende agora, único, definitivo e universal). Porque, na verdade, as duas super-potências da guerra fria traduziam não apenas um super-empório militar, mas, manifestavam-se, sobrexcitadamente, megapolos de exportação ideológica.
Voltando à Segunda Grande Guerra... Se atentarmos friamente nos blocos em confronto, constataremos dum lado as forças de nacionalismos particularmente exacerbados e do outro uma aliança de formas de internacionalismo/imperialismo mais ou menos dissimulados, no seu ímpeto hegemónico e totalitártio. Aliás, em bom rigor, apenas o Império Britânico se batia pela manutenção da Ordem antiga: os outros, embora de formas diversas, pugnavam pela instauração do novos tipos de Ordem. Se analisarmos o resultado do conflito, lá se desvanecem as mitologias posteriormente cultivadas: a Europa auto-destruiu-se, o Império Britânico suicidou-se e os Americanos e os Soviéticos repartiram entre si os despojos e reinaram por cima dos escombros. Como é que o Império Britãnico conseguiu atirar-se para a irrelevância e o museu das antiguidades em seis anos, é caso para estudo atento e deveras arqueológico. No dia em que esse estudo desapaixonado conseguir dessoterrar-se do lixo propagandístico acumulado, talvez o bipolar Churchill passe de bestial a besta. Para Portugal era do seu extremo interesse que duas coisas não acontecessem, ou pelo menos uma: que os britânicos não se imolassem; que a Alemanha saísse derrotada mas não esmagada (aquele primeiro ponto era crucial para os nossos interesses estratégicos ultramarinos; este para a contenção da subversão comunista na Europa). Infelizmente, aconteceram os dois.
Uma primeira nota: o que é que distinguia o regime nacionalista de Salazar de toda esta gente? Na essência, quase tudo. Começando pelo conceito global de nação: Portugal pretendia-se uma nação entre as outras, de pleno direito e recíproco respeito; e até por isso não se meteu naquele caldeirão do diabo, que foi a segunda guerra mundial (onde, reconheça-se, todos os beligerantes, em bom rigor, batalhavam pela imposição ou manutenção de alguma forma de supremacia internacional). Salazar escorava-se na moral e no direito, e sustentava que ambos, a moral e o direito, deviam constituir critério não apenas interno mas internacional. Tinha mesmo plena consciência que uma "imoralidade" reinante no palco internacional acarretaria efeitos perversos e pervasivos no ambiente nacional. O que não apenas profetizou como experimentou posteriormente, com a guerra do Ultramar.
Por outro lado, e retomando agora os nacionalismos europeus, tanto o regime de Hitler quanto o de Mussolini apresentavam na génese algumas semelhanças com o de Salazar: todos eles emergiam como resposta a sociedades subvertidas e desestruturadas e todos eram anti-democratas, anti-paralamentares, anti-liberais e, sobretudo, anti-comunistas, porque, exaustivamente, haviam reconhecido e experimentado nesses tipos de receitas importadas a origem insidiosa da subversão e desagregação nacionais. Naturalmente, as reacções ao mesmo tipo de fenómeno reflectiram, em cada caso, o carácter de cada povo, e tanto a brutalidade germânica como o aparato histriónico italiano são diferentes do modo português, que, na pessoa de Salazar, fruto em larga medida do tomismo ancestral,.demandava, acima de tudo, um equilíbrio e uma ordem tranquila. Afinal, o modelo inspirava-se na própria natureza.
Assim, depara-se-nos uma evidência desde logo gritante: quando emergiram, os nacionalismos europeus - do italiano ao português -, começaram por deparar-se com um conflito subversivo interno. Isto é, para que o país sobrevivesse e emergisse da sua própria dissolução, tinha que enfrentar uma espécie de cancro doméstico sob patrocínio externo. Dessarte, tiveram que encetar uma acção contra-subversiva interna, de modo a libertarem as respectivas nações de guerras civis permanentes. E aqui, mais uma vez, Salazar distinguiu-se: nunca deixando que o ambiente de guerra civil que o precedeu se perpetuasse num clima de guerra interna subsequente. Assim, reduziu o problema a um caso de polícia. Ao contrário, alemães e italianos, sediados num conceito de violência curadora e redentora, desenvolveram uma dinâmica de combate interno intensivo (e militarizado) que culminou com o alastramento desse conflito ao exterior, mais concretamente, e segundo uma logica fatal, aos centros, ou agências, emissoras dessa agitação desagregante. Se repararmos bem, a Segunda Guerra, é um conflito de magnas proporções entre importadores (ou junkies) revoltados e exportadores ideológicos eminentes. Em suma, fascistas e nacional-socialistas entenderam que não bastava combater os consumidores da droga, tinham que ir desmantelar os centros de produção; caso contrário, a droga continuaria e infiltrar-se e e causar os seus malefícios. É evidente que um projecto dessa envergadura desmesurada prometia as maiores dificuldades e os mais previsíveis dissabores. E materializava decerto o lanço entre a prudência e a Hubris. tanto quanto cavava a diferença entre o projecto genuinamente cristão de Salazar e os neo-paganismos exaltados de Mussolini e Hitler.
Tudo isto que venho expondo, para que não restem dúvidas ou costumadas esguelhas, pode ser confrontado com as proprias palavras de Oliveira Salazar, em 1934 (ou seja, em plena ascensão dos nacionalismos europeus e não nas suas múltiplas exéquias oportunistas do pós-guerra):
Tudo isto que venho expondo, para que não restem dúvidas ou costumadas esguelhas, pode ser confrontado com as proprias palavras de Oliveira Salazar, em 1934 (ou seja, em plena ascensão dos nacionalismos europeus e não nas suas múltiplas exéquias oportunistas do pós-guerra):
«Como muito e quase só se tem falado da sua concordância com outros regimes, pretendo hoje não me ocupar do que é semelhante, mas do que é diferente, para que possa ressaltar a todos os olhos a sua bem marcada originalidade.
O nacionalismo do Estado Novo não é e não poderá ser nunca uma doutrina de isolamento agressivo - ideológico ou político - porque se integra como afinal toda a nossa história, na vida e na obra de cooperação amigável com os outros povos. Consideramo-lo tão afastado do liberalismo individualista, nascido no estrangeiro, e do internacionalismo da esquerda como de outros sistemas teóricos e práticos aparecidos lá fora como reacção contra eles. O EStado Novo não empreendeu apenas extinguir os antigos partidos juntamente com o individualismo e o paralamentarismo; oferece também resistência invencível a correntes deles derivadas por força da lógica revolucionária ou que de algum modo representem excesso de ordem pública ou jurídica na reacção que aquelas provocaram. Sem dúvida se encontram, por esse mundo, sistemas políticos com os quais tem semelhanças, pontos de contacto, o nacionalismo português - aliás quase só restritos à ideia corporativa. Mas no processo de realização e sobretudo na concepção do Estado e na organização do apoio político e civil do Governo são bem marcadas as diferenças. Um dia se reconhecerá ser Portugal dirigido por um sistema original, próprio da sua história e da sua geografia, que tão diversas são de todas as outras, e desejávamos se compreendesse bem não termos posto de lado os erros e vícios do falso liberalismo e da falsa democracia para abraçarmos outros que podem ser ainda maiores, mas antes para reorganizar e robustecer o País com princípios de autoridade, de ordem, de tradição nacional, conciliados com aquelas verdades eternas que são, felizmente, património da humanidade e apanágio da civilização. (...) É preciso adfastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se Estado Totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou raça por ele representada, na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, a que tinham de estar sujeitas todas as manifestações individuais e colectivas, e poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedera os regimes liberais, porque ao menos esse outro não se desligara do destino humano. Tal Estado seria essencialmente pagão, incompatível por natureza com o génio da nossa civilização cristã, e cedo ou trarde haveria de conduzir a revoluções semelhantes às que afrontaram os velhos regimes históricos e quem sabe se até a novas guerras religiosas, mais graves que as antigas.» (- A.O.Salazar, em 26 Maio de 1934)
Ainda mais significativo é o facto deste discurso de Salazar surgir em resposta à formação à sua direita do nacional-sindicalismo de Rolão Preto, cujos militantes envergam camisa azul e sinais exteriores próximos do nacional-socialismo alemão. O uso desta espécie de uniforme é rapidamente proibido pelo Governo em manifestações públicas; e uma parte dos nacional-sindicalistas, incluindo o próprio Rolão Preto, tentam derrubar Salazar. Imaginando que Rolão Preto teria substituído Salazar, não custa conceber uma entrada do Portugal na Segunda Guerra, ao lado das forças do Eixo.
Por conseguinte, se o nacionalismo português e os seus congéneres europeus da época coincidiam no ponto de partida (no inimigo e nos problemas originários a combater), já divergiam radicalmente nas metodologias, nas fórmulas organizativas, nas finalidades e no ponto de chegada. O Estado-Novo traduzia uma resposta genuinamente portuguesa e uma situação unicamente portuguesa. Todavia, para a propaganda, a realidade não conta. Ou conta na medida em que lhe interesse, para ampliar, desfocar ou subverter, conforme a conveniência.
Assim, quando a Guerra terminou no terreno das operações militares, com a derrota total e arrasadora das forças nacionalistas, não terminou igualmente na propaganda. Pelo contrário, recrudesceu e intensificou-se. O fascismo e o seu zénite nazi foram demonizados a um paroxismo desvairado e ininterrupto, sempre viçoso e sempre a reciclar.-se, que dura até aos dias de hoje. A coisa atingiu tais níveis de requinte que até investigações ou debates de índole histórica, uma vez que duvidem duma espécie de dogmas instituídos, foram criminalizados. Não pretendo com isto tomar posição nesses fenómenos, mas apenas anotá-los e referi-los como provas evidentes da perpetuação da "guerra aos nazis e fascistas" na propaganda e, mais concretamente, no mercado das ideologias totalitárias.
E para que serve esta "guerra inesgotável da propaganda"?
Essencialmente serve para bloquear uma parte inconveniente do espectro político. E camuflar uma livre alternativa eleitoral que, na realidade, não existe, mantendo sob ameaça e anátema qualquer esboço de genuína independência. Ou seja, qualquer forma de "nacionalismo" - entenda-se de legítima defesa dum qualquer país, economia ou cultura contra o internacionalismo corrosivo e diluente da hegemonia (actualmente sintetizada numa plutocracia global) -, é imediatamente interdito a apostrofado de "fascista", "nazi", "ditatorial", etc. A não aceitação cega do modelo de exportação pseudo-democrata e teomercantileira conduz, inexoravelmente, a todo o tipo de sanções, arbitrariedades e, por fim, caso necessário, a uma cartaginização local. Assim, a guerra de propaganda, além de inesgotável, é preventiva. Exerce-se em permência de modo a evitar surtos indesejáveis. Funciona, pois, à escala global, na criação duma hipnosfera que absorva e determine toda a atmosfera geopolítica planetária. É nessa hipnosfera que se formam e desencadeiam as tais "deslocações de ar" históricas.
Quando em Portugal, no pós-25 de Abril , em nome duma higienização antifascista, se ilegaliza a direita, está-se no fundo, com o retardamento de 30 anos, a implementar o "pós-guerra" no derradeiro espaço europeu onde ele ainda não vigorava. Por pouco, aliás, o rectângulo não se dividiu, à semelhança da Alemanha vencida, numa parte pró-ocidental e noutra pró-leste, o que, a verificar-se, mais não replicaria que as duas modalidades vigentes de "antifascismo": Mas num aspecto, a receita dos Aliados para a Alemanha subjugada foi efectivamente repetida entre nós: a "desnazificação alemã" transpôs-se na "desfascismização portuguesa". A punição e terraplenagem retroactiva seguia o seu curso na campanha propagandística. Assim, quando hoje se conclama, também por interesse de propaganda ou mera mentecaptice, que o antifascismo foi uma estrita criação comunista está-se a querer omitir boa parte do quadro. Os comunistas, também por interesse próprio e de propaganda, eram os mais exacerbados na retórica apenas porque procuravam arvorar-se nos mais antifascistas de todos, com isso pretendendo uma superioridade moral que lhes pavimentasse e facilitasse o acesso ao aparelho de Estado entretanto devoluto. Mas todos os outros, criteriosamente autorizados, da extrema-esquerda ao CDS repetiam caninamente o mantra e eram, com juras públicas diárias, antifascistas compenetrados e democratas puritanos da mais elevada extracção. Basta lembrar a recusa de PSD e CDS em participarem na manifestação da "maioria Silenciosa" (prontamente catalogada de fascista"), para orçar da alegre lavagem cerebral em curso. Lavagem que, de resto, permanece nos dias de hoje. Ainda agora, simplesmente por recapitular o Estado-Novo sem ser em tom asséptico e enojadinho, sou de pronto catalogado de "salazarista", "ultra-salazarista", "fascista" (e a descarga não vem exactamente do lado mais à esquerda, o que só espanta quem não conhece de ginjeira este tipo de faunas e tropagandas).
Por conseguinte, explicar um certo predomínio da esquerda apenas como resultado reiterado da agit/prop marxista-leninista é não querer ver o principal. Basta comparar os meios`de difusão e o acesso desses meios à generalidade da população lusitana (situemo-nos apenas nos anos 60 e 70, para facilitar) entre a propaganda anglo-saxónica e a propaganda soviética. E é confundir um mero expediente oportunistas (como foi o assalto da 5ª coluna soviética) com toda uma predisposição anteriormente cultivada, fomentada e induzida por filmes, folhetins, séries televisivas e até revistas de banda desenhada, como a lendária "Falcão", onde heróis "aliados" como o Major Alvega, o agente Ene 3 ou a intrépida Mamselle X, convertiam as criancinhas desde tenra idade ao antifascismo precoce e à fobia pelas pérfidas suásticas. Para o luso petiz, a certa altura, matar alemães nazis era tão lógico e urgente quanto matar baratas. Além de ignóbeis e péssimos, os alemães (como os japoneses) eram um estúpidos, falhados e perdedores natos. Imagine-se agora o pimpolho, já em plena adolescência, quando um qualquer colega de liceu ou faculdade, devidamente insinuante, lhe segredava que o regime português era fascista, filonazi e mantinha um campo de concentração nas Berlengas... Obstar-me-ão, "credo, Dragão, que exagero! Coitado do Major Alvega..." Pois, e ainda por cima tinha costela lusitana, o antifascista voador. Mas o facto é que muito do despenteamento mental que se verte até hoje acerca de fornicoques antifascistas e anti-salazaristas está ao nível das revistinhas do Major Alvega e traduz apenas um estado perpetuamente cultivado de credulidade infantil e inteligência larvar.
Tudo isto para explicar uma coisa muito simples e elementar: sem a criação e fertilização do terreno com toda uma predisposição antifascista (da qual o regime não se sentia afectado nem ameaçado, porque não era de facto fascista, nem nunca tinha sido), o antifascismo peregrino e depois de choque na pós-golpada dos Cravos jamais teria vicejado com tão inusitada e desarvorada "espontaneidade". A rápida associação do Estado-Novo, quer ao léxico maldito quer a símbolos repugnantes como a suástica, ou figuras fardadas ao mais tenebroso estilo SS, trataram de converter rapidamente a imaginação pública à distorção confeccionada.
Por outro lado, acreditar que as pessoas andavam sofregamente a ler Marx (e derivados) na clandestinidade, porque em sendo proibido, como toda a pornografia, tornava-se mais apetitoso é claramente delirante. A seita comunista nunca se caracterizou por estudar ou conhecer Marx ou Lenine, como os católicos não passam grande cartão à Bíblia Sagrada. Tirando o clero do comité e da nomenklatura pastorais, que lêem vagamente (e em boa parte nem entendem para lá da vulgata evangélica), as hordas militantes não precisam sequer de ser alfabetizadas (aliás, quanto mais analfabetas, melhor). Partilham a fé, cultivam o fanatismo, dispensam a gnose. Cumprem o que o camarada secretário-geral e o comité decretam; escutam os sermões e as prédicas e prestam-se ao martírio, se necessário for, com todas as suas forças. (Não é por acaso que o Partido Comunista sempre confiou mais nos operários do que nos intelectuais aburguesados: estes, com duas chapadas na Pide, borravam-se e abriam-se todos; aqueles enfrentavam monumentais sovas e martírios e resistiam com a devoção dos mártirtes compenetrados). A ideia que prevaleceu na revolucionite subsequente, e ao longo sobretudo do PREC, não teve muito que ver com pré-leituras ou requintes elaborados de propaganda previamente subministrada em saraus culturais na clandestinidade penumbral das catacumbas: foi um simples engodo pelo saque, pelo desforço, pelo amarinhamento social de ocasião. A conspiração nunca excedeu por aí além a patuscada. Nem antes nem depois do 25/74. O fáxista era o patrão, o senhorio, o rico, o proprietário de alguma coisa, o professor, o polícia, o GNR, enfim, tudo o que de alguma forma representasse a ordem anterior e constituísse obstáculo ao saque e subsequente alpinismo dos candidatos desensofridos à exploração económica da nova (des)ordem. Ao nível da burguesa mais letrada ou dada aos quadradinhos, o panorama não variava muito: houve sobretudo arrivismo e reviralho premeditado, ou instantâneo, de quem, a partir de frequentes injecções de estrangeirina, estava mais do que de prevenção para a mudança a qualquer momento. Mudaram rapidamente de casaca os pais, na grande maioria para garantia do património, e dispersaram em várias direcções os filhos, apontando, em bom ritmo e ruído, aos trampolins dos tachos do amanhã que, esses sim, sempre cantam. (contabilizem-se todos aqueles que, oriundos da extrema-esquerda, treparam a posições de relevo no Centrão desgovernativo)... O fenómeno "adesivo" já referido em relação ao 5 de Outubro de 1910, foi ainda mais transbordante no 25 de Abril.. Adaptatóide nato, o vulgar português, percebeu num ápice que se virava uma página e cumpria aderir ou, no menos precipitado dos casos, aguardar para ver para que lado tombava a balança (para então correr a alistar-se, ou ajustar o léxico e o discurso). O que explica, calma e inequivocamente, como, numa noite de Abril, o país acordou de esquerda socialista, e noutra noite de Novembro, o mesmo país, acordou curado e prontíssimo para o parlamentarismo liberal.
Entre nós, basta controlar os megafones, que o resto vai de arrasto. Ora, neste controlo dos bomba-brutos é que a porca torce o rabo. O que nos reenvia à tal "guerra inesgotável da propaganda"... Um dos derivados dessa campanha perpétua é a "ditadura cultural das esquerdas"...
Como se processa, em moldes concretos, a guerra eterna da propaganda? Evidentemente, através dum controlo hermético dos mass-media mais influentes, ou pela saturação desinformativa naqueles cujo controlo não é tão viável (a internet, por exemplo). Mas também através de operações tão bizarras quanto o subsídio a partidos da chamada "extrema-direita", cuja função existencial é precisamente conferir sentido e embrulhar em verosimilhança a "guerra permanente" ao fascismo sempre à espreita e pronto a jugular a humanidade democrática (entenda-se, num perfeito intercâmbio marxista, a "humanidade realmente humana", porque emancipada de todos e quaisquer valores verticais). O programa obsessivo é de tal forma repetitivo que qualquer ameaça que adquira, geralmente por investidura propagandística, carácter global é de pronto revestida sob o labéu fetiche - sendo o islamo-fascismo, a mais recente.
Ora, o islamismo terrorista já é suficientemete execrável por si. No entanto, ao adicionar-se-lhe o apêndice "fascismo" está a perpetuar-se, por um lado, a tal guerra antifascista e, por outro, a agravar e adensar os horrores do fascismo com novas eclosões ainda mais terríficas, repugnantes e desumanas. Quer dizer, o fascismo é conotado com atrocidade, degradando-se a algo que não conspira e porfia apenas contra uma determinada forma de regime imposto, mas, outrossim, algo que atenta contra a própria "humanidade", sendo esta, doravante, restringida àqueles que veneram, professam e cultivam a "democracia liberal". Donde resulta a geminação entre os adeptos da democracia popular com os adeptos da democracia liberal: ambos constituem quintas colunas num processo/projecto de submissão global. Ou melhor, constituíam. Porque agora os segundos, praticamente, exercem sem concorrência.
No entanto, persistem nas super-estruturas (dito gramskianamente) hordas de abencerragens esquerdinolentas, herdadas em parte do granel antepassado, geradas no restante sabe-se lá porque superstição infecto-contagiosa. E continuam a debitar a mesma cassete antifascista, sempre que a ocasião o permite, tanto quanto a mesma sociopatia lexorreica escondida no cavalo de Tróia do "estado social". Como explicar esta persistência epidémica?
Se a memória não me falha, era Maurras que dizia «abrindo a maior parte das folhas socialistas ou anarquistas e informando-nos do nome dos seus suportes económicos, verificamos que as mais violentas tiradas contra os ricos são pagas pela plutocracia dos dois hemisférios». Bem, sem querer por agora abarcar o mundo, atenhamo-nos ao rectângulo da península. Não consta que o Partido Comunista seja proprietário de nenhuma das televisões, jornais de maior tiragem ou revistas semanais. Sabemos aliás que todos eles vivem às sopas de grandes grupos económicos cuja finalidade nesta vida não é exactamente instaurar a democracia popular. E à época de Marcello, nos anos 70, nas vésperas do 25, era o Partido Comunista que mandava nos jornais e na televisão? Podemos até elencar os grupos proprietários das principais folhas de couve (de Lisboa): o "Diário da Manhã" era propriedadde da Companhia Nacional Editora e órgão da União Nacional); a Voz era um diário católico e monárquico; Novidades era o órgão oficioso do Patriarcado de Lisboa; o Diário de Notícias, propriedade da Empresa Nacional de Publicidade (principais accionistas: Caixa Geral de Depósitos e a "Moagem") e era um órgão oficioso da Situação; o Século pertencia à família Pereira da Rosa; o Diário Popular tinha como maior accionista Francisco Balsemão; o Diário de Lisboa, tendo como maiores accionistas a família Ruella Ramos, BNU e o grupo Champalimaud, atrvés do Banco Pinto e Sotto Mayor; o República, que poucos compravam... E por aí fora. A haver uma "ditadura cultural da esquerda" (e há, só que não no sentido restrito em que querem camuflar), sabemos, pois, quem a exerce. E sabemos também quem a paga. Vão-me dizer que quem paga e, cada vez mais, não manda? Ou que o Mercado é masoquista?
Então para que serve e a quem serve a "ditadura cultural da esquerda"?
Fica a resposta para um próximo postal, que este já vai mais que longo. E fica também um facto indesmentível, que lhe servirá de enquadramento:
Desde o Estado-Novo até ao Estado-em-que-isto-está o que é que efectivamente aconteceu? Passámos duma ditadura política portuguesa, suavizada, para uma ditadura económica internacional, duríssima. Para que serviu a "ditadura cultural da esquerda"? Para desagregar e dissolver as estruturas de poder nacionais e terraplenar a área para os implantes externos. Depois de entregarmos as colónias, tornámo-nos algo entre a colónia e o protectorado. Como de resto tem sido regra nesta piolheira, desde a Revolução Francesa, com um único intervalo: o período de tempo do Estado-Novo. Pois, é chato, nada bem, pouco fino, desculpem lá, mas foi a única altura em que os credores não mandaram nisto: Salazar correu com eles.
Não sei, pois, dito com franqueza, qual será mais repugnante, se a sabujice e a cobardia entranhada das nossas elites, pseudo-elites e nelites, se a sua recusa em ver a realidade, cobrindo-a de mitos de ocasião e, mais que tudo, de importação. Continuam à cata dos piolhos dos miúdos do Portugal da infância, como se isso fosse o cúmulo das salazarentices e nem percebem que eles próprios são os piolhos que infestam e presidem à testa dum Portugal com os pés para a cova e a cabeça para o lixo.
Nota: No título do postal "incubadoura" subentende um híbrido entre incubadeira e manjedoura.
Assim, quando a Guerra terminou no terreno das operações militares, com a derrota total e arrasadora das forças nacionalistas, não terminou igualmente na propaganda. Pelo contrário, recrudesceu e intensificou-se. O fascismo e o seu zénite nazi foram demonizados a um paroxismo desvairado e ininterrupto, sempre viçoso e sempre a reciclar.-se, que dura até aos dias de hoje. A coisa atingiu tais níveis de requinte que até investigações ou debates de índole histórica, uma vez que duvidem duma espécie de dogmas instituídos, foram criminalizados. Não pretendo com isto tomar posição nesses fenómenos, mas apenas anotá-los e referi-los como provas evidentes da perpetuação da "guerra aos nazis e fascistas" na propaganda e, mais concretamente, no mercado das ideologias totalitárias.
E para que serve esta "guerra inesgotável da propaganda"?
Essencialmente serve para bloquear uma parte inconveniente do espectro político. E camuflar uma livre alternativa eleitoral que, na realidade, não existe, mantendo sob ameaça e anátema qualquer esboço de genuína independência. Ou seja, qualquer forma de "nacionalismo" - entenda-se de legítima defesa dum qualquer país, economia ou cultura contra o internacionalismo corrosivo e diluente da hegemonia (actualmente sintetizada numa plutocracia global) -, é imediatamente interdito a apostrofado de "fascista", "nazi", "ditatorial", etc. A não aceitação cega do modelo de exportação pseudo-democrata e teomercantileira conduz, inexoravelmente, a todo o tipo de sanções, arbitrariedades e, por fim, caso necessário, a uma cartaginização local. Assim, a guerra de propaganda, além de inesgotável, é preventiva. Exerce-se em permência de modo a evitar surtos indesejáveis. Funciona, pois, à escala global, na criação duma hipnosfera que absorva e determine toda a atmosfera geopolítica planetária. É nessa hipnosfera que se formam e desencadeiam as tais "deslocações de ar" históricas.
Quando em Portugal, no pós-25 de Abril , em nome duma higienização antifascista, se ilegaliza a direita, está-se no fundo, com o retardamento de 30 anos, a implementar o "pós-guerra" no derradeiro espaço europeu onde ele ainda não vigorava. Por pouco, aliás, o rectângulo não se dividiu, à semelhança da Alemanha vencida, numa parte pró-ocidental e noutra pró-leste, o que, a verificar-se, mais não replicaria que as duas modalidades vigentes de "antifascismo": Mas num aspecto, a receita dos Aliados para a Alemanha subjugada foi efectivamente repetida entre nós: a "desnazificação alemã" transpôs-se na "desfascismização portuguesa". A punição e terraplenagem retroactiva seguia o seu curso na campanha propagandística. Assim, quando hoje se conclama, também por interesse de propaganda ou mera mentecaptice, que o antifascismo foi uma estrita criação comunista está-se a querer omitir boa parte do quadro. Os comunistas, também por interesse próprio e de propaganda, eram os mais exacerbados na retórica apenas porque procuravam arvorar-se nos mais antifascistas de todos, com isso pretendendo uma superioridade moral que lhes pavimentasse e facilitasse o acesso ao aparelho de Estado entretanto devoluto. Mas todos os outros, criteriosamente autorizados, da extrema-esquerda ao CDS repetiam caninamente o mantra e eram, com juras públicas diárias, antifascistas compenetrados e democratas puritanos da mais elevada extracção. Basta lembrar a recusa de PSD e CDS em participarem na manifestação da "maioria Silenciosa" (prontamente catalogada de fascista"), para orçar da alegre lavagem cerebral em curso. Lavagem que, de resto, permanece nos dias de hoje. Ainda agora, simplesmente por recapitular o Estado-Novo sem ser em tom asséptico e enojadinho, sou de pronto catalogado de "salazarista", "ultra-salazarista", "fascista" (e a descarga não vem exactamente do lado mais à esquerda, o que só espanta quem não conhece de ginjeira este tipo de faunas e tropagandas).
Por conseguinte, explicar um certo predomínio da esquerda apenas como resultado reiterado da agit/prop marxista-leninista é não querer ver o principal. Basta comparar os meios`de difusão e o acesso desses meios à generalidade da população lusitana (situemo-nos apenas nos anos 60 e 70, para facilitar) entre a propaganda anglo-saxónica e a propaganda soviética. E é confundir um mero expediente oportunistas (como foi o assalto da 5ª coluna soviética) com toda uma predisposição anteriormente cultivada, fomentada e induzida por filmes, folhetins, séries televisivas e até revistas de banda desenhada, como a lendária "Falcão", onde heróis "aliados" como o Major Alvega, o agente Ene 3 ou a intrépida Mamselle X, convertiam as criancinhas desde tenra idade ao antifascismo precoce e à fobia pelas pérfidas suásticas. Para o luso petiz, a certa altura, matar alemães nazis era tão lógico e urgente quanto matar baratas. Além de ignóbeis e péssimos, os alemães (como os japoneses) eram um estúpidos, falhados e perdedores natos. Imagine-se agora o pimpolho, já em plena adolescência, quando um qualquer colega de liceu ou faculdade, devidamente insinuante, lhe segredava que o regime português era fascista, filonazi e mantinha um campo de concentração nas Berlengas... Obstar-me-ão, "credo, Dragão, que exagero! Coitado do Major Alvega..." Pois, e ainda por cima tinha costela lusitana, o antifascista voador. Mas o facto é que muito do despenteamento mental que se verte até hoje acerca de fornicoques antifascistas e anti-salazaristas está ao nível das revistinhas do Major Alvega e traduz apenas um estado perpetuamente cultivado de credulidade infantil e inteligência larvar.
Tudo isto para explicar uma coisa muito simples e elementar: sem a criação e fertilização do terreno com toda uma predisposição antifascista (da qual o regime não se sentia afectado nem ameaçado, porque não era de facto fascista, nem nunca tinha sido), o antifascismo peregrino e depois de choque na pós-golpada dos Cravos jamais teria vicejado com tão inusitada e desarvorada "espontaneidade". A rápida associação do Estado-Novo, quer ao léxico maldito quer a símbolos repugnantes como a suástica, ou figuras fardadas ao mais tenebroso estilo SS, trataram de converter rapidamente a imaginação pública à distorção confeccionada.
Por outro lado, acreditar que as pessoas andavam sofregamente a ler Marx (e derivados) na clandestinidade, porque em sendo proibido, como toda a pornografia, tornava-se mais apetitoso é claramente delirante. A seita comunista nunca se caracterizou por estudar ou conhecer Marx ou Lenine, como os católicos não passam grande cartão à Bíblia Sagrada. Tirando o clero do comité e da nomenklatura pastorais, que lêem vagamente (e em boa parte nem entendem para lá da vulgata evangélica), as hordas militantes não precisam sequer de ser alfabetizadas (aliás, quanto mais analfabetas, melhor). Partilham a fé, cultivam o fanatismo, dispensam a gnose. Cumprem o que o camarada secretário-geral e o comité decretam; escutam os sermões e as prédicas e prestam-se ao martírio, se necessário for, com todas as suas forças. (Não é por acaso que o Partido Comunista sempre confiou mais nos operários do que nos intelectuais aburguesados: estes, com duas chapadas na Pide, borravam-se e abriam-se todos; aqueles enfrentavam monumentais sovas e martírios e resistiam com a devoção dos mártirtes compenetrados). A ideia que prevaleceu na revolucionite subsequente, e ao longo sobretudo do PREC, não teve muito que ver com pré-leituras ou requintes elaborados de propaganda previamente subministrada em saraus culturais na clandestinidade penumbral das catacumbas: foi um simples engodo pelo saque, pelo desforço, pelo amarinhamento social de ocasião. A conspiração nunca excedeu por aí além a patuscada. Nem antes nem depois do 25/74. O fáxista era o patrão, o senhorio, o rico, o proprietário de alguma coisa, o professor, o polícia, o GNR, enfim, tudo o que de alguma forma representasse a ordem anterior e constituísse obstáculo ao saque e subsequente alpinismo dos candidatos desensofridos à exploração económica da nova (des)ordem. Ao nível da burguesa mais letrada ou dada aos quadradinhos, o panorama não variava muito: houve sobretudo arrivismo e reviralho premeditado, ou instantâneo, de quem, a partir de frequentes injecções de estrangeirina, estava mais do que de prevenção para a mudança a qualquer momento. Mudaram rapidamente de casaca os pais, na grande maioria para garantia do património, e dispersaram em várias direcções os filhos, apontando, em bom ritmo e ruído, aos trampolins dos tachos do amanhã que, esses sim, sempre cantam. (contabilizem-se todos aqueles que, oriundos da extrema-esquerda, treparam a posições de relevo no Centrão desgovernativo)... O fenómeno "adesivo" já referido em relação ao 5 de Outubro de 1910, foi ainda mais transbordante no 25 de Abril.. Adaptatóide nato, o vulgar português, percebeu num ápice que se virava uma página e cumpria aderir ou, no menos precipitado dos casos, aguardar para ver para que lado tombava a balança (para então correr a alistar-se, ou ajustar o léxico e o discurso). O que explica, calma e inequivocamente, como, numa noite de Abril, o país acordou de esquerda socialista, e noutra noite de Novembro, o mesmo país, acordou curado e prontíssimo para o parlamentarismo liberal.
Entre nós, basta controlar os megafones, que o resto vai de arrasto. Ora, neste controlo dos bomba-brutos é que a porca torce o rabo. O que nos reenvia à tal "guerra inesgotável da propaganda"... Um dos derivados dessa campanha perpétua é a "ditadura cultural das esquerdas"...
Como se processa, em moldes concretos, a guerra eterna da propaganda? Evidentemente, através dum controlo hermético dos mass-media mais influentes, ou pela saturação desinformativa naqueles cujo controlo não é tão viável (a internet, por exemplo). Mas também através de operações tão bizarras quanto o subsídio a partidos da chamada "extrema-direita", cuja função existencial é precisamente conferir sentido e embrulhar em verosimilhança a "guerra permanente" ao fascismo sempre à espreita e pronto a jugular a humanidade democrática (entenda-se, num perfeito intercâmbio marxista, a "humanidade realmente humana", porque emancipada de todos e quaisquer valores verticais). O programa obsessivo é de tal forma repetitivo que qualquer ameaça que adquira, geralmente por investidura propagandística, carácter global é de pronto revestida sob o labéu fetiche - sendo o islamo-fascismo, a mais recente.
Ora, o islamismo terrorista já é suficientemete execrável por si. No entanto, ao adicionar-se-lhe o apêndice "fascismo" está a perpetuar-se, por um lado, a tal guerra antifascista e, por outro, a agravar e adensar os horrores do fascismo com novas eclosões ainda mais terríficas, repugnantes e desumanas. Quer dizer, o fascismo é conotado com atrocidade, degradando-se a algo que não conspira e porfia apenas contra uma determinada forma de regime imposto, mas, outrossim, algo que atenta contra a própria "humanidade", sendo esta, doravante, restringida àqueles que veneram, professam e cultivam a "democracia liberal". Donde resulta a geminação entre os adeptos da democracia popular com os adeptos da democracia liberal: ambos constituem quintas colunas num processo/projecto de submissão global. Ou melhor, constituíam. Porque agora os segundos, praticamente, exercem sem concorrência.
No entanto, persistem nas super-estruturas (dito gramskianamente) hordas de abencerragens esquerdinolentas, herdadas em parte do granel antepassado, geradas no restante sabe-se lá porque superstição infecto-contagiosa. E continuam a debitar a mesma cassete antifascista, sempre que a ocasião o permite, tanto quanto a mesma sociopatia lexorreica escondida no cavalo de Tróia do "estado social". Como explicar esta persistência epidémica?
Se a memória não me falha, era Maurras que dizia «abrindo a maior parte das folhas socialistas ou anarquistas e informando-nos do nome dos seus suportes económicos, verificamos que as mais violentas tiradas contra os ricos são pagas pela plutocracia dos dois hemisférios». Bem, sem querer por agora abarcar o mundo, atenhamo-nos ao rectângulo da península. Não consta que o Partido Comunista seja proprietário de nenhuma das televisões, jornais de maior tiragem ou revistas semanais. Sabemos aliás que todos eles vivem às sopas de grandes grupos económicos cuja finalidade nesta vida não é exactamente instaurar a democracia popular. E à época de Marcello, nos anos 70, nas vésperas do 25, era o Partido Comunista que mandava nos jornais e na televisão? Podemos até elencar os grupos proprietários das principais folhas de couve (de Lisboa): o "Diário da Manhã" era propriedadde da Companhia Nacional Editora e órgão da União Nacional); a Voz era um diário católico e monárquico; Novidades era o órgão oficioso do Patriarcado de Lisboa; o Diário de Notícias, propriedade da Empresa Nacional de Publicidade (principais accionistas: Caixa Geral de Depósitos e a "Moagem") e era um órgão oficioso da Situação; o Século pertencia à família Pereira da Rosa; o Diário Popular tinha como maior accionista Francisco Balsemão; o Diário de Lisboa, tendo como maiores accionistas a família Ruella Ramos, BNU e o grupo Champalimaud, atrvés do Banco Pinto e Sotto Mayor; o República, que poucos compravam... E por aí fora. A haver uma "ditadura cultural da esquerda" (e há, só que não no sentido restrito em que querem camuflar), sabemos, pois, quem a exerce. E sabemos também quem a paga. Vão-me dizer que quem paga e, cada vez mais, não manda? Ou que o Mercado é masoquista?
Então para que serve e a quem serve a "ditadura cultural da esquerda"?
Fica a resposta para um próximo postal, que este já vai mais que longo. E fica também um facto indesmentível, que lhe servirá de enquadramento:
Desde o Estado-Novo até ao Estado-em-que-isto-está o que é que efectivamente aconteceu? Passámos duma ditadura política portuguesa, suavizada, para uma ditadura económica internacional, duríssima. Para que serviu a "ditadura cultural da esquerda"? Para desagregar e dissolver as estruturas de poder nacionais e terraplenar a área para os implantes externos. Depois de entregarmos as colónias, tornámo-nos algo entre a colónia e o protectorado. Como de resto tem sido regra nesta piolheira, desde a Revolução Francesa, com um único intervalo: o período de tempo do Estado-Novo. Pois, é chato, nada bem, pouco fino, desculpem lá, mas foi a única altura em que os credores não mandaram nisto: Salazar correu com eles.
Não sei, pois, dito com franqueza, qual será mais repugnante, se a sabujice e a cobardia entranhada das nossas elites, pseudo-elites e nelites, se a sua recusa em ver a realidade, cobrindo-a de mitos de ocasião e, mais que tudo, de importação. Continuam à cata dos piolhos dos miúdos do Portugal da infância, como se isso fosse o cúmulo das salazarentices e nem percebem que eles próprios são os piolhos que infestam e presidem à testa dum Portugal com os pés para a cova e a cabeça para o lixo.
Nota: No título do postal "incubadoura" subentende um híbrido entre incubadeira e manjedoura.
terça-feira, maio 12, 2015
Da propaganda
Segundo o Shelltox Concise do Dragão:
Propaganda - s.f., arte de transformar desconceitos (ou pseudo-conceitos) em preconceitos; acto ou efeito de propagar ou difundir a ignorância mascarada de ideia, opinião ou doutrina; associação que tem por fim a propagação de doenças mentais.
Convirá ter bem presente quando aqui se falar da "ditadura cultural da esquerda".
sábado, maio 09, 2015
Prenúncios, mais que Arquétipos (r)
Retiro a descrição de Graves, por me parecer clara e sucinta:
"Salmoneu, filho ou neto de Éolo e Enarete, reinou durante algum tempo na Tessália antes de partir, à cabeça de uma colónia eólica, para os confins orientais da Élida, onde construiu a cidade de Salmone, não muito distante da nascente do rio Enipeu, afluente do Alfeu. Salmoneu era odiado por todos os seus súbditos, e levava tão longe a sua insolência e o seu orgulho real que chegou ao ponto de transferir os sacrifícios de Zeus para os seus próprios altares, anunciando a todo o povo que era Zeus. Costumava mesmo percorrer as ruas de Salmone, arrastando ruidosamente atrás do carro enormes caldeirões de bronze, presos por fortes cordões de couro, para simular o trovão de Zeus, e lançando para o ar tochas de carvalho em chamas; algumas destas, ao caírem, queimavam os infelizes súbditos, que eram forçados a tomá-las por relâmpagos. Um belo dia, Zeus puniu Salmoneu, desferindo um raio a sério, que não só o destruiu a ele, carro e tudo o mais, como também incendiou a cidade inteira."
Salmoneu, note-se, como todos os nomes míticos, não é um nome qualquer, ao acaso. Pelo contrário, possui uma significação precisa, um simbolismo exacto. Fusão de "saleyw" e "monos", pode ser traduzido como "agitado-sòmente", "pavão-sòmente" ou "sòmente-ruído/algazarra". Salmone, a cidade - a cidade fundada por Salmoneu, e forçada a venerá-lo como um Deus (por conseguinte, obrigada a tomar por verdade a mentira e a falsificação), indica a mesmíssima ideia: só agitação, só clamor/ruído, apenas pavoneio, exclusivo vácuo exorbitante.
Podemos imaginar Salmone, o reino de Salmoneu, como uma cidade mítica, perdida algures num passado remoto, por entre as brumas duma dimensão fabulosa. Mas também podemos entendê-la como um aviso, como um quadro intemporal, como algo que resultará necessariamente de algo, isto é, "se fizeres assim, é isto que acontece". Evidentemente, o ser humano tem a liberdade de fazer assim. O resultado subsequente, porém, é não se livrar das consequências que advirão fatalmente. Pensas que podes fugir às lágrimas agora, mas não te hás-de rir depois. Dir-se-ia, portanto, que a tão famosa e (ultimamente) tão celebrada liberdade do ser humano é devir escravo fatal dos efeitos dessa liberdade.
Mas que "assim" é este para o qual o mito nos admoesta? Abreviando no sermão, é a impiedade. Ora, a impiedade constitui uma das grandes - senão o maior - abismo da mitologia. A limite, coroa a hubris, significa-a no seu zénite. E o que é realmente a "impiedade"? Que significa, de facto, o ser ímpio?
Recorrendo ao vulgar dicionário, na actualidade, temos a impiedade como "falta de piedade", "acto ímpio", "blasfémia", "sacrilégio", "crueldade", etc; e ímpio como "aquele que não tem piedade ou compaixão", "desumano", "cruel". Pois bem, na mitologia grega a impiedade significa em primeiro lugar "falta de respeito pelo divino". Podendo ser, e sendo usualmente, uma falta individual, acarreta, todavia, e regra geral, sanções não apenas individuais mas colectivas. O ímpio atrai a ira dos deuses e do Cosmos (ou seja, da ordem eterna) não apenas sobre si mas também sobre a sua própria philos e polis, isto é, sobre a sua própria família e cidade. Como, de resto, podemos comprovar no mito em epígrafe: Zeus não apenas fulmina Salmoneu como arrasa toda a cidade.
O coro da Antígona reflecte sobre isso mesmo: "desde as mais remotas eras, uma lei eterna vigora: a cada excesso do homem logo sucede rapidamente a desventura". E o pior de todos os excessos reside na tolmas (a soberba)
Olhando ao nosso tempo, teremos que constatar a impiedade como algo, mais que normalizado, banalizado. Toda uma pretensa humanidade cada vez mais instruída, mecânica e iluminada ou duvida que haja qualquer espécie de divino, ou, embora proclamando-se fervorosa crente na doutrina x, y ou z, age como se não houvesse (ou lhe servisse apenas de instrumento a quaisquer ganas ou aleivosias). Não admira, pois, que neste nosso tempo, após uma evolução de séculos, impiedoso adquira contornos quase absolutos de "falta contra o humano", de crueldade ou desumanidade (tal qual aparece no dicionário). E, convenhamos, faz todo o sentido. Em nada escapa ao encadeamento previsto ancestralmente.
Como passo a explicar.
Numa frase muito simples: acham, Vossas digníssimas Excªs, meus raros e caros leitores, que um tipo que não respeita os deuses respeita os homens? Que quem não respeita o superior, vai depois, por certo miraculosamente, respeitar o igual? Pior: Que alguém que proclama "nada existe superior a mim! Eu sou o cume, o zénite, o vértice!", tem depois tendência, seguramente angélica, para ver igualdade em seu redor?
Ou será que a impiedade para com os deuses não resultará, necessariamente, na impiedade para com os homens? Ou será que a impiedade não acarreta, fatalmente, a desumanidade - que começa por ser uma falta de proporção para com o distinto e se transforma depois numa falta de proporção para com o semelhante? Que principia sendo um descaso do extraordinário e culmina num desprezo pelo comum?
Que faz Salmoneu? Imagina-se deus e, por inerência de funções, acha-se no pleno direito de flagelar os homens. Porque Salmoneu não se contenta em ser rei: cisma de ser deus. Não pretende fundar apenas uma cidade: arroga-se a fundação e a direcção de um cosmos, ou, no mínimo, dum mundo. Quer dizer, arvora-se prerrogativas sobre-humanas que se revelam, susequentemente, desumanas. Por outras palavras: a falsa sobre-humanidade é, na verdade, uma dupla desumanidade. Não sendo o homem nem o macaco de Deus nem o deus de outros homens, ao desmedir-se - quer exorbitando-se, quer nanificando os outros -, está a não ser homem duplamente. Os antigos tinham perfeita noção disto. Nós, aterrorizados com as constantes tochas que caem do céu, já não temos perfeita noção de coisa nenhuma.
Salmoneu e a sua Salmone representam-nos, projectam-nos lá das profundezas misteriosas do tempo. Prenunciam-nos. Os mitos, se calhar, são a eternidade a rir-se de nós.
Salmoneu, note-se, como todos os nomes míticos, não é um nome qualquer, ao acaso. Pelo contrário, possui uma significação precisa, um simbolismo exacto. Fusão de "saleyw" e "monos", pode ser traduzido como "agitado-sòmente", "pavão-sòmente" ou "sòmente-ruído/algazarra". Salmone, a cidade - a cidade fundada por Salmoneu, e forçada a venerá-lo como um Deus (por conseguinte, obrigada a tomar por verdade a mentira e a falsificação), indica a mesmíssima ideia: só agitação, só clamor/ruído, apenas pavoneio, exclusivo vácuo exorbitante.
Podemos imaginar Salmone, o reino de Salmoneu, como uma cidade mítica, perdida algures num passado remoto, por entre as brumas duma dimensão fabulosa. Mas também podemos entendê-la como um aviso, como um quadro intemporal, como algo que resultará necessariamente de algo, isto é, "se fizeres assim, é isto que acontece". Evidentemente, o ser humano tem a liberdade de fazer assim. O resultado subsequente, porém, é não se livrar das consequências que advirão fatalmente. Pensas que podes fugir às lágrimas agora, mas não te hás-de rir depois. Dir-se-ia, portanto, que a tão famosa e (ultimamente) tão celebrada liberdade do ser humano é devir escravo fatal dos efeitos dessa liberdade.
Mas que "assim" é este para o qual o mito nos admoesta? Abreviando no sermão, é a impiedade. Ora, a impiedade constitui uma das grandes - senão o maior - abismo da mitologia. A limite, coroa a hubris, significa-a no seu zénite. E o que é realmente a "impiedade"? Que significa, de facto, o ser ímpio?
Recorrendo ao vulgar dicionário, na actualidade, temos a impiedade como "falta de piedade", "acto ímpio", "blasfémia", "sacrilégio", "crueldade", etc; e ímpio como "aquele que não tem piedade ou compaixão", "desumano", "cruel". Pois bem, na mitologia grega a impiedade significa em primeiro lugar "falta de respeito pelo divino". Podendo ser, e sendo usualmente, uma falta individual, acarreta, todavia, e regra geral, sanções não apenas individuais mas colectivas. O ímpio atrai a ira dos deuses e do Cosmos (ou seja, da ordem eterna) não apenas sobre si mas também sobre a sua própria philos e polis, isto é, sobre a sua própria família e cidade. Como, de resto, podemos comprovar no mito em epígrafe: Zeus não apenas fulmina Salmoneu como arrasa toda a cidade.
O coro da Antígona reflecte sobre isso mesmo: "desde as mais remotas eras, uma lei eterna vigora: a cada excesso do homem logo sucede rapidamente a desventura". E o pior de todos os excessos reside na tolmas (a soberba)
Olhando ao nosso tempo, teremos que constatar a impiedade como algo, mais que normalizado, banalizado. Toda uma pretensa humanidade cada vez mais instruída, mecânica e iluminada ou duvida que haja qualquer espécie de divino, ou, embora proclamando-se fervorosa crente na doutrina x, y ou z, age como se não houvesse (ou lhe servisse apenas de instrumento a quaisquer ganas ou aleivosias). Não admira, pois, que neste nosso tempo, após uma evolução de séculos, impiedoso adquira contornos quase absolutos de "falta contra o humano", de crueldade ou desumanidade (tal qual aparece no dicionário). E, convenhamos, faz todo o sentido. Em nada escapa ao encadeamento previsto ancestralmente.
Como passo a explicar.
Numa frase muito simples: acham, Vossas digníssimas Excªs, meus raros e caros leitores, que um tipo que não respeita os deuses respeita os homens? Que quem não respeita o superior, vai depois, por certo miraculosamente, respeitar o igual? Pior: Que alguém que proclama "nada existe superior a mim! Eu sou o cume, o zénite, o vértice!", tem depois tendência, seguramente angélica, para ver igualdade em seu redor?
Ou será que a impiedade para com os deuses não resultará, necessariamente, na impiedade para com os homens? Ou será que a impiedade não acarreta, fatalmente, a desumanidade - que começa por ser uma falta de proporção para com o distinto e se transforma depois numa falta de proporção para com o semelhante? Que principia sendo um descaso do extraordinário e culmina num desprezo pelo comum?
Que faz Salmoneu? Imagina-se deus e, por inerência de funções, acha-se no pleno direito de flagelar os homens. Porque Salmoneu não se contenta em ser rei: cisma de ser deus. Não pretende fundar apenas uma cidade: arroga-se a fundação e a direcção de um cosmos, ou, no mínimo, dum mundo. Quer dizer, arvora-se prerrogativas sobre-humanas que se revelam, susequentemente, desumanas. Por outras palavras: a falsa sobre-humanidade é, na verdade, uma dupla desumanidade. Não sendo o homem nem o macaco de Deus nem o deus de outros homens, ao desmedir-se - quer exorbitando-se, quer nanificando os outros -, está a não ser homem duplamente. Os antigos tinham perfeita noção disto. Nós, aterrorizados com as constantes tochas que caem do céu, já não temos perfeita noção de coisa nenhuma.
Salmoneu e a sua Salmone representam-nos, projectam-nos lá das profundezas misteriosas do tempo. Prenunciam-nos. Os mitos, se calhar, são a eternidade a rir-se de nós.
sexta-feira, maio 08, 2015
As pátrias de silicone e do cuspe
Recriminam e desprezam o país singular e com assento, mas deviam antes culpar e barafustar com o pais plural e sem assento. Foram despejados, ranhosos e chorões, a borrar fraldas no sítio errado. Em data imprópria. Devia o destino ter-lhes dado outros pais, ou os pais ido deitá-los a outro país. Um país grande, poderoso e rico. Sobretudo, rico; podia até ser pequeno.Mas competitivo. Sofisticado. Ao nível da auto-estima (ou ego delirante) destes estrangeiros adoptivos. Tiveram um grande azar? Azar temos nós e esta terra por termos que aturar estes descompatriotas tão frustrados. Há uns que nascem, dizem, com um sexo na cabeça diferente do entrepernas; estes cultuam na mona uma´pátria diferente da que trazem no sangue. São uma espécie de transnacionais: com geo-afeições de silicone ou sentimentos de pertença criados a hormona. De Salazar, embora de forma perversa, mantêm o "a pátria não se discute" - não se discute, claro está, a da prótese mental. Porque a outra, a do BI, essa discute-se, vitupera-se e fustiga-se até à enésima geração e aos próprios espermatozóides do Fundador!...
E também, dos infindáveis e retorcidos crimes que assacam a Oliveira Salazar, há um em que o suplantam e ultrapassam em larga escala: sempre era mais realizável implantar Portugal em Angola do que transplantar os Estados Unidos para Portugal.
Sombrios tempos estes, em que sobreabunda quem prefira a pátria do cuspe à pátria do sangue.
quarta-feira, maio 06, 2015
Acromiomancia Revisitada -XXVII. O Príncipe e o Pobre
Em 16 de Abril de 1961, três dias após a tentativa de golpe de Estado de Botelho Moniz, conhecido pela "Abrilada", Salazar faz o convite formal a Franco Nogueira para assumir a pasta dos Negócios Estrangeiros...
«De toda a casa, numa paz de domingo, somente o silêncio parecia ter densidade e presença física. E Salazar estava sereno, quase jovial, sem preocupações, sem dramas, sem problemas, como se o regime e ele próprio não houvessem estado em jogo há três ou quatro dias. De rosto pálido, mas adio; aspecto escanhoado, meticuloso, apurado; e apenas os olhos em movimento constante verrumavam com avidez insaciável os ângulos da sala. E pareceu-me ao mesmo tempo o vulto da solidão: alheio ao mundo, para lá dos homens, acima dos caminhos de superfície e dos acontecimentos, em paz com os séculos e a terra antiga. De súbito, sem um gesto, entre duvidoso e afirmativo, numa voz afável e cativante:
-"Dizem-me que está então disposto a fazer o sacrifício de assumir a responsabilidade dos Negócios Estrangeiros?"
Atalhei: reconhecia que fora objecto de sondagens e insistências, em especial da parte de Marcello Mathias. Mas haviam sido negativas as minhas reacções. Tinha mil motivos: de saúde, de ordem pessoal, outros mais. Eu não podia compreender como chegara o presidente do Conselho a um juízo diverso. E Oliveira Salazar não mostra surpresa, nem traço de agastamento, ou de impaciência. E diz, com lentidão compreensiva:
-"Eu sei, eu sei que não é um salazarista nem é igual à minha a sua formação, e que tem outras ideias sobre o governo. Sei que se situa num campo político diferente."
Interrompo para dizer que efectivamente assim era, sem prejuízo do respeito e admiração pessoal pela figura do chefe do governo. Salazar continua:
-"Mas eu sei também que é um patriota, e eu não lhe peço compromisso político ou declaração em qualquer sentido. estamos num momento de crise, e esta é nacional, e por isso apelo para o seu patriotismo. E apenas lhe quero fazer três perguntas. Concorda com a política ultramarina definida desde há anos e reiterada nos últimos dias? Em sua opinião, julga que dispomos dos meios suficientes para executar essa política? E um último ponto: pensa que vale a pena fazer um esforço para defender os valores que estão em causa? É só isto que quero saber."
Salazar calou-se, observava-me com um olhar agudo e intenso, sem um gesto, sem alterar a expressão do rosto. Respondi às perguntas. Não tinha dúvidas no meu espírito de que a política ultramarina era correcta, e a que mais convinha aos interesses nacionais; se bem usados, com tenacidade, frieza, lucidez, os nossos meios deveriam ser bastantes para a vitória, ainda que a longo prazo; e também não tinha dúvidas de que, perante valores tão imensos e vitais, todo o esforço valia a pena. Não devíamos em nenhum caso render-nos sem luta. E Salazar logo cortou:
-"Sendo assim, não vejo como pode recusar a sua colaboração. Sim, eu compreendo a sua repugnância e a sua fadiga. Mas creia que também estou fazendo um sacrifício por vezes insuportável. E sabe? Estou sempre número um para tomar o rápido para Coimbra e Santa Comba. E também estou cansado. Mas logo que me sinto cansado, paro e descanso, e depois posso trabalhar melhor. Faça o mesmo, lembre-se do meu exemplo quando estiver exausto. E vamos ver, vamos tentar. Quanto tempo duraremos? Não sei. Três meses? Seis meses? Sobre a política não tenho dúvidas ou hesitações; mas até onde poderemos ir? Veremos. Mas isto é só para nós. Para a opinião pública, para o país, só temos certezas e confianças. Quando encontrar um obstáculo intransponível, então reconsideraremos. Mas temos de partir do princípio de que venceremos todos os obstáculos."
Houve uma pausa. Eu, em desespero, recorro a todos os argumentos, e deixo cair: "nem pertenço à União Nacional". Comenta Salazar com rápida vivacidade: "ah! nem pertença, nem pertença!" Salazar faz então um exame da situação internacional, uma avaliação das forças em presença, um resumo das críticas que a oposição lhe dirige. Depois:
- "E no fundo de que acusam? Alegam que o ambiente internacional nos é desfavorável. Pois é, isso é. Mas que culpa tem o governo? Vendo bem, estão a acusar-nos de ter perdido as eleições no Brasil e nos Estados Unidos. Mas então, porque nos é hostil num dado momento a atmosfera internacional, nós vamos mudar a nossa política? Então os interesses portugueses estão dependentes de quem manda no Rio ou em Washington? Não pode ser. Olhe: sentado nessa cadeira, aí onde o senhor está, o general Botelho Moniz dizia-me que tínhamos de ceder, ou ao menos fingir que cedíamos, em face das pressões americanas ou outras, e ao menos pintar a fachada das cores que eles quisessem. Como se os outros se deixassem convencer com fingimentos! Histórias! Não podemos ser ingénuos, nem julgar que os outros são. E quanto ao Ministério dos estrangeiros, nada lhe digo: o senhor conhece os serviços e o trabalho como ninguém.»
- Franco Nogueira, Um Político Confessa-se (Diário 1960-1968)
O Dr Oliveira Salazar não foi, nem pretendeu ser, um santo. Ou, tão pouco, eu pretendo canonizá-lo a título póstumo. Mas se na política interna vários pecados e pecadilhos lhe poderão se assacados, já na política externa, não me restam grandes dúvidas: o Homem esteve ao nível dos melhores da nossa história. Tendo em atenção aquilo que teve que enfrentar, a desproporção de forças, a falta de meios, etc, direi que alcançou o assombroso. Da parte que me toca, enquanto português, suscita-me dois sentimentos maiores: gratidão e respeito. Como aqueles que nutro pelo Fundador, pelo Infante, por D.João II, Albuquerque e tantos outros que nos dignificaram e ilustraram enquanto povo.
Quanto ao episódio em epígrafe, realço que Jânio Quadros abdicou ainda durante 1961 e Kennedy foi abatido a tiro dois anos depois (admira-me como nunca suspeitaram da PIDE). Para aqueles que acham que a nossa política externa se devia guiar pelas eleições dos outros países e subsequentes peripécias políticas (como, de resto, é uso actual) talvez o mais indicado fosse seleccionar os Ministros dos Negócios Estrangeiros entre os funâmbulos e artistas de circo, porque seriam, seguramente, sujeitos que passariam a vida entre o contorcionismo, o malabarismo e as cambalhotas (isto, embora os actuais só consigam habilidades ao nível do palhaço pobre).
Quanto ao episódio em epígrafe, realço que Jânio Quadros abdicou ainda durante 1961 e Kennedy foi abatido a tiro dois anos depois (admira-me como nunca suspeitaram da PIDE). Para aqueles que acham que a nossa política externa se devia guiar pelas eleições dos outros países e subsequentes peripécias políticas (como, de resto, é uso actual) talvez o mais indicado fosse seleccionar os Ministros dos Negócios Estrangeiros entre os funâmbulos e artistas de circo, porque seriam, seguramente, sujeitos que passariam a vida entre o contorcionismo, o malabarismo e as cambalhotas (isto, embora os actuais só consigam habilidades ao nível do palhaço pobre).
Posto isto, permitam-me uma pergunta simples: se os pais não obrigassem os filhos a ir à escola, eles iam? Ultimamente, até deveria reformular a questão, para ser mais fiel à realidade: se o Estado, a polícia, os tribunais, os psicólogos e as assistentes sociais não obrigassem os pais a enviar os filhos à escola, eles, os filhos, levantavam-se de manhã, com as galinhas ou os autocarros, para lá irem?
Vamos acusar os pais de ditadura, tirania ou fascismo? Vamos acusar o Estado? Os pais fazem aquilo por autoritarismo e prepotência?
Mutatis mutantis, se Oliveira Salazar não obrigasse os militares a irem à guerra eles iam? Ponhamos de parte as objecções do estilo "ah, Dragão, mas mandar os militares à guerra não é a mesma coisa que mandar os filhos à escola... são duas dimensões totalmente inconciliáveis, bla-bla, por aí fora. Balelas! Até porque, nos Estados Unidos, ir à escola já é mais perigoso que ir à guerra, e dado que os objectores, geralmente, entendem os Estados Unidos como o paradigma do progresso, do paraíso e da ventoinha histórica, se ainda não é assim entre nós, já deveria ser ou lá chegaremos a breve trecho. Está pois mais do que legitimada a analogia. Portanto, repito: iam, os senhores militares, se não fossem obrigados? Bem, eles tentaram não ir. O golpe de Botelho Moniz era para tratar dessa isenção. Para quê arranjar chatices, só porque uns pretos ganzados trucidam à catanada meia dúzia de centenas de colonos avulsos?
Todavia, deixem que pergunte, se os militares não servem para ir à guerra, então servem para quê? Para consumir uma fatia avultada do orçamento de estado e andar a desfilar nas paradas ou a posar em cerimónias oficiais? Anda o país a gastar um ror de dinheiros em armas, a escutar os permanentes lamentos dos generais que a panóplia está obsoleta, minguante e tal, e depois, na hora do serviço, do trabalhinho a sério, metem baixa? Ah, que estão com a menstruação mental, uma dismenorreia do caraças... Vou discutir o quê? Com meninas, senhoras e sopeiras incomodadas não sei com que mosquitos, não disponho nem de bagagem técnica nem de vocação para esse tipo de lavores. Foi Salazar que inventou, ocupou ou peregrinou unilateralmente o Ultramar? Foi ele o primeiro a pegar em armas para o defender? Quebrou uma tradição santa e ancestral de pacifismo cosmopolita? Não era o dever dele, como representação máxima da nação, defendê-la e zelar pelos seus interesses? A nação é apenas o seu presente, ou é o seu passado, o seu presente e os seu futuro? A nação deve render-se às prioridades mentais de palradores iluminados, pseudo-elites da treta ou possidónios da verdade do cuspo? . Descubro que a cultura gay S&M, aos poucos vai contaminando a própria historiolalia: temos agora os apologetas da passividade, da submissão e do masoquismo geopolítico. A questão não é se nos entregamos ao calmeirão do planeta (doravante convertido a penitenciária): a discussinha é sobre que qualidade de vaselina, com a devida autorização do bruto, devemos usar.
Pois, as meninas desculpem-me, mas esse tipo de colóquio hão-de tê-lo, umas com as outras, lá no vosso gineceu, mas não certamente comigo.
E no que refere aos militares, ainda é mais rigoroso: qual é o dever, a missão e a razão de ser do militar em tempo de paz? Preparar-se para a guerra. nem mais. Com todas as suas energias e forças. Portanto, a primeira questão legítima que deve colocar-se é: estavam os militares portugueses preparados para a guerra ultramarina?
Não. Toda a sua projecção bélica apontava para o teatro de operações na Europa, num ambiente de guerra convencional (sem mosquitos e boas infraestruturas turísticas, enfim). O que era, no mínimo, um tanto ou quanto bizarro, para não dizer autista. Havia já escaramuças com a União Indiana, e em África era mais que evidente que, mais dia menos dia, irromperiam problemas. Culpa de quem - do Salazar do costume, ou das altas chefias das Forças Armadas, cuja missão é precisamente analisar, avaliar e providenciar às esferas políticas informação permanente e atempada do estado e evolução da situação estratégica (em termos militares, no mínimo)?
Há uma reunião do Conselho Superior de Defesa, realizada em 1959, de que o então Secretário de Estado da Administração Ultramarina, Álvaro da Silva Tavares, dá nota e que é bastante elucidativa:
Pela directiva do EME de 12/10/1959 são criadas as Companhias de Caçadores Especiais, as primeira a expressarem uma conversão do ensino de Guerra Convencial para o terino de Contra-Guerrilha. No ano seguinte é criado o CIOE ( Centro de Instrução de Operações Especiais) em Lamego. Mas em matéria de dispositivo, reforço e prevenção no terreno, pouco ou nada é feito. Quando o terrorismo da UPA eclode no Norte de Angola, os portugueses são apanhados com as calças na mão, o que amplia a dimensão dos massacres, no terreno e no tempo. E, em teoria, devia ter bastado para provocar a descolonização apressada.
O facto é que os altos responsáveis militares, onde já pontificava Costa Gomes (Subsecretário do Exército) e Viena de Lemos (futuro Subsecretário de Marcello, aquando do 25 de Abril), andaram, literalmente, a descurar as vulnerabilidades, como que a preparar , em primeiro lugar, o terreno para o pânico generalizado, à moda belga, no enfiamento da erupção terrorista.
Mas se os militares pouco fizeram, ou fizeram ao contrário do que deveriam (inclusivamente desguarnecendo o dispositivo), já as autoridades civis tomaram medidas visíveis e importantes no sentido de retirar pretextos à subversão. Chegado a Luanda, o novo Governador-geral de Angola, enceta medidas urgentes
Entretanto, a acção concertada a vários níveis e vários palcos visando a liquidação do espaço ultramarino português está mais do que balizada e é pacificamente reconhecida, da esquerda à direita: operação intrinsecamente americana, prepara e movimenta os seus peões, de acordo a uma lógica pré-estabelecida. A ignição do conjunto tem a forma duma espécie de "ultimatum", transmitido pelo Embaixador americano, da parte de Kennedy, a Salazar. Um ex-secretário deste, descreve a visita:
De seguida, a 15 de Maço irrompem as chacinas da UPA (movimento previamente confeccionado por um cluster de missionários evangélicos, delegados da CIA e negociantes avulsos, passe a redundância). Pouco tempo antes, no Zaire, Lumumba, dirigente congolês pró-soviético é deposto por Mobutu. Nos dias que precederam o levantamento da UPA, a CIA trata da eliminação física de Lumumba de modo a que o empreendimento pró-americano não corra o risco dos soviéticos se aproveitarem do circo. Convém recordar que o primeiro sinal de rebelião terrorista, sob delegação externa, fora dado em Luanda, um mês antes, a 11 de Fevereiro, por parte do MPLA (pró-soviético). A prova que da parte dos soviéticos também havia estratégia concertada é que várias emissoras internacionais noticiam o caso mesmo antes dele ter acontecido. Em parte, o desencadear do terrorismo pró-americano é uma resposta e um esforço de não permitir a ultrapassagem táctica pelos rivais.
Contudo, embora atarantados e desesperados no momento inicial, os portugueses, ao contrário dos belgas, não debandam. Resistem, em muitos casos com verdadeiro heroísmo, e retaliam. Em Lisboa, a segunda fase do plano americano, que consistia no derrube de Salazar pelos conjurados de Botelho Moniz, malogra-se. Também Salazar resiste e, afastados os conspiradores, ordena a resposta militar soberana. Inicia-se a Guerra do Ultramar, ou mais especificamente, a guerra de Angola.
Ia ser uma guerra de longa duração e paulatino desgaste. Económico, político e moral/psicológico. Possuía Portugal meios para fazer face a esta tripla contingência?
Ora, não sendo Portugal um país rico nem detentor dum nível de desenvolvimento industrial e tecnológico de ponta, dir-se-ia que o maior problema seria sempre ao nível económico. Como financiar uma guerra prolongada (com tendência para alastramento); como não deixar que o financiamento da guerra afectasse o desenvolvimento do país; como não permitir que um eventual arrastamento pusesse em causa a própria autonomia financeira e, consequentemente, econo-política, do país.
A fórmula encontrada não apenas resolveu e acautelou todos estas incógnitas, como o país conseguiu desenvolver-se, na metrópole e no Ultramar (sobretudo em Angola), apesar da Guerra. Salazar chamou-lhe o "baratear da guerra". Consistiu na aposta numa campanha de baixa intensidade, sem grandes dispêndios de meios e recursos, e contingentes humanos, no global, o menos oneroso possível. Daí o grosso das tropas ser do Serviço Militar Obrigatório, donde posteriormente saíam os quadros milicianos, enquadrados a montante por oficiais do quadro Permanente (e sargentos, evidentemente).
O problema é que o barato tem limites e, a partir dum certo ponto, começa a gerar riscos que ameaçam os benefícios. A partir desse ponto, os ganhos económicos desatam a ter um preço crescente em danos moralo-psicológicos. Quando aqui se refere moral, não é a moral de sacristia: é a moral de combate, essência fundamental aos combatentes e cimento fulcral dos exércitos em guerra E, na verdade, foi o que veio a acontecer. E que aliás era previsível que acontecesse, e não se percebe como é que não se atalhou a tempo, permitindo que ele enquistasse até ao rebentamento final.
A questão dos quadros serem mal pagos é secundária: comparados aos soldados e ao contingente geral dos milicianos, os militares do quadro permanente, uma minoria (que, em termos de oficiais, fora as tropas de elite, foi desaparecendo das acções de combate), soava até a obsceno que se queixassem. Outras eram as raízes do problema: a infiltração das faculdades pelos comunistas e quejandos, um certo ambiente de balda à tropa por certas franjas da própria situação (os liberais, por exemplo, faziam disso uma arte); as consequentes deteriorações dos quadros milicianos e da instrução militar das tropas. Nos últimos anos, as tropas regulares seguiam para África cada vez mais mal treinadas, pró fim rondava o mau mesmo e, consequentemente, menos confiantes, mentalizadas e mais facilmente desmoralizáveis. Até porque o IN, apercebendo-se disso, escolhia os recém-chegados como alvos preferenciais. O problema era de certa forma atenuado pelo facto de o exército regular tratar da ocupação do terreno, num dispositivo de quadrícula, cumprindo-lhe, grosso modo, a detecção/contenção do In e o Apoio Social às populações - as acções de choque e intervenção era desempenhadas pelas tropas especiais. Mas, não obstante, foi-se acumulando e entranhado.
Sem me querer alongar em detalhes técnicos, gostaria apenas de apontar três erros que, a meu ver, sempre sobressaíram:
1. No fim da comissão, quando os combatentes estavam devidamente habilitados e adestrados para a guerra, eram desmobilizados e rendidos, em bloco, por outros completamente inexperientes. Ou seja, todo aquele saber acumulado, ia borda fora. Teria sido preferível, a fazer rendições nessa modalidade, morigerá-las pelo menos em parcelas (misturar 50% de novatos com 50% de veteranos, ou seja render apenas metade do efectivo de cada vez); e dar preferência à reintegração de voluntários, entre os melhores, oferecendo-lhes melhores condições profissionais (estou a falar da classe de praças). Equilibrar-se-ia o acréscimo de custos com a diminuição do efectivo: menos numeroso mas mais capacitado e moralizado para o combate (acredito que se reduziria também o tempo de guerra, na medida em que se pacificariam de facto zonas mais inflamadas, opondo-lhes tropas mais competentes e motivadas).
2.O treino prévio na Metrópole devia ser objecto duma filtragem mais cuidada, sobretudo a nível de instrutores e instruendos sem moral combativa. Quer dizer, o exército devia ter preservado, sobremaneira, a qualidade dos instrutores e a propriedade dos instruendos. Há pessoas que não vão fazer nada à guerra (mais que física, é uma questão mental). Pura e simplesmente, são incapazes e incompatíveis, nada a fazer (obrigá-los a lá ir é mau para todos, para eles é péssimo e para o os outros não acrescentam nada de bom); outros há que se habituam e cumprem o seu dever; outros há que se afeiçoam e acabam perfeitamente aclimatizados; e uns últimos nasceram para aquilo . A obrigatoriedade do serviço militar, sem os devidos filtros e critérios, resulta na "democratização" do exército - o que, como é bom de ver, traduziu um perfeito contra-senso com o próprio regime - um regime que visava em teoria a aristocracia geral e que acabava cultivando no seu principal sustentáculo a democracia. Dá para vislumbrar, neste peculiar absurdo, parte do chão minado que um dia detonou debaixo dos pé, assaz desprevenidos e imprudentes, de Marcello. Além do mais, o invólucro da coisa, muitas vezes, é tão importante como a coisa: servir a pátria nunca poderia ter sido "imposto como uma obrigação", mas "concedido como um privilégio". Nós até fomos bons na acção psicológica, mas, como diz o ditado, em casa de ferreiro, espeto de pau.
3. A operacionalidade das Forças Armadas deveria ter prevalecido sobre a burocracia das mesmas, nomeadamente no dispositivo de segurança (ao próprio governo) na Metrópole. Esta devia, desde o princípio, ter sido tratada como frente de combate, empregando-se nela, no mínimo, um número de meios de acção psico-social idêntico ao de Angola. À semelhança, de resto, com as democracias ocidentais em tempo de guerra, a contenção, tratamento e repressão das quintas colunas infiltradas (comunistas, sobretudo) devia ter sido mais firme, metódica e isoladora. Não se trata de imitar os alemães do III Reich, mas apenas os americanos na Segunda Guerra, em relação a imigrantes ou equivalentes japoneses e alemães. Nada de fascismos: tudo segundo os mais conceituados modelos democráticos!...
Agora, será que estes três lapsos foram causa suficiente e incontornável para o descalabro que presidiu à debandada?
Não.
Se por um lado, estas vulnerabilidades existiam e minavam, paulatinamente, por outro, havia uma medida fulcral que as contrabalançava e, enquanto progredisse, neutralizava em larga medida os seus efeitos deletérios: a africanização do efectivo militar ultramarino. ( E esta africanização, entenda-se, não era exclusivamente negra, mas, desde o início, branca e mestiça, embora em proporção menor.) Com efeito, de cerca de 30.000 elementos no início do conflito, ascendeu-se a 54.400 no fim da guerra.
Naturalmente, ninguém no seu perfeito juízo entendia a guerra prolongada como guerra eterna. Combater "habitualmente" não implicava "combater perpetuamente". Nem, tão pouco, que o Portugal Ultramarino iria cristalizar numa espécie de conto de fadas terreal, imune ao tempo e à própria evolução das coisas humanas. Nisso, Salazar não concordava comigo (eu sempre achei que não deveríamos apenas manter o Império como dilatá-lo incessantemente, a raides e anexações vigorosos - enfim, deitar a unha ao resto de África antes de russos, americanos e chineses; afinal, tínhamos direitos de preferência e antiguidade). Pois, mas Salazar era mais comedido. Entendia duas coisas: que importava criar condições para uma futura autonomia, progressiva e autêntica; e que se impunha adquirir uma posição de força e estabilidade a partir da qual negociar. A velha raposa sabia bem que um tipo em posição de fraqueza não negoceia coisa nenhuma: submete-se. A guerra servia esses dois fins superiores.
Uma última nota, em jeito de conclusão: aquela mania de transpor para o passado taras avassaladoras do presente, sai muito maltratada do nosso caso guerreiro ultramarino. Segundo estes eruditos obsessivos do momento, tudo se resume e submete à economia, pelo que também, segundo esta portentosa lógica, devia ter sido económica a nossa ruína e desventura. Ora, foi precisamente o inverso: na economia, na matéria, correu tudo sem grandes problemas. No espírito, na moral, na tal vontade é que a coisa deu para o torto. Foram palavras, ideias, mentiras, mitos (no mau e perverso sentido do termo), que uma vez propalados e aspergidos, persistente e insidiosamente, por quintas colunas e idiotas úteis, criaram ambientes, incubaram predisposições, arruinaram vontades e instalaram a confusão espiritual, moral e anímica que procederam, anteciparam e anunciaram a balbúrdia e o descalabro material. Para combater e contrariar este tipo de ameaça, a economia, sendo importante, não basta. Longe disso, sucumbe. Mais que uma tolerância suicida, blindada num certo alheamento sobranceiro, o regime não soube contrapor e cultivar uma mitologia eficaz porque sediada no concreto da cultura, da história colectiva e da verdade dos factos. "Nem só de pão vive o homem", disse um certo Sábio. Pois, e aqueles que trocam o espírito pelo bandulho descobrem um belo dia que o espírito desabitado foi ocupado por outros. Geralmente ciganos. Foi assim no crepúsculo do Estado-Novo. E assim é, para bem pior, nos dias de hoje.
Todavia, deixem que pergunte, se os militares não servem para ir à guerra, então servem para quê? Para consumir uma fatia avultada do orçamento de estado e andar a desfilar nas paradas ou a posar em cerimónias oficiais? Anda o país a gastar um ror de dinheiros em armas, a escutar os permanentes lamentos dos generais que a panóplia está obsoleta, minguante e tal, e depois, na hora do serviço, do trabalhinho a sério, metem baixa? Ah, que estão com a menstruação mental, uma dismenorreia do caraças... Vou discutir o quê? Com meninas, senhoras e sopeiras incomodadas não sei com que mosquitos, não disponho nem de bagagem técnica nem de vocação para esse tipo de lavores. Foi Salazar que inventou, ocupou ou peregrinou unilateralmente o Ultramar? Foi ele o primeiro a pegar em armas para o defender? Quebrou uma tradição santa e ancestral de pacifismo cosmopolita? Não era o dever dele, como representação máxima da nação, defendê-la e zelar pelos seus interesses? A nação é apenas o seu presente, ou é o seu passado, o seu presente e os seu futuro? A nação deve render-se às prioridades mentais de palradores iluminados, pseudo-elites da treta ou possidónios da verdade do cuspo? . Descubro que a cultura gay S&M, aos poucos vai contaminando a própria historiolalia: temos agora os apologetas da passividade, da submissão e do masoquismo geopolítico. A questão não é se nos entregamos ao calmeirão do planeta (doravante convertido a penitenciária): a discussinha é sobre que qualidade de vaselina, com a devida autorização do bruto, devemos usar.
Pois, as meninas desculpem-me, mas esse tipo de colóquio hão-de tê-lo, umas com as outras, lá no vosso gineceu, mas não certamente comigo.
E no que refere aos militares, ainda é mais rigoroso: qual é o dever, a missão e a razão de ser do militar em tempo de paz? Preparar-se para a guerra. nem mais. Com todas as suas energias e forças. Portanto, a primeira questão legítima que deve colocar-se é: estavam os militares portugueses preparados para a guerra ultramarina?
Não. Toda a sua projecção bélica apontava para o teatro de operações na Europa, num ambiente de guerra convencional (sem mosquitos e boas infraestruturas turísticas, enfim). O que era, no mínimo, um tanto ou quanto bizarro, para não dizer autista. Havia já escaramuças com a União Indiana, e em África era mais que evidente que, mais dia menos dia, irromperiam problemas. Culpa de quem - do Salazar do costume, ou das altas chefias das Forças Armadas, cuja missão é precisamente analisar, avaliar e providenciar às esferas políticas informação permanente e atempada do estado e evolução da situação estratégica (em termos militares, no mínimo)?
Há uma reunião do Conselho Superior de Defesa, realizada em 1959, de que o então Secretário de Estado da Administração Ultramarina, Álvaro da Silva Tavares, dá nota e que é bastante elucidativa:
«Nessa reunião, o Ministro da Defesa nacional, general Botelho Moniz, defendeu a tese de que as guerras se ganham no teatro principal das operações e que esse era na Europa, visto a luta ser entre o Ocidente e o Oriente. O ministro da Marinha, Almirante Quintanilha Dias, defendeu a necessidade de mais navios e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, general Kaúlza de Arriaga, a necessidade de mais aviões. No final o Presidente do Conselho que nada dissera até aí, afirmou, pode dizer-se textualmente: "Tudo será como os senhores dizem, mas se houver uma guerra na Europa e o esforço do inimigo incidir sobre o sector guarnecido pela tropa portuguesa, toda a nossa juventude será aniquilada. Por outro lado, o certo é que vamos ter uma guerra do Ultramar e que ela será de guerrilha. Para isso temos de estar preparados." Era a directriz firme e clara. Para o que temos de nos preparar não é para a guerra na Europa, mas para a guerrilha do Ultramar.» (in Salazar visto pelos seus próximos, pp.203)Tendo Salazar expressado o óbvio ululante, que fizeram os militares - prepararam-se?
Pela directiva do EME de 12/10/1959 são criadas as Companhias de Caçadores Especiais, as primeira a expressarem uma conversão do ensino de Guerra Convencial para o terino de Contra-Guerrilha. No ano seguinte é criado o CIOE ( Centro de Instrução de Operações Especiais) em Lamego. Mas em matéria de dispositivo, reforço e prevenção no terreno, pouco ou nada é feito. Quando o terrorismo da UPA eclode no Norte de Angola, os portugueses são apanhados com as calças na mão, o que amplia a dimensão dos massacres, no terreno e no tempo. E, em teoria, devia ter bastado para provocar a descolonização apressada.
O facto é que os altos responsáveis militares, onde já pontificava Costa Gomes (Subsecretário do Exército) e Viena de Lemos (futuro Subsecretário de Marcello, aquando do 25 de Abril), andaram, literalmente, a descurar as vulnerabilidades, como que a preparar , em primeiro lugar, o terreno para o pânico generalizado, à moda belga, no enfiamento da erupção terrorista.
Mas se os militares pouco fizeram, ou fizeram ao contrário do que deveriam (inclusivamente desguarnecendo o dispositivo), já as autoridades civis tomaram medidas visíveis e importantes no sentido de retirar pretextos à subversão. Chegado a Luanda, o novo Governador-geral de Angola, enceta medidas urgentes
1) Imposição à Diamang de aumentos salariais aos trabalhadores das minas de diamantes;:
2) retirada à SOFRIO da concessão do exclusivo do negócio da carne de bovino do Sul de Angola, ou seja, a revogação do monopólio da sua comercialização, exploração e industrialização;
3) a defesa dos produtores africanos e das pequenas empresas de café, contra os grandes exportadores metropolitanos;
4) Aumento do preço do algodão aos agricultores e a imposição à COTONANG e outras empresas comerciais e industriais do combate gratuito às pragas das plantações em apoio dos agricultores;
5) proibição absoluta de trabalho compelido, mesmo que por meios indirectos; com o decorrente aumento progressivo dos salários;
6) defesa do preço quanto aos produtores de milho, feijão e arroz, na quase totalidade africanos;
7) igualdade quanto a salários, subsídios e mais direitos de todos os serventuários do Estado, de forma a abranger os Africanos;
8) africanização, na medida do possível, dos quadros.
Entretanto, a acção concertada a vários níveis e vários palcos visando a liquidação do espaço ultramarino português está mais do que balizada e é pacificamente reconhecida, da esquerda à direita: operação intrinsecamente americana, prepara e movimenta os seus peões, de acordo a uma lógica pré-estabelecida. A ignição do conjunto tem a forma duma espécie de "ultimatum", transmitido pelo Embaixador americano, da parte de Kennedy, a Salazar. Um ex-secretário deste, descreve a visita:
«Certa manhã, o Presidente [Salazar], antes do "despacho", anunciou que iria receber o Embaixador dos Estados Unidos da América do Norte. Este trazia uma carta-mensagem do Presidente John Kennedy. O Embaixador chegou. Vinha acompanhado do Ministro, da Embaixada, em Portugal. Era, nem mais nem menos, que o nosso amigo Xantaky: Um helénico-americano. Vinham, tanto o Embaixador como o seu Ministro, com semblante de muita circunstância e, até, de tristeza. esta mais se evidenciava na expressão, não contida, de Teodoro Xantaky. Deu-se a entrevista que correu fora da nossas audição, como era natural.A resposta de Salazar ao Ultimato americano foi muito simples: ignorou-o.
Nós estávamos em pulgas e, quando digo "nós", refiro-me ao meu colega José Luciano Sollari Allegro. Finda a entrevista, os diplomatas retiraram-se e notámos lágrimas nos olhos de Teodoro Xantaky... Salazar voltou ao seu gabinete de trabalho, à cadeira habitual e instalou-se. Vinha com um ar de profunda meditação... Nós calculávamos do que se tratava. Perguntámos o que queria o Presidente Kennedy. Salazar respondeu logo: que entregássemos imediatamente as nossas províncias Ultramarinas a troco da amizade e todo o auxílio dos Estados Unidos da América do Norte.» ( Franz Paul de Almeida Langhans, in Salazar visto pelos seus Próximos, pp96)
De seguida, a 15 de Maço irrompem as chacinas da UPA (movimento previamente confeccionado por um cluster de missionários evangélicos, delegados da CIA e negociantes avulsos, passe a redundância). Pouco tempo antes, no Zaire, Lumumba, dirigente congolês pró-soviético é deposto por Mobutu. Nos dias que precederam o levantamento da UPA, a CIA trata da eliminação física de Lumumba de modo a que o empreendimento pró-americano não corra o risco dos soviéticos se aproveitarem do circo. Convém recordar que o primeiro sinal de rebelião terrorista, sob delegação externa, fora dado em Luanda, um mês antes, a 11 de Fevereiro, por parte do MPLA (pró-soviético). A prova que da parte dos soviéticos também havia estratégia concertada é que várias emissoras internacionais noticiam o caso mesmo antes dele ter acontecido. Em parte, o desencadear do terrorismo pró-americano é uma resposta e um esforço de não permitir a ultrapassagem táctica pelos rivais.
Contudo, embora atarantados e desesperados no momento inicial, os portugueses, ao contrário dos belgas, não debandam. Resistem, em muitos casos com verdadeiro heroísmo, e retaliam. Em Lisboa, a segunda fase do plano americano, que consistia no derrube de Salazar pelos conjurados de Botelho Moniz, malogra-se. Também Salazar resiste e, afastados os conspiradores, ordena a resposta militar soberana. Inicia-se a Guerra do Ultramar, ou mais especificamente, a guerra de Angola.
Ia ser uma guerra de longa duração e paulatino desgaste. Económico, político e moral/psicológico. Possuía Portugal meios para fazer face a esta tripla contingência?
Ora, não sendo Portugal um país rico nem detentor dum nível de desenvolvimento industrial e tecnológico de ponta, dir-se-ia que o maior problema seria sempre ao nível económico. Como financiar uma guerra prolongada (com tendência para alastramento); como não deixar que o financiamento da guerra afectasse o desenvolvimento do país; como não permitir que um eventual arrastamento pusesse em causa a própria autonomia financeira e, consequentemente, econo-política, do país.
A fórmula encontrada não apenas resolveu e acautelou todos estas incógnitas, como o país conseguiu desenvolver-se, na metrópole e no Ultramar (sobretudo em Angola), apesar da Guerra. Salazar chamou-lhe o "baratear da guerra". Consistiu na aposta numa campanha de baixa intensidade, sem grandes dispêndios de meios e recursos, e contingentes humanos, no global, o menos oneroso possível. Daí o grosso das tropas ser do Serviço Militar Obrigatório, donde posteriormente saíam os quadros milicianos, enquadrados a montante por oficiais do quadro Permanente (e sargentos, evidentemente).
O problema é que o barato tem limites e, a partir dum certo ponto, começa a gerar riscos que ameaçam os benefícios. A partir desse ponto, os ganhos económicos desatam a ter um preço crescente em danos moralo-psicológicos. Quando aqui se refere moral, não é a moral de sacristia: é a moral de combate, essência fundamental aos combatentes e cimento fulcral dos exércitos em guerra E, na verdade, foi o que veio a acontecer. E que aliás era previsível que acontecesse, e não se percebe como é que não se atalhou a tempo, permitindo que ele enquistasse até ao rebentamento final.
A questão dos quadros serem mal pagos é secundária: comparados aos soldados e ao contingente geral dos milicianos, os militares do quadro permanente, uma minoria (que, em termos de oficiais, fora as tropas de elite, foi desaparecendo das acções de combate), soava até a obsceno que se queixassem. Outras eram as raízes do problema: a infiltração das faculdades pelos comunistas e quejandos, um certo ambiente de balda à tropa por certas franjas da própria situação (os liberais, por exemplo, faziam disso uma arte); as consequentes deteriorações dos quadros milicianos e da instrução militar das tropas. Nos últimos anos, as tropas regulares seguiam para África cada vez mais mal treinadas, pró fim rondava o mau mesmo e, consequentemente, menos confiantes, mentalizadas e mais facilmente desmoralizáveis. Até porque o IN, apercebendo-se disso, escolhia os recém-chegados como alvos preferenciais. O problema era de certa forma atenuado pelo facto de o exército regular tratar da ocupação do terreno, num dispositivo de quadrícula, cumprindo-lhe, grosso modo, a detecção/contenção do In e o Apoio Social às populações - as acções de choque e intervenção era desempenhadas pelas tropas especiais. Mas, não obstante, foi-se acumulando e entranhado.
Sem me querer alongar em detalhes técnicos, gostaria apenas de apontar três erros que, a meu ver, sempre sobressaíram:
1. No fim da comissão, quando os combatentes estavam devidamente habilitados e adestrados para a guerra, eram desmobilizados e rendidos, em bloco, por outros completamente inexperientes. Ou seja, todo aquele saber acumulado, ia borda fora. Teria sido preferível, a fazer rendições nessa modalidade, morigerá-las pelo menos em parcelas (misturar 50% de novatos com 50% de veteranos, ou seja render apenas metade do efectivo de cada vez); e dar preferência à reintegração de voluntários, entre os melhores, oferecendo-lhes melhores condições profissionais (estou a falar da classe de praças). Equilibrar-se-ia o acréscimo de custos com a diminuição do efectivo: menos numeroso mas mais capacitado e moralizado para o combate (acredito que se reduziria também o tempo de guerra, na medida em que se pacificariam de facto zonas mais inflamadas, opondo-lhes tropas mais competentes e motivadas).
2.O treino prévio na Metrópole devia ser objecto duma filtragem mais cuidada, sobretudo a nível de instrutores e instruendos sem moral combativa. Quer dizer, o exército devia ter preservado, sobremaneira, a qualidade dos instrutores e a propriedade dos instruendos. Há pessoas que não vão fazer nada à guerra (mais que física, é uma questão mental). Pura e simplesmente, são incapazes e incompatíveis, nada a fazer (obrigá-los a lá ir é mau para todos, para eles é péssimo e para o os outros não acrescentam nada de bom); outros há que se habituam e cumprem o seu dever; outros há que se afeiçoam e acabam perfeitamente aclimatizados; e uns últimos nasceram para aquilo . A obrigatoriedade do serviço militar, sem os devidos filtros e critérios, resulta na "democratização" do exército - o que, como é bom de ver, traduziu um perfeito contra-senso com o próprio regime - um regime que visava em teoria a aristocracia geral e que acabava cultivando no seu principal sustentáculo a democracia. Dá para vislumbrar, neste peculiar absurdo, parte do chão minado que um dia detonou debaixo dos pé, assaz desprevenidos e imprudentes, de Marcello. Além do mais, o invólucro da coisa, muitas vezes, é tão importante como a coisa: servir a pátria nunca poderia ter sido "imposto como uma obrigação", mas "concedido como um privilégio". Nós até fomos bons na acção psicológica, mas, como diz o ditado, em casa de ferreiro, espeto de pau.
3. A operacionalidade das Forças Armadas deveria ter prevalecido sobre a burocracia das mesmas, nomeadamente no dispositivo de segurança (ao próprio governo) na Metrópole. Esta devia, desde o princípio, ter sido tratada como frente de combate, empregando-se nela, no mínimo, um número de meios de acção psico-social idêntico ao de Angola. À semelhança, de resto, com as democracias ocidentais em tempo de guerra, a contenção, tratamento e repressão das quintas colunas infiltradas (comunistas, sobretudo) devia ter sido mais firme, metódica e isoladora. Não se trata de imitar os alemães do III Reich, mas apenas os americanos na Segunda Guerra, em relação a imigrantes ou equivalentes japoneses e alemães. Nada de fascismos: tudo segundo os mais conceituados modelos democráticos!...
Agora, será que estes três lapsos foram causa suficiente e incontornável para o descalabro que presidiu à debandada?
Não.
Se por um lado, estas vulnerabilidades existiam e minavam, paulatinamente, por outro, havia uma medida fulcral que as contrabalançava e, enquanto progredisse, neutralizava em larga medida os seus efeitos deletérios: a africanização do efectivo militar ultramarino. ( E esta africanização, entenda-se, não era exclusivamente negra, mas, desde o início, branca e mestiça, embora em proporção menor.) Com efeito, de cerca de 30.000 elementos no início do conflito, ascendeu-se a 54.400 no fim da guerra.
Naturalmente, ninguém no seu perfeito juízo entendia a guerra prolongada como guerra eterna. Combater "habitualmente" não implicava "combater perpetuamente". Nem, tão pouco, que o Portugal Ultramarino iria cristalizar numa espécie de conto de fadas terreal, imune ao tempo e à própria evolução das coisas humanas. Nisso, Salazar não concordava comigo (eu sempre achei que não deveríamos apenas manter o Império como dilatá-lo incessantemente, a raides e anexações vigorosos - enfim, deitar a unha ao resto de África antes de russos, americanos e chineses; afinal, tínhamos direitos de preferência e antiguidade). Pois, mas Salazar era mais comedido. Entendia duas coisas: que importava criar condições para uma futura autonomia, progressiva e autêntica; e que se impunha adquirir uma posição de força e estabilidade a partir da qual negociar. A velha raposa sabia bem que um tipo em posição de fraqueza não negoceia coisa nenhuma: submete-se. A guerra servia esses dois fins superiores.
«Salazar referiu, então, que era necessário "aguentar", mas sabendo adaptar-nos às circunstâncias, admitindo os compromissos e entendimentos possíveis e uma progressiva autonomia, e, logo em 4 de Maio de 1962, em entrevista à Life havia de reconhecer que o "facto de um território se proclamar independente é fenómeno natural e, por isso, representa uma hipótese sempre admissível, mas em boa verdade não se pode nem deve marcar prazo.» (Álvaro da Silva Tavares, in Salazar visto pelos seus próximos)
Uma última nota, em jeito de conclusão: aquela mania de transpor para o passado taras avassaladoras do presente, sai muito maltratada do nosso caso guerreiro ultramarino. Segundo estes eruditos obsessivos do momento, tudo se resume e submete à economia, pelo que também, segundo esta portentosa lógica, devia ter sido económica a nossa ruína e desventura. Ora, foi precisamente o inverso: na economia, na matéria, correu tudo sem grandes problemas. No espírito, na moral, na tal vontade é que a coisa deu para o torto. Foram palavras, ideias, mentiras, mitos (no mau e perverso sentido do termo), que uma vez propalados e aspergidos, persistente e insidiosamente, por quintas colunas e idiotas úteis, criaram ambientes, incubaram predisposições, arruinaram vontades e instalaram a confusão espiritual, moral e anímica que procederam, anteciparam e anunciaram a balbúrdia e o descalabro material. Para combater e contrariar este tipo de ameaça, a economia, sendo importante, não basta. Longe disso, sucumbe. Mais que uma tolerância suicida, blindada num certo alheamento sobranceiro, o regime não soube contrapor e cultivar uma mitologia eficaz porque sediada no concreto da cultura, da história colectiva e da verdade dos factos. "Nem só de pão vive o homem", disse um certo Sábio. Pois, e aqueles que trocam o espírito pelo bandulho descobrem um belo dia que o espírito desabitado foi ocupado por outros. Geralmente ciganos. Foi assim no crepúsculo do Estado-Novo. E assim é, para bem pior, nos dias de hoje.
terça-feira, maio 05, 2015
Marcello - Humano, demasiado Humano
«NO CARMO 1. Na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, Marcelo Caetano recebeu em casa, e na cama, um telefonema do major Silva Pais, director da PIDE, para lhe dizer que a "revolução estava na rua" e era "grave".
Silva Pais aconselhou Marcelo a ir para o Quartel do Carmo, porque no "16 de Março" já tinha ido para Monsanto e era natural que, sabendo disso, os "rebeldes" o tentassem apanhar lá com um "golpe de mão". Além disso, Silva Pais não apurara ainda o "lado" da Força Aérea e considerava a Guarda Republicana "fixe". Marcelo Caetano não achou estranha esta exibição de ignorância e de amadorismo. Não havia, disse ele, "tempo para pensar e discutir". E foi assim, à pressa, sem um plano e um propósito, que se meteu na "ratoeira do Carmo". Depois de falar com o ministro da Defesa, o professor de Direito Silva Cunha, que lhe confirmou em grosso o estado das coisas, seguiu sozinho de automóvel para a Baixa (morava em Alvalade) com um adjunto militar meramente cerimonial. Na Baixa, passou por várias patrulhas que guardavam o acesso das ruas. Julgou que se tratava de tropas fiéis. Não eram, eram tropas do MFA, que, por sorte ou desleixo, não o mandaram parar.
Pretendeu mais tarde que não vira o Carmo como um "refúgio", mas como um sítio seguro de onde podia acompanhar e dirigir a resistência, ou seja, como um quartel-general. Não se percebe bem a lógica desta ideia. Fisicamente isolado do comando militar, da PIDE e do governo, com comunicações precárias que o MFA com certeza vigiava (ou que, pelo menos, se devia presumir que vigiasse), a presença de Marcelo no Carmo não servia para nada. Pelo contrário, dava um objectivo fácil e decisivo às forças sublevadas. As justificações do exílio não convencem. Tanto mais que o Quartel do Carmo, com uma única companhia de comando e serviços, várias "repartições" de carácter administrativo e dezenas de famílias de gente da GNR que lá vivia permanentemente, hesitaria sempre em se imiscuir em qualquer espécie de violência.
Recebido "cortesmente" por um general à paisana, Marcelo assistiu inerte à passividade da GNR, enquanto o MFA tomava conta de Lisboa e o povo vinha espontaneamente para a rua. Chamou o ministro do Interior, César Moreira Baptista. Pediu pateticamente à Legião que combatesse. Tentou encontrar, e não encontrou, o Presidente da República. E, no fim, quando milhares de manifestantes se juntaram no Largo do Carmo concebeu mesmo o plano de os massacrar, fazendo descer uma unidade da GNR da Pedro V e subir outra do Camões para os "colher entre dois fogos". Lisboa inteira ouviu, em aberto, pela rádio os comandantes da GNR decidirem desobedecer a essa ordem criminosa. Curiosamente, Marcelo continuava no Brasil orgulhoso com a matança inútil que tentara perpetrar, muito indignado com o recuo da Guarda e sem a mais vaga consciência de que escapara por pouco à condenação e infâmia universal.
No Carmo, naturalmente, a guarnição e as famílias só queriam que ele desaparecesse depressa, sobretudo depois de uma rajada de metralhadora, completamente inócua, sobre a parede do quartel. As senhoras corriam aflitas pelos corredores. Com a extraordinária desvergonha indígena, o chefe do Estado-Maior da GNR acusou Presidente do Conselho de pôr em risco a população do "edifício". E um major, que se anunciou "delegado do MFA", preveniu que ele ia "desencadear um tragédia". Marcelo resolveu sair de cena com "um tiro na cabeça", para os "díscolos" do Largo do Carmo não o "apanharem vivo". Mas não saiu. »
(...)
Logo a seguir, no meio de grande entusiasmo, Spínola entrou no quartel e encontrou o presidente do Conselho sentado num sofá, numa "atitude serena e digna". Na sala ao lado, César Moreira Baptista e Rui Patrício pareceriam "desmoralizados". Segundo Marcelo, antes mesmo de o cumprimentar, Spínola desabafou: "A que estado estes gajos [o MFA] deixaram chegar isto!" "Isto" era a multidão do Carmo e o povo na rua. Num livro de memórias (de 1978), Spínola transformou esta frase de general de cavalaria numa declaração histórica: "O estado em que Vossa Excelência me entrega o país." E acrescentou: "É tarde para Vossa Excelência reconhecer a razão que me assistia." Esta pequena diferença, acrimoniosamente discutida no futuro, escondia uma querela maior. Marcelo queria demonstrar a inconsciência de Spínola e a fraca autoridade que ele tinha sobre o MFA. Spínola queria passar a Marcelo a culpa da queda do regime e do desastre de África. De qualquer maneira, no Carmo, Marcelo cortou os devaneios de Spínola. Não era altura de "recriminações". Metido numa "viatura blindada", com Moreira Baptista e Rui Patrício, seguiu para a Pontinha sob os "vitupérios" da multidão.
Este melodrama obscureceu um ponto essencial, que, em 1977 e para profunda fúria de Marcelo, Silva Cunha (o antigo ministro da Defesa) levantou num livro sobre o "ultramar" (O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril). Com os militares na rua, o sistema constitucional do regime, que o prof. Caetano ensinava na universidade, doutamente comentava e afectava respeitar, ruíra num minuto e, pior ainda, tinha sido ele o primeiro, e o único, a reduzir a lei ao seu arbítrio. Sozinho, sem consulta ao Presidente da República, ao Conselho de Estado ou sequer ao Governo (para não falar na Assembleia Nacional), decidira "transmitir" o poder a Spínola. Nada na Constituição o autorizava a isso. Pelo contrário, a concorrência do Presidente da República era indispensável. Nem as circunstâncias permitiam que o Presidente do Conselho sem ouvir ninguém dissolvesse o regime, como efectivamente dissolveu, e até certo ponto legitimasse a sucessão de um general em revolta. Marcelo alegou que não conseguira falar com o Presidente ou reunir o Governo. Mas factos não pesavam contra princípios. Não tardou que à crítica genérica à política colonial e doméstica dos seus cinco anos, se juntasse a acusação de "fraqueza" ou "medo" e a ideia absurda de que ele fora pessoalmente responsável pela derrocada de Abril. No exílio, e vindas de quem vinham, estas torpezas doeram.
Principalmente, porque Marcelo, incapaz de aceitar a ficção constitucional do regime, se recusava a ver que o edifício para que ele tanto trabalhara e em que tanto se distinguira assentava na realidade crua do poder de um homem, o poder de Salazar e o dele. No Brasil, insistia em visitar Tomás cerimonialmente, como Chefe de Estado no exílio. E não compreendeu o azedume e má-fé dos comparsas daquele melodrama: dos militares, dos ministros, da imensa trupe que se encomendara ao ditador e que o ditador levara à perdição.
(...)
De qualquer maneira, com a sua fúria e o seu rancor, Marcelo Caetano percebeu do Rio o que muito boa gente não percebeu em Lisboa: a inevitabilidade da derrota de Sá Carneiro num confronto directo com Eanes. Considerava o general Soares Carneiro "excelente" e até "óptimo". A "manobra" de Sá Carneiro é que lhe parecia "mal conduzida". Marcelo suspeitava, e com razão, que Sá Carneiro ("nessas coisas mais autoritário do que o próprio Salazar") impusera a candidatura do general ao grosso da AD e que subestimava largamente a força de Eanes. Pior: Marcelo também previu, e acertou, que a recusa de Sá Carneiro e Freitas de governar com Eanes só os prejudicava a eles e acabaria por entregar Portugal a uma personagem de recurso. Aquela "aventura" era "imprudente". Infelizmente, na cabeça de Marcelo, esta clara análise política andava misturada com a ideia peregrina de que Adriano Moreira, uma bête noire, planeava aproveitar a confusão para se alçar a primeiro-ministro. E, se isso acontecesse, dizia ele a sério, preferia o socialismo. O passado nunca o largava. O FIM 5. Mas, devagar, o tempo diluiu a intensidade e do ódio e do desapontamento. A enorme lista de inimigos do peito foi sendo esquecida: Spínola, Silva Cunha, Silvério Marques, Franco Nogueira, Adriano Moreira, este e o outro, que o tinham "caluniado" e "traído". Falava ainda dos discípulos, que o abandonavam, não o citavam ou não visitavam. Mas sem a irritação do princípio. Começou também a ficar progressivamente sozinho. A emigração política do PREC voltou quase toda a Portugal e a que não voltou preferiu ignorar os meios do exílio. Morreram alguns fiéis e a própria família o ia ver com menos regularidade. Insistiram com ele para que viesse à Europa, ao Sul de França, ou a Paris. Recusou. Não queria que pensassem que ele passeava pela Europa, como um turista vulgar. O Brasil era o seu lugar: um lugar de martírio.
Surpreendentemente, em 1977, decidiu alimentar um idílio por carta com uma professora da Faculdade de Letras, que de repente se descobrira uma intensa devoção por ele. Trocavam longas cartas de uma intimidade rara na correspondência (publicada) de Marcelo. Ele escrevia poemas (pelo menos, prosa "poética"); ela mandava flores secas, como competia, e algas da praia das Maçãs. Um Marcelo inimaginável anula de repente a figura disciplinada e seca do ditador: "... Estamos brincando com fogo... Com aquele fogo que arde sem se ver... Estamos brincando com a água do Oceano que nos separa E que põe entre nós a distância que nos dá segurança Permitindo-nos afirmar, cultivar e inflamar sentimentos Sem risco para a tua intocabilidade ... Os teus escrúpulos religiosos... Mas escrevemos um ao outro palavras cada vez mais significativas As tuas mãos entrelaçam-se (no papel) com as minhas mãos Os nossos olhos perscrutam-se na escuridão a querer conhecer Penso em ti todos os dias e contigo converso dia e noite como um fala-só." O episódio seria irrelevante, se não revelasse a tristeza e solidão de Marcelo. E não vale a pena insistir nele, excepto por um ponto. Provocado pela insistência da amiga, Marcelo acaba por explicar expressa e claramente o seu agnosticismo e a sua posição perante a Igreja. Não é agnóstico, avisa ele, "movido por qualquer ideia mesquinha": "Zanga com os padres, política da Igreja, etc." Não. "Na base de qualquer atitude religiosa está a fé (virtude sobrenatural, etc., etc.). A partir da fé em Deus pode ser-se cristão, budista, xintoísta, seja o que for. Se falta a fé, o resto é hipocrisia social, casca sem miolo. Ora, eu perdi a fé. Por um processo lento, que dura há bastantes anos, durante os quais lutei com a razão, procurei não abandonar práticas, evitei dar escândalo. O caso é que nada mudou." E, a seguir, acrescenta: "Às vezes perde-se a fé e conserva-se o respeito pela Igreja em que ela foi vivida: em mim desapareceu uma e não ficou o outro. Mas são coisas distintas: não sou mais católico, porque que definem o catolicismo; não sou mais cristão, porque não acredito na divindade de Cristo; não sou mais religioso, porque não presto culto a Deus, a quem não nego, apenas considero a criação e conservação do mundo um grande e prodigioso mistério insusceptível de ser penetrado pela inteligência humana, capaz apenas de procurar hipóteses explicativas, das quais a existência de Deus é uma."
Quanto à Igreja, Marcelo é taxativo: "... a Igreja é uma organização humana, política, oportunista, que capta fiéis como os candidatos captam votos. Respeitava-a se ela continuasse igual a si mesma e não temesse cair de pé para não negar nada do que um dia apresentou como eterno. Mas afinal é uma espécie de CDS." CDS ou não, nem a viagem de João Paulo II ao Brasil o comoveu. Não resistiu mesmo a um comentário de puro gosto jacobino e anticlerical. "O Papa falou no Nordeste sobre a seca, a miséria do povo, os deveres do Governo para com aquela pobre gente... Certíssimo. Mas se um gesto taumatúrgico dele fizesse chover, isso sim, é que era original... e bom!"
De tudo, na inconsolável velhice de Marcelo Caetano, ficava o trabalho: aulas, conferências, os livros que publicava e uma ocasional intriga de eruditos, que o distraía e o compensava da impotência política. Infelizmente, no Brasil, não tinha acesso à maior parte do material de que precisava, um ambiente universitário que o animasse ou alunos com aplicação e o fervor dos da Faculdade de Direito de Lisboa. Fosse como fosse, resistiu e trabalhou até ao fim: com persistência, com método, com desespero. Do naufrágio, não lhe restava mais nada.»
- Vasco Pulido Valente, "Marcelo Caetano - A Queda e o Exílio"
Artigo completo: AQUI.http://macroscopio.blogspot.pt/2006/08/marcelo-caetano-queda-e-o-exlio-por-v.html
Decerto não poderá acusar-se o Vasco de salazarista, fascista, ultraconservador nem nenhuma dessas incontinências retóricas de cacaracá. Bem pelo contrário, o Vasco abomina Salazar, tem fobia de ditaduras e manifesta por Marcello uma humana compaixão. Dispensava-se a devassa do baú sentimental do senhor. Mas no resto fica bem patente, numa crónica longe de hostil, o egocentrismo descomunal e impermeável do velho professor. E a sua imunidade a qualquer tipo de auto-crítica. Até por isso, o seu agnosticismo final é eloquente: um homem sem mácula nem pecado dispensa, sobretodas, a religião católica.
Tudo isto, não obstante, com uma atenuante e uma honestidade estratosférica em relação a certos marcelleiros peregrinos, em quem a fé apenas serve de capacho à fézada. Ora, o que decerto Marcello não merecia, bem mais que de atacantes putativamente injustos, era de apologistas certificadamente mixordeiros e asnopédicos.
E se é para aturar arremedos bacocos, decalques aleijados e reverberações chungas (do Vasco), mil vezes o original!...
segunda-feira, maio 04, 2015
Outros tempos, outras modas (repristinando um postal de 2006)
Na minha última rusga pelos alfarrabistas, deparou-se-me o seguinte cartapácio: "Dois anos junto de Hitler", de Nevile Henderson. Este cavalheiro foi o embaixador de Sua Majestade Britânica em Berlin, desde 1937 até à declaração da 2ª Guerra Mundial. O livro lê-se bem, conto acabar hoje com ele e, a certa altura, na página 31, o digníssimo embaixador escreve o curiosíssimo trecho que passo a transcrever:
«Os ditadores só se transformam num mal para os seus povos e num perigo para os seus vizinhos quando o poder lhes sobe à cabeça e quando a ambição e o desejo de durar os levam à opressão e à aventura.
Mas mesmo quando são duradouras, nem todas as ditaduras podem ser censuradas. Ataturk (Mustafá Kemal) construiu uma nova Turquia sobre as ruínas da antiga, e toda a gente esqueceu ou perdoou as suas medidas de expulsão dos gregos as quais, provavelmente, sugeriram a Hitler a ideia de que podia fazer o mesmo com os judeus. É impossível, apenas porque se trata dum ditador, contestar os altos serviços que Mussolini tem prestado à Itália. da mesma forma o mundo reconheceria em Hitler um grande alemão se ele tivesse sabido moderar-se a tempo. A moderação deveria ter-se iniciado em seguida a Munich e às leis de Nuremberg contra os judeus.
O doutor Salazar, ditador de Portugal, soube traçar ele próprio os limites da sua acção e manter-se dentro deles. É por isso, decerto, um dos homens de estado europeus mais equilibrados no período que se seguiu à última guerra.»
Chamo a atenção que o livro é de 1940.
As conjecturas deixo-as a cada qual. Por mim, ouso apenas uma breve nota:
A ideologia não difere muito da alta costura. A reger o império dos homens, na antiguidade clássica, havia a Moira; agora, na comtemporaneidade, há a Moda. No momento actual os ditadores estão démodés. Mas um dia destes - caos e excesso oblige - voltam a estar na berra. É cíclico. Não constitui especial novidade ou, sequer, sordidez acrescentada. Repugnante, repugnante mesmo, será verificar que aqueles que hoje em dia se enfarpelam beatorramente em traparia democrática serão os primeiros a correr às fardas despóticas, mal os estilistas mundiais o decretem e os mass-media, em apoteose salvífica, entre foguetes e aleluias, o anunciem.
A mentalidade parasita acompanha a besta hospedeira para onde quer que ela se tresmalhe.
PS: Onde se lê "estilistas mundiais", para alguns cata-ventos com transtornos públicos de aliteracia pode traduzir-se por "meteorismo histórico".
PS: Onde se lê "estilistas mundiais", para alguns cata-ventos com transtornos públicos de aliteracia pode traduzir-se por "meteorismo histórico".
domingo, maio 03, 2015
Acromiomancia Revisitada - XXVI. Lexorreia e Frankenstoinice
«Como a alta dos preços se tornara constante, certos sindicatos estavam permanentemente a solicitar actualização de salários de modo que, mal terminada a revisão de uma convenção colectiva, logo era introduzido o pedido de nova revisão»
- Marcello Caetano, "Depoimento"
A liberalização económica encetada no período Marcellista, e crepuscular do Estado-Novo (doravante apontado em ritmo acelerado ao Estado-Social), traduziu-se em várias medidas que, no entender do governante, visavam dinamizar a economia e modernizar o país - entenda-se, aproximá-lo mais do comboio europeu e do seu estilo de vida. O evoluir lento e consolidado da política Salazarista cedeu passo a um avanço urgente e trepidante, a toque de legislação, de Caetano. E aqui irrompe a principal clivagem entre ambos: a mesma que medeia entre a regra (e as sociedades regradas), e a lei (e as sociedades que resvalam para auto-fustigação legislativa). Estamos hoje fartíssimos de saber e experimentar onde conduz a governação à base da lexorreia desatada. Ora, o Marcellismo acumulou toda uma série de problemas, que, em muitos casos, redundaram em becos sem saída, quando não em panelas de pressão (como foi o caso do decreto peregrino que desencadeou a efervescência militar), muito por via desse "marcha-forçada" a decreto, que, instaurando a mudança brusca e obrigatória, criou sucessiva instabilidade, conflito e desequilíbrios súbitos que, catalizados numa pléiade de efeitos adversos, haveriam de conduzir ao clima propício à revolução.
Quando se refere o "viver habitualmente" do tempo de Salazar dá-se à coisa a conotação duma certa pasmaceira. O mundo todo a correr para os mais diversos paraísos e Portugal ali, pachorrento, a marcar passo no purgatório. Esquece-se ou encobre-se o que significa hábito, costume, maneira arreigada de estar e fazer. Talvez se recordarmos o termo gergo que o designa se perceba melhor: ethos. Pois, ethos, donde ética, o preceito da acção prática, o cimento de qualquer sociedade civilizada. Viver habitualmente significava viver de acordo a uma ética - e aqui no puro sentido aristotélico do termo, já que a ética que se procurava cultivar era a mesma que erguera o Império Britânico. Toda a imbecil confraria - de mentecaptos e deslumbradinhos militantes com o alógeno miraculoso - que critica, esganiçada e toinamente, o estado isolado do Portugal de Salazar, nem repara que foi o caso da Grã-Bretanha ser uma ilha, que sempre viveu à margem do continente e contra o continente, que lhe conferiu um carácter próprio, único e mais forte que o da chusma europeia. E que muito mais que a sua democracia parlamentar, que mais não serve que de máscara retórica a uma aristocracia efectiva, foi a sua maneira de ser distinta, arreigada e exclusiva que lhe granjeou a firmeza de carácter e de vontade que a alcandoraram, durante séculos, a uma posição - senão superior - decerto independente no mundo.
No "viver habitualmente" de Salazar , como em todas as sociedades onde a regra submete a lei, apostava-se nos valores de longa duração (que não eram, por essência, os materiais). E isso, essa hierarquia axiológica, estava bem delimitada e definida. Com Caetano, o panorama altera-se: à hierarquia sucede a amálgama - os valores espirituais passam a competir com os "valores de mercado". A verticalidade nacional começa a converter-se ao "horizonte europeu", ou seja, em vez de olhar mais acima, contenta-se em mirar ao lado. Como sentimento motriz nacional, a benevolência dá lugar à inveja. O querer acima descamba no desejar do vizinho.
Os exemplos desta hibridação com efeitos adversos são múltiplos e o prórpio Marcello os recapitula a posteriori...
Introduz legislção laboral («a possibilidade do recurso a uma jurisdição arbitral para decidir divergências na própria formação dos contratos colectivos»). Resultado:
«Os sindicatos, logo que saíu esta legislação, chamaram os seus advogados e prepararam-se para tirar dela todo o partido possível. Efectivamente, a maior parte das decisões arbitrais foi-lhes favorável. Isso fez com que as entidades patronais se queixassem amargamente do que consideravam resultado da inclinação das simpatias governamentais» ( in "Depoimento", pp 130)Depois desembaraçou as eleições sindicais da sanção governamental. Resultado:
«A libertação das eleições sindicais da sanção governamental levou o partido comunista a movimentar-se imediatamente em quantos sindicatos pode, para conquistar posições nos respectivos corpos gerentes. Dentro de pouco tempo estava formado um grupo de sindicatos a trabalhar concertadamente segundo as directizes do partido.» (idem, pp. 131)Bem, se eu abdicar da porta de casa e da jurisdição da polícia cá no bairro, os ladrões fazem uma festa. Mas Marcello, promoveu mais uma série de "amplas conquistas" do movimento sindical, graças à sua abertura...
«(...) à infiltração social-comunista nas direcções de alguns sindicatos, correspondeu a formação de um grupo intersindical muito activo na doutrinação e na acção, que organizou logo um núcleo de advogados, economistas e sociólogos para orientar o seu trabalho e se ligou a movimentos internacionais que o apoiavam com firmeza. E o espírito corporativo do sindicalismo português foi cedendo passo à concepção marxista, assistindo-se progressivamente á transformação dos sindicatos em inmstrumentos da luta de classes.» (ibidem, pp.132)Olha que admiração!...Qualquer semelhança com a panorâmica democrática pós-abrileira não é pura coincidência
E perante este quadro geral de resvalamento laboral, que fazia o santo e clarividente governo para obstar ao descalabro mais que previsível e galopante? Arfava prisioneiro do seu próprio labirinto legal. Um labirinto que ia tecendo e onde se ia extraviando cada vez mais, sem norte nem sorte. Marcello sintetisa-o:
«Havia leis gerais a fazer respeitar, um interesse superior a observar. Não era fácil fazê-lo compreender e acatar, mas tinha de ser.» (ibidem, pp.131)
Quer dizer, na sua receita de reformar por decreto, o bom Marcello patinava no logro de confundir "reformar" com "realizar" (um equívoco muito comum desde então), quando é certo e sabido que a realidade não se compadece com as imposições legais, ou seja, quando em vez de adequar a lei à realidade se demanda forçar a realidade à lei, a limite, nem a realidade se compadece, nem a lei serve ao fim para o qual foi imposta, mas apenas à perversão desse fim. O que, de resto, foi ainda mais clamoroso na famosa lei Sá Viana Rebelo, 353/73: em vez de resolver um problema premente de quadros no exército, lançou o granel, a zaragata e a conspiração nas fileiras, donde germinou o golpe de Estado militar). Depois, nesta lógica da asneira legal, e como referia Salazar que as asneiras também têm a sua lógica, umas levando inevitavelmente a outras, para corrigir a 353/73, atamancou-se a 490/73, que em nada acalmou a fervura e apenas a abençoou e reconfortou.
Por outro lado, com Marcello inaugura-se também a prodigalidade governamental com o dinheiro dos outros. A dinâmica intervencionista do Estado em várias áreas - assistência social, habitação social, construção pública, apoio ao funcionarismo público, etc - dispara. Marcello é eloquente a esse respeito:
«Não faço injúria a ninguém dizendo que o Ministério das Finanças era uma tremenda máquina de travagem de iniciativas. Em certos casos agia como freio necessário, concedo, porque um mês depois (e às vezes nem isso...) de aprovado o orçamento anual já os ministros começavam a enviar projectos com aumentos de despesa. Mas noutros, a paragem resultava de acumulação de serviço, de lentidão de métodos burocráticos e de...feitio das pessoas, porque ministros houve que correspondiam bem à imagem que um autor francês traçava dos titulares da pasta das Finanças: "os Senhores não". E um deles, que trabalhou com o Dr. Salazar, foi particularmente nocivo ao país. Tive a sorte de ter ministros das Finanças excelentes, cheios de espírito de colaboração comigo e com os colegas.» (ibidem, pp.142-143)
A última coisa que podemos duvidar é que não fossem, de facto, excelentes, os ministros de Marcello, segundo a sua perspectiva: a inflacção nos 10%, em 1972, antes do choque petrolífero, era prova cabal disso. João Dias Rosas e Manual Cota Dias, de seu nome, os ministros. O primeiro transitava do último governo de Salazar e converteu-se de pronto à liberalização e à internacionalização fogosa da economia.
O facto é que toda esta excitação Marcellista merece a Jaime Nogueira Pinto um balanço um tanto ou quanto desabonatório:
«Uma das caraterístivas do marcellismo foi a experimentação de novas fórmulas e modelos, os ensaios de peregrinas ideias e perspectivas, que nem sequer houve a coragem de levar por diante. Dominava um espírito de "lançar vinho novo em odres velhos", isto é, de utilizar fórmulas e justificações diversas, mantendo as estruturas institucionais e até as práticas políticas do antecedente. Nestes ensaios e tentativas o País foi a cobaia. Uma cobaia dócil, porque habituada a obedecer; e apesar de tudo, confiante. Sobre ele se debruçaram, com interesse clínico, as mais diversas eminências, recrutando o poder os fazedores de milagres que nos dariam, num quadro de autoridade e disciplina, a liberdade, a democracia, a paz, o progresso, a riqueza, a instrução, a Europa, o Ultramar...
Estas "experiências", que se saldaram quase sempre em fracassos retumbantes, ou se ficaram pelo impasse, quando surgiu um preço político ou foi necessário, com decisão, remover obstáculos, traduziram na sua essência, método e objectivos, a ambiguidade, oportunismo, e incompetência da Administração para realizar os seus próprios propósitos. Delas saíram arruinadas estruturas antigas, que não chegaram a ser substituídas; com elas se preparou caminho, pela confusão ideológica e institucional que trouxeram, pelo dispêndio de energias e bens em projectos inacabados, pela erosão da consciência e determinação do País, pelo acentuar e acelerar de divisões e confrontos, ao caos ideológico e intelectual aproveitado pelos comunistas no pós-25 de Abril.» (in O Fim do Estado-Novo e as Origens do 25 de Abril, pp.224)
O certo é que o cenário repete-se em todas as áreas. Segundo relatório do próprio Marcello. Por exemplo, na Saúde (um dos fetiches nacionais):
«Os meus Ministros da Saúde viram-se em sérias dificuldades para executar as leis que tinham criado e regulamentado, e a prosperidade da medicina ajudava a eclosão e manutenção do espírito contestatário, aliás tradicional entre os médicos em Portugal:» (in Depoimento, pp.145)
O país já tinha uma Guerra contra-subversiva em três frentes no Ultramar. Abrir mais uma frente , de múltiplas afluências, torvelinhos e interesses, na metrópole, não se nos afigura lá muito acautelado. Mas com a excitação do Poder o que é que um novo-rico não ousa? Defesa, Saúde, Trabalho... como não adentanhar também a Educação? E sai uma Reforma do Ensino, pelo inefável Veiga Simão. Resultado? O do costume. Ou melhor, o do costume contra a legislação romeira:
«Apesar da vontade reformadora do governo, de todas as complacências do Ministério, e da boa disposição da opinião descomprometida logo se começou a formar a oposição revolucionária à reforma. Que sim, que a intenção poderia ser muito boa, mas reformas que deixassem intacta a estrutura (burguesa...) não interessavam, e eram até contraproducentes. A esquerda, portanto, rompeu logo. E rompeu logo a direita, por causa do abandono de certas preopcupações educativas e de fórmulas tradicionalmente consagradas, e que se chocava com aquilo em que, na transigência com certas modas pedagógicas, pensava ver demagogia governamental. (...) O caso é que as intenções reformadoras se viram atacadas da esquerda e da direita, sem o apoio dos alunos e com a hostilidade dos professores.» (in Depoimento, pp.155)
Mas, afinal, o governo pretendiia governar à revelia das pessoas, que é como quem diz, dos governados? Mas que país imaginário governava então, desgovernando assim o país real? Que Portugal, embrulhado em papel fantasia, se demandava naqueles laboratórios frankenstoinos? Que princípe maravilhoso, com pleno assento europeu, se intentava reanimar daquele monstro inerte herdado do tartaruguismo precedente?
A lebre não pode responder, porque, depois de tão vigoroso sprint, deitou-se a dormir. E foi já em estado de sonambulismo que a removeram numa manhã de Abril.
Para terminar, um último relance à "revolução industrial" marcellista. E para aperitivo, sai mais uma reforma:
«Logo no princípio do meu governo fiz estudar a reforma do regime do condicionamento industrial e, mesmo dentro dele, a maneira de abrir o mais possível o mercade á competição interna. [E sai mais uma lei:] O ministro Dias Rosas preparou, assim, com a colaboração do Secretário de Estado Rogério Martins, uma proposta de lei de fomento industrial que foi discutida pela Assembleia Nacional e por ela aprovada em 1972 (lei nº3, de 27 de Maio).» (in Depoimento, pp.116)
E também uma reforma no "regime sério de fiscalização das sociedades anómimas" De modo a que os contribuintes não se furtassem ao pagamento das cada vez maiores obrigações sociais contraídas pelo governo (sabemos onde conduziu isto e em que pé está hoje). Marcello trazia a coisa bem premeditada, conforme explica:
«Era uma necessidade instante e dela tinha há muitos anos plena consciência. Por isso, mal chegado ao governo pedi ao Ministro da justiça que preparasse um projecto de diploma sobre o assunto (...) e fixar normas sobre os elementos a incluir nos documentos a publicar obrigatoriamente para a prestação anual de contas, caminhando-se no sentido de uma racionalização da contabilidade tal como é de há muito praticada nas sociedades de seguros» (Idem, pp.120)
E assim se pariu mais um decreto : o nº 49.381 de 15 de Novembro de 1969. Recepção dos pacientes? A do costume:
«Depois pacientemente executado, no meio da má vontade ou incompreensão da maioria das sociedades.» (ibidem, pp.120)
Entretanto, o afã industrial e reformador é de tal modo devoto que, em plena Assembleia Nacional, Teixeira Pinto, um antigo Ministro da Economia de Salazar, em resposta à exposição prévia de Rogério Martins na inauguração do Colóquio sobre Política Industrial, (em jeito de "prólogo a uma estratégia europeia"), propala um discurso contundente, onde diz, a certo trecho:
«A verdade é que parece haver timidez ao falar no Ultramar nos planos económico e financeiro; se se compreende que assim seja, se atendermos á divisão de competências ministeriais, já esta timidez ou respeito não se justifica ao nível exigido pela coordenação das economias. Pior será que a omissão do Ultramar em aspectos fundamentais da política económica corresponda a uma opção, que nem o eleitorado tomou, nem o interesse nacional autoriza. Aqueles que têm uma visão rectangular do País e procuram os grandes espaços no mercado ibérico ou, mais ambiciosamente, numa Europa que ainda não está realizada, deviam recordar-se das palavras do Sr. presidente do Conselho no jornal Figaro, onde se afirma, de modo inequívoco, que a opção europeia não pode sobrepor-se à opção nacional.(...)
Mas o principal problema é de natureza política, e é à luz dele que se devem estimar os resultados no plano económico. Até agora, no caso português, não dispomos de estudos, que eu conheça, sobre o problema, e para aqueles que, virando as costas ao mar, procuram uma integração peninsular ou continental, para esses só existem livros negros da nossa não participação no Mercado comum. Gostaria que os entusiasmos intervencionistas, as fúrias liberais ou os deslumbramentos europeus encontrassem base no estudo claro, ponderado, das nossas alternativas económicas e partissem dos factos essenciais da nossa escolha política.»
No que foi plenamente corroborado, mais tarde, em trabalhos da mesma Assembleia, por Franco Nogueira, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se insurgiu contra os que preconizavam um «política limitada e burguesmente europeia».
Rogério Martins, o secretário de estado vedeta da "revolução industrial", oriundo da CUF, foi acusado, durante a sua acção governativa, de ter favorecido interesses do grupo económico donde migrara em detrimento dos seus concorrentes. Quando deixou o governo, o Diário Popular (controlado pelo grupo Borges) publicou a lista dos alvarás que Martins concedera e onde isso ficava eloquentemente exposto.O que antecipa, sem sombra de dúvida, uma metodologia típica do "Centrão" desgovernante da futura democracia paralamentar.
Por tudo isto, desvanecem-se, não sem algum pesar, certas ilusões afectivas. Bem mais que um desenlace infeliz do Estado-Novo, o Marcellismo constitui vestíbulo e balão de ensaio da democracia paralamentar, em todos os seus avatares e manias, essa mesma que nos assiste e desgoverna desde Novemvro de 1975. Os nossos mandarinetes do PS e PSD mais não protagonizam que epígonos marcellóides, frustes e mentecaptos na comparação intelectual, mas igualmente excitados no reformismo peregrino e legisladeiro. Tanto quanto no exercício experimental sobre um país fantástico, extraído algures das sua tripa cerebral...apofântica. Todos juntos, Marcelo e os seus vis derivados (com a ajuda breve mas prestimosa de comunistas em apoteose), conseguiram liquidar um império, restaurar uma balbúrdia, consumar três bancarrotas e reduzir à mendicidade internacional um país outrora soberano.
Quanto a certos marcelleiros de arribação, cuja desmioleira frenética só é equiparável ao bojo fanático, parece que idolatram o fundador mas abominam a legítima seita prosélita. Para quem imagina amanhãs chilreantes numa espécie de Parque Marcellássico reciclado (sem pretos, nem pobres, nem salazaristas, nem poetas, e eleitores comunistas e socialistas banidos por decreto), não deixa de ser estrábico, tanto quanto alucinogénico, apostar no menos ortodoxo e fidedigno dos bandos (ultimamente até já duvidam de Santo Keynes, imagine-se...). Ilacção inequívoca: estamos perante o beatolas típico: vai à missa escutar o prior, mas acreditar, mesmo, só na bruxa.
PS: Nos últimos meses do governo de Marcello, emergia um dos presságios mais comuns das revoluções: "rondava esse homem invisível que trafica nas épocas de crise - o especulador." Lembro-me bem disso.
PS: Nos últimos meses do governo de Marcello, emergia um dos presságios mais comuns das revoluções: "rondava esse homem invisível que trafica nas épocas de crise - o especulador." Lembro-me bem disso.