terça-feira, maio 05, 2015

Marcello - Humano, demasiado Humano

«NO CARMO 1. Na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, Marcelo Caetano recebeu em casa, e na cama, um telefonema do major Silva Pais, director da PIDE, para lhe dizer que a "revolução estava na rua" e era "grave". 
Silva Pais aconselhou Marcelo a ir para o Quartel do Carmo, porque no "16 de Março" já tinha ido para Monsanto e era natural que, sabendo disso, os "rebeldes" o tentassem apanhar lá com um "golpe de mão". Além disso, Silva Pais não apurara ainda o "lado" da Força Aérea e considerava a Guarda Republicana "fixe". Marcelo Caetano não achou estranha esta exibição de ignorância e de amadorismo. Não havia, disse ele, "tempo para pensar e discutir". E foi assim, à pressa, sem um plano e um propósito, que se meteu na "ratoeira do Carmo". Depois de falar com o ministro da Defesa, o professor de Direito Silva Cunha, que lhe confirmou em grosso o estado das coisas, seguiu sozinho de automóvel para a Baixa (morava em Alvalade) com um adjunto militar meramente cerimonial. Na Baixa, passou por várias patrulhas que guardavam o acesso das ruas. Julgou que se tratava de tropas fiéis. Não eram, eram tropas do MFA, que, por sorte ou desleixo, não o mandaram parar. 
Pretendeu mais tarde que não vira o Carmo como um "refúgio", mas como um sítio seguro de onde podia acompanhar e dirigir a resistência, ou seja, como um quartel-general. Não se percebe bem a lógica desta ideia. Fisicamente isolado do comando militar, da PIDE e do governo, com comunicações precárias que o MFA com certeza vigiava (ou que, pelo menos, se devia presumir que vigiasse), a presença de Marcelo no Carmo não servia para nada. Pelo contrário, dava um objectivo fácil e decisivo às forças sublevadas. As justificações do exílio não convencem. Tanto mais que o Quartel do Carmo, com uma única companhia de comando e serviços, várias "repartições" de carácter administrativo e dezenas de famílias de gente da GNR que lá vivia permanentemente, hesitaria sempre em se imiscuir em qualquer espécie de violência. 
Recebido "cortesmente" por um general à paisana, Marcelo assistiu inerte à passividade da GNR, enquanto o MFA tomava conta de Lisboa e o povo vinha espontaneamente para a rua. Chamou o ministro do Interior, César Moreira Baptista. Pediu pateticamente à Legião que combatesse. Tentou encontrar, e não encontrou, o Presidente da República. E, no fim, quando milhares de manifestantes se juntaram no Largo do Carmo concebeu mesmo o plano de os massacrar, fazendo descer uma unidade da GNR da Pedro V e subir outra do Camões para os "colher entre dois fogos". Lisboa inteira ouviu, em aberto, pela rádio os comandantes da GNR decidirem desobedecer a essa ordem criminosa. Curiosamente, Marcelo continuava no Brasil orgulhoso com a matança inútil que tentara perpetrar, muito indignado com o recuo da Guarda e sem a mais vaga consciência de que escapara por pouco à condenação e infâmia universal. 
No Carmo, naturalmente, a guarnição e as famílias só queriam que ele desaparecesse depressa, sobretudo depois de uma rajada de metralhadora, completamente inócua, sobre a parede do quartel. As senhoras corriam aflitas pelos corredores. Com a extraordinária desvergonha indígena, o chefe do Estado-Maior da GNR acusou Presidente do Conselho de pôr em risco a população do "edifício". E um major, que se anunciou "delegado do MFA", preveniu que ele ia "desencadear um tragédia". Marcelo resolveu sair de cena com "um tiro na cabeça", para os "díscolos" do Largo do Carmo não o "apanharem vivo". Mas não saiu. »
(...)
Logo a seguir, no meio de grande entusiasmo, Spínola entrou no quartel e encontrou o presidente do Conselho sentado num sofá, numa "atitude serena e digna". Na sala ao lado, César Moreira Baptista e Rui Patrício pareceriam "desmoralizados". Segundo Marcelo, antes mesmo de o cumprimentar, Spínola desabafou: "A que estado estes gajos [o MFA] deixaram chegar isto!" "Isto" era a multidão do Carmo e o povo na rua. Num livro de memórias (de 1978), Spínola transformou esta frase de general de cavalaria numa declaração histórica: "O estado em que Vossa Excelência me entrega o país." E acrescentou: "É tarde para Vossa Excelência reconhecer a razão que me assistia." Esta pequena diferença, acrimoniosamente discutida no futuro, escondia uma querela maior. Marcelo queria demonstrar a inconsciência de Spínola e a fraca autoridade que ele tinha sobre o MFA. Spínola queria passar a Marcelo a culpa da queda do regime e do desastre de África. De qualquer maneira, no Carmo, Marcelo cortou os devaneios de Spínola. Não era altura de "recriminações". Metido numa "viatura blindada", com Moreira Baptista e Rui Patrício, seguiu para a Pontinha sob os "vitupérios" da multidão. 
Este melodrama obscureceu um ponto essencial, que, em 1977 e para profunda fúria de Marcelo, Silva Cunha (o antigo ministro da Defesa) levantou num livro sobre o "ultramar" (O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril). Com os militares na rua, o sistema constitucional do regime, que o prof. Caetano ensinava na universidade, doutamente comentava e afectava respeitar, ruíra num minuto e, pior ainda, tinha sido ele o primeiro, e o único, a reduzir a lei ao seu arbítrio. Sozinho, sem consulta ao Presidente da República, ao Conselho de Estado ou sequer ao Governo (para não falar na Assembleia Nacional), decidira "transmitir" o poder a Spínola. Nada na Constituição o autorizava a isso. Pelo contrário, a concorrência do Presidente da República era indispensável. Nem as circunstâncias permitiam que o Presidente do Conselho sem ouvir ninguém dissolvesse o regime, como efectivamente dissolveu, e até certo ponto legitimasse a sucessão de um general em revolta. Marcelo alegou que não conseguira falar com o Presidente ou reunir o Governo. Mas factos não pesavam contra princípios. Não tardou que à crítica genérica à política colonial e doméstica dos seus cinco anos, se juntasse a acusação de "fraqueza" ou "medo" e a ideia absurda de que ele fora pessoalmente responsável pela derrocada de Abril. No exílio, e vindas de quem vinham, estas torpezas doeram. 
Principalmente, porque Marcelo, incapaz de aceitar a ficção constitucional do regime, se recusava a ver que o edifício para que ele tanto trabalhara e em que tanto se distinguira assentava na realidade crua do poder de um homem, o poder de Salazar e o dele. No Brasil, insistia em visitar Tomás cerimonialmente, como Chefe de Estado no exílio. E não compreendeu o azedume e má-fé dos comparsas daquele melodrama: dos militares, dos ministros, da imensa trupe que se encomendara ao ditador e que o ditador levara à perdição.
(...)
De qualquer maneira, com a sua fúria e o seu rancor, Marcelo Caetano percebeu do Rio o que muito boa gente não percebeu em Lisboa: a inevitabilidade da derrota de Sá Carneiro num confronto directo com Eanes. Considerava o general Soares Carneiro "excelente" e até "óptimo". A "manobra" de Sá Carneiro é que lhe parecia "mal conduzida". Marcelo suspeitava, e com razão, que Sá Carneiro ("nessas coisas mais autoritário do que o próprio Salazar") impusera a candidatura do general ao grosso da AD e que subestimava largamente a força de Eanes. Pior: Marcelo também previu, e acertou, que a recusa de Sá Carneiro e Freitas de governar com Eanes só os prejudicava a eles e acabaria por entregar Portugal a uma personagem de recurso. Aquela "aventura" era "imprudente". Infelizmente, na cabeça de Marcelo, esta clara análise política andava misturada com a ideia peregrina de que Adriano Moreira, uma bête noire, planeava aproveitar a confusão para se alçar a primeiro-ministro. E, se isso acontecesse, dizia ele a sério, preferia o socialismo. O passado nunca o largava. O FIM 5. Mas, devagar, o tempo diluiu a intensidade e do ódio e do desapontamento. A enorme lista de inimigos do peito foi sendo esquecida: Spínola, Silva Cunha, Silvério Marques, Franco Nogueira, Adriano Moreira, este e o outro, que o tinham "caluniado" e "traído". Falava ainda dos discípulos, que o abandonavam, não o citavam ou não visitavam. Mas sem a irritação do princípio. Começou também a ficar progressivamente sozinho. A emigração política do PREC voltou quase toda a Portugal e a que não voltou preferiu ignorar os meios do exílio. Morreram alguns fiéis e a própria família o ia ver com menos regularidade. Insistiram com ele para que viesse à Europa, ao Sul de França, ou a Paris. Recusou. Não queria que pensassem que ele passeava pela Europa, como um turista vulgar. O Brasil era o seu lugar: um lugar de martírio. 
Surpreendentemente, em 1977, decidiu alimentar um idílio por carta com uma professora da Faculdade de Letras, que de repente se descobrira uma intensa devoção por ele. Trocavam longas cartas de uma intimidade rara na correspondência (publicada) de Marcelo. Ele escrevia poemas (pelo menos, prosa "poética"); ela mandava flores secas, como competia, e algas da praia das Maçãs. Um Marcelo inimaginável anula de repente a figura disciplinada e seca do ditador: "... Estamos brincando com fogo... Com aquele fogo que arde sem se ver... Estamos brincando com a água do Oceano que nos separa E que põe entre nós a distância que nos dá segurança Permitindo-nos afirmar, cultivar e inflamar sentimentos Sem risco para a tua intocabilidade ... Os teus escrúpulos religiosos... Mas escrevemos um ao outro palavras cada vez mais significativas As tuas mãos entrelaçam-se (no papel) com as minhas mãos Os nossos olhos perscrutam-se na escuridão a querer conhecer Penso em ti todos os dias e contigo converso dia e noite como um fala-só." O episódio seria irrelevante, se não revelasse a tristeza e solidão de Marcelo. E não vale a pena insistir nele, excepto por um ponto. Provocado pela insistência da amiga, Marcelo acaba por explicar expressa e claramente o seu agnosticismo e a sua posição perante a Igreja. Não é agnóstico, avisa ele, "movido por qualquer ideia mesquinha": "Zanga com os padres, política da Igreja, etc." Não. "Na base de qualquer atitude religiosa está a fé (virtude sobrenatural, etc., etc.). A partir da fé em Deus pode ser-se cristão, budista, xintoísta, seja o que for. Se falta a fé, o resto é hipocrisia social, casca sem miolo. Ora, eu perdi a fé. Por um processo lento, que dura há bastantes anos, durante os quais lutei com a razão, procurei não abandonar práticas, evitei dar escândalo. O caso é que nada mudou." E, a seguir, acrescenta: "Às vezes perde-se a fé e conserva-se o respeito pela Igreja em que ela foi vivida: em mim desapareceu uma e não ficou o outro. Mas são coisas distintas: não sou mais católico, porque que definem o catolicismo; não sou mais cristão, porque não acredito na divindade de Cristo; não sou mais religioso, porque não presto culto a Deus, a quem não nego, apenas considero a criação e conservação do mundo um grande e prodigioso mistério insusceptível de ser penetrado pela inteligência humana, capaz apenas de procurar hipóteses explicativas, das quais a existência de Deus é uma." 
Quanto à Igreja, Marcelo é taxativo: "... a Igreja é uma organização humana, política, oportunista, que capta fiéis como os candidatos captam votos. Respeitava-a se ela continuasse igual a si mesma e não temesse cair de pé para não negar nada do que um dia apresentou como eterno. Mas afinal é uma espécie de CDS." CDS ou não, nem a viagem de João Paulo II ao Brasil o comoveu. Não resistiu mesmo a um comentário de puro gosto jacobino e anticlerical. "O Papa falou no Nordeste sobre a seca, a miséria do povo, os deveres do Governo para com aquela pobre gente... Certíssimo. Mas se um gesto taumatúrgico dele fizesse chover, isso sim, é que era original... e bom!" 
De tudo, na inconsolável velhice de Marcelo Caetano, ficava o trabalho: aulas, conferências, os livros que publicava e uma ocasional intriga de eruditos, que o distraía e o compensava da impotência política. Infelizmente, no Brasil, não tinha acesso à maior parte do material de que precisava, um ambiente universitário que o animasse ou alunos com aplicação e o fervor dos da Faculdade de Direito de Lisboa. Fosse como fosse, resistiu e trabalhou até ao fim: com persistência, com método, com desespero. Do naufrágio, não lhe restava mais nada.»
- Vasco Pulido Valente, "Marcelo Caetano - A Queda e o Exílio"



Decerto não poderá acusar-se o Vasco de salazarista, fascista, ultraconservador nem nenhuma dessas incontinências retóricas de cacaracá. Bem pelo contrário, o Vasco abomina Salazar, tem fobia de ditaduras e manifesta por Marcello uma humana compaixão. Dispensava-se a devassa do baú sentimental do senhor. Mas no resto fica bem patente, numa crónica longe de hostil,  o egocentrismo descomunal e impermeável do velho professor. E a sua imunidade a qualquer tipo de auto-crítica. Até por isso, o seu agnosticismo final é eloquente: um homem sem mácula nem pecado dispensa, sobretodas, a religião católica.
Tudo isto, não obstante, com uma atenuante e uma honestidade estratosférica em relação a certos marcelleiros peregrinos, em quem a fé apenas serve de capacho à fézada. Ora, o que decerto Marcello não merecia, bem mais que de atacantes putativamente injustos, era de apologistas certificadamente mixordeiros e asnopédicos.
E se é para aturar arremedos bacocos, decalques aleijados e reverberações chungas (do Vasco), mil vezes o original!... 

15 comentários:

  1. O camarada VPV, para historiador, tem um horror excessivo a ser julgado insuficientemente devoto da liberdade e do progresso. Apesar de ter estudado e documentado muitos dos crimes praticados em prol das beneméritas causas.

    (Observação periférica, já que o tema principal é demasiado triste. Só me ocorre que em Quarta-feira de Cinzas há cristãos que marcam a testa com uma cruz das ditas cinzas.)

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  2. « Ora, eu perdi a fé. Por um processo lento, que dura há bastantes anos, durante os quais lutei com a razão, procurei não abandonar práticas, evitei dar escândalo. O caso é que nada mudou.»

    O mesmo parece que aconteceu com Oliveira Salazar, já em Coimbra, segundo afirma Freitas do Amaral no prefácio a uma célebre obra de Felícia Cabrita, sem indicar fonte. Não "abandonou práticas" para manter aparências e conveniências, mas o certo é que "nunca ninguém o viu comungar", como diz o historiador salazarista (e secretário da Assembleia Nacional) Costa Brochado, nas suas memórias.

    Oliveira Salazar, católico?... Nas relações dele com a Igreja, antes e depois do Concílio, está uma chave. Num certo diálogo, numa certa noite de Coimbra, em 28, com o padre Mateo Crawlwy Boeevey (contado por Cerejeira a Franco Nogueira, está outra chave.

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  3. euro2cent,

    o VPV é very british. Democracia puro malte...

    :O)

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  4. O velho Estado Novo cairia, mais Marcello menos Marcello. Anacrónico e dependente do génio de quem o liderou.
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    Os salazaristas tem várias glorias para reportar. Quase todas até ao inicio dos anos 50. E deviam, na minha opinião, circunstanciar os elogios ao querido lider a esse período. Mas não.
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    Marcello teria sido, em meados da década de 50, um perfeito substituto de Salazar. Quando o substituiu era demasiado tarde para renovar o regime e actualiza-lo.
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    A culpa não é de Salazar. Nem de Marcello. É do regime que ambos construíram. Ao contrário da monarquia que prepara um príncipe anos a fio, que o instrui com os melhores tutores do reino, a salazarismo é sistema que morre com a pessoa que lhe deu corpo. Um regime sem futuro, portanto.
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    O Dragão é a prova disso mesmo. Toda a argumentacao dele gira em torno da ideia: o que teria feito i Salazar se não tivesse morrido?
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    Convenhamos, isto é a mesma cousa q dizer que, se a minha avó tivesse tomates era o meu avô.
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    Rb

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. « A culpa não é de Salazar. Nem de Marcello. É do regime que ambos construíram. Ao contrário da monarquia...»

    Aqui está a outra chave: as relações entre o "regime" que os velhos integralistas chamavam "Salazarquia" e a Ideia Monárquica, mimada pelo pseudo-monarca Salazar.

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  7. Caro Dragão:

    Apontam no seu apontamento sinais de simpatia humana para com o digno exilado, que também foi um grande intelectual (da casta académica) e, não duvido, um político que quis o melhor para os portugueses e Portugal. Marcello Caetano merece a nossa simpatia humana e o nosso respeito, – sem prejuízo da crítica (legítima) ao seu procedimento enquanto político.

    Os anónimos e o comentador Ricciardi complementam-se na alusão ao assunto teológico-político e à importância crucial da década de 50, que foi onde tudo se decidiu. Duas datas. –

    1951, logo após o falecimento de Carmona e a possibilidade da Restauração monárquica, publicamente inviabilizada em Novembro, no congresso da UN. Uma rejeição protagonizada pelo ex-monárquico Caetano, que tudo fez para levar Salazar para a presidência da República, e ficar ele próprio disponível para... realizar o seu sonho, que só em 68 se realizou – e o matou.

    1959, Maio, nas circunstâncias em redor da inauguração do monumento a Cristo Rei; Junho-Julho, na Assembleia Nacional, quando se pretendeu introduzir certa proposta na Constituição – e foi reprovada. Que tudo deve ser lido à luz do “caso” do Bispo do Porto, começado no ano anterior, desgraçadamente concluído.

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  8. Ainda outra nota. Um Anónimo falava em “Ideia” monárquica. Peço licença de discordar. Não se trata de “ideia”, hegeliana ou outra. Trata-se, sim de uma Tradição viva. Ainda hoje viva, para quem já testemunhou (como eu) a relação que ainda existe – e pronta e espontaneamente se estabelece – entre a Família Real e muita da nossa gente popular (velhos e novos), ao acaso dos contactos pessoais por esse país adentro; e fora, com os emigrantes ou nos países lusófonos.

    Graças a Deus, há vínculos vitais que parece que não morrem! Ficam como encobertos, como que em reserva...

    Uma Tradição viva é mais do que as “ideias” que políticos intelectuais e patriotas, por mais bem dotados e dedicados, possam subjectivamente excogitar de si para mexerem com a História de um regime de vida multissecular – e de uma nacionalidade religiosamente informada há dois mil anos.

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  9. Fico perplexo com o que por aqui vai de desconchavo acerca do salazarismo e do seu sucedâneo marcelismo. Não sei mesmo como é possível a subsistência da defesa do regime corporativo-fascista do Salazar a tantos anos de distância, conhecendo-se hoje com algum rigor o que foi o dito cujo. Isto é coisa de mentes deformadas pelo ódio cego à democracia, que não conseguem destrinçar entre a mediocridade da burocracia política que se instalou no poder com o cavaquismo e que continua hoje e a mediocridade da burguesia portuguesa que vem dos tempos em que se formou, uma e outra sem qualidades para existirem sem a protecção e a teta do Estado (e, desde 86, das ajudas comunitárias).

    Com todos os defeitos, pessoais e políticos, que eram muitos, o Marcelo deixava o Salazar a milhas; em tudo, na inteligência, no dinamismo político, no saber académico, na capacidade de trabalho, etc., salvo, talvez no ego, tão avantajado no Marcelo, mas mesmo isso compreensível num ser que era realmente muito superior à mediania do Salazar e dos que ele se fazia rodear. Ele foi um integralista e, depois, um verdadeiro fascista, ao contrário do Salazar, que não passou de mero professor de finanças (e de contabilista dos dinheiros públicos) e de hábil manobrador dos jogos de poder; ele (e o Pedro Teotónio, outro fascista quando jovem) foi o mentor, e nalguns casos o escrivão, do projecto da Constituição de 33, do Estatuto do Trabalho Nacional, do Acto Colonial, enfim, dos principais instrumentos que deram consistência a um regime, o lançador da Mocidade Portuguesa, o introdutor dos Planos de Fomento (enquanto ministro da presidência, que tiveram depois continuidade), o fundador da RTP, etc., etc., etc.

    Apesar de ter abandonado a ideia monárquica, e não é de pôr de parte a influência do sogro, a quem estimava, para que aceitasse o carácter republicano do regime, ao contrário do Salazar, que manteve sempre as meias-tintas, para não suscitar a animosidade do republicanismo conservador da maioria da hierarquia militar que o mantinha no poder e para não arranjar mais problemas a somar aos que tinha, mas que para sossegar a reacção monárquica disse “poderá chegar a altura em que a solução monárquica seja uma solução nacional”, politicamente o Marcelo era tão reaccionário e anti-democrata quanto o Salazar, talvez não tão autoritário e mais descentralizador. Daí que o marcelismo tenha tentado a “renovação na continuidade” do regime corporativo (que no pós guerra, com os novos tempos inaugurados com a derrota do nazi-fascismo, abandonou as conotações nitidamente fascistas da década de trinta), tentando remendar o edifício corporativo, em seu entender mal edificado, de que tinha sido um dos ideólogos. Comungando com o Salazar, em parte, do reaccionarismo conservador, anti-liberal e anti-democrático, o Marcelo não tinha qualquer intenção de abdicar de um regime autoritário nem de promover mudanças no sentido da democratização da vida política.

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  10. E quanto às colónias e à guerra também não tinha quaisquer intenções de promover a autodeterminação colonial que poria fim à guerra. Esperaria, quanto muito, que as alterações estatutárias e a maior autonomia que concedeu a Angola e a Moçambique, por exemplo, promoveriam nelas movimentações independentistas brancas, mas até isso era inviável, porque a economia colonial era maioritariamente dominada por grupos monopolistas metropolitanos, não existia uma burguesia local empreendedora (para além dos pequenos negócios, que medidos pelos de cá pareciam grandes) e independentista e não fora promovida uma verdadeira cidadania para os pretos (que embora nominalmente portugueses eram de facto portugueses de 2.ª, de 3.ª e até nativos, nem portugueses, nem angolanos ou moçambicanos ou guineenses). Um regime reaccionário e uma burguesia parasitária que foram incapazes de promover o desenvolvimento económico do país não poderiam promover o desenvolvimento económico e social das suas colónias, que para além das retóricas propagandísticas do “país uno e indivisível do Minho a Timor” não passavam de fornecedoras de matérias-primas e de escoadores seguros para muita da merda que aqui se produzia (do vinho aos panos e a outras muitas bugigangas) e que pela baixa qualidade não encontrava outros mercados. Um país sem capital não se desenvolve nem pode desenvolver as suas colónias, como bem o vira em tempos o Alves Reis tratando de imprimir dinheiro para investir aqui e em Angola.

    O Marcelo, pela ideologia própria e pela do regime que ajudara a fundar, e por muitas outras circunstâncias, foi um homem fora do tempo, do tempo novo que irrompia pujante nos anos sessenta por todo esse mundo fora, e não tinha qualquer solução para os graves problemas com que o país se debatia. As taxas de crescimento económico invejáveis ocorridas durante os seus governos foram interessantes, sim, senhor, mas também elas foram em parte fruto da guerra colonial, quer pelo aumento dos consumos militares (que absorviam parte substancial do orçamento) e das importações coloniais, quer pela maior abertura ao capital estrangeiro (que se iniciara timidamente ainda no tempo do Salazar, em 1960, com a entrada para a EFTA), que aumentava o emprego, quer pelos aumentos salariais provocados pela escassez de mão-de-obra (devido à mobilização de muitas dezenas de milhares de jovens para a guerra e à emigração). Mas até isso foi fugaz, porque um desenvolvimento assente em salários baixos, e mesmo assim sem competitividade exportadora (a não ser pelo turismo), cuja poupança é proveniente maioritariamente de não residentes (as remessas dos emigrantes), não pode escapar ao aumento dos preços das mercadorias importadas, como foi o caso com o aumento do preço do petróleo. A inflação dos preços, reduzindo o consumo interno e aumentando o peso das despesas militares, e a consequente redução das remessas dos emigrantes (que também tiveram os seus salários reais diminuídos), colocaram graves problemas de finanças ao seu governo, e o aumento da conflitualidade laboral, procurando os trabalhadores recuperar o poder de compra perdido, confrontaram o regime com a instabilidade social e, depois, política. O resto, o “ó despois” é bem melhor conhecido, ainda que visto com olhares enviesados os mais variados. Mas mesmo esta merda de democracia não tem comparação com os tempos de má memória do salazarismo e do marcelismo.

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  11. Um último apontamento, em relação a umas afirmações do VPV acerca da loucura do Marcelo, quando encurralado no Carmo para que a GNR actuasse. Desconheço a fonte do VPV, mas posso comprovar, porque vi, que soldados da GNR, devidamente arreados e municiados, armados de pistolas-metralhadoras Tompson (daquelas de carregador redondo, usadas pelos gângsteres americanos nos anos 20), chegaram a cercar o quartel do Carmo já com o Largo cheio de maralhal e com a tropa fandanga do Salgueiro Maia a brincar à guerra. Na altura, pareceu-me estranho a tropa ir à papo-seco para o Largo do Carmo, onde seria facilmente neutralizada (o que dá uma ideia das competências de comando do capitão de cavalaria…). Sabendo do potencial de fogo para combate de rua que a GNR possuía, desde armamento a blindados ligeiros (que julgava em parte sedeados no quartel do Carmo), resolvi dar uma olhadela às redondezas, não fosse o diabo tecê-las; subi a rua da Trindade e desci pelas Escadinhas do Duque; aqui e na travessa do Carmo contei mais de duas dezenas de GNR encobrindo-se nos desvãos das portas do casario. Valeu à tropa fandanga com 4 meses de instrução o maralhal que enchia o Largo, e a este a ordem do Marcelo (se é que a deu) não ter sido cumprida. Com o poder de fogo que vi exibido, seria um morticínio.

    Mais do que por mérito dos revoltosos do Movimento dos Capitães, que seriam facilmente neutralizados (no Terreiro do Paço, na Ribeira das Naus, na Rua do Arsenal, no Largo do Carmo), o regime caiu porque não teve muita gente disposto a defendê-lo (e era este facto insofismável e as suas causas que os saudosistas deveriam ter presentes, em vez de andarem feitos palermas a assacar culpas aos hipotéticos borreganços do Marcelo, deste e mais daquele). Mas como tantos outros regimes (da Monarquia a alguns da República) caiu porque o povo de Lisboa, gente jovem, na sua esmagadora maioria, veio para a rua aos magotes e tomou o partido dos revoltosos, dificultando ou impedindo as manobras ofensivas das poucas tropas que na capital acorreram a defendê-lo. E, como em tantos outros casos, tudo se decidiu em Lisboa, porque o país é Lisboa e o resto é paisagem.

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  12. Caro Duarte,

    Sei que estou em dívida consigo. E agora ainda fiquei mais, com a achega sempre esclarecida e oportuna dos seus comentários.

    entretanto, de pouco adianta eu repetir que não se trata de erigir culpados, mas perceber causas, avaliar vulnerabilidades e, no topo, naturalmente, apurar responsbilidades. Porque o português gosta mesmo é de despejar culpas, inventar santos, eleger demónios, pôr-se em bicos de pés sobre pedestais, armar clubes, etc.
    Não se trata também do tradicional "depois de casa roubada, trancas na porta": é bem mais o "depois da casa roubada e vandalizada, perceber como é que os ladrões entraram, que desleixos houve dos moradores, que conivências do pessoal doméstico (se as houve ou não), etc. Atribuir a culpa aos ladrões é exíguo: eles são criminosos compenetrados, ompenitentes, pelo que até se riem da culpa. Chamamos culpa ao que eles entendem por brio profissional.
    Quando a fortaleza é tomada de assalto por forças externas sobrepujantes e avassaladoras, a explicação é clara e óbvia; quando ela cai por dentro e colapsa por insídias, minagens, negligências e traições internas, a coisa é mais complicada. Nebulosa. E torpe.

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  13. Quanto ao anónimo democrata que me atribui "uma mente deformada"...

    Pois lá está, antes deformada que conformada ou formatada.

    E essa do fascismo não cola. Na "juventude" do Marcelo, até o Churchill admirava o Mussolini.
    Que o Estado-Novo fosse fascista, só mesmo na propaganda comunista (o que coloca o caro democrata em boa companhia - pelo menos de gente com mentes das melhores formações e proveniências). Ainda por cima, dá-se o caso de que eu sei o que é o fascismo (e o comunismo também), portanto nem encaro isso como a mera desqualificação retórica com que é geralmente utilizado. Concedo-lhe pois a benesse de , acima da mera injúria, estar a proferir uma soberba asneira.
    Quanto aos considerandos sobre cintilâncias intelectuais, há que definir as disciplinas: se é enquanto docente universitário, se é enquanto político/governante, se é enquanto desportista, se é enquanto escritor, pensador, etc.
    Num ponto o Marcello devia ser realmente um supra-sumo: como académico de direito (não sendo eu dessa área bizantina, escuso-me de comentários ou deslumbramentos. O que é óptimo).
    Quanto ao resto, que é que interessa realmente a todos nós, fora o desportista, infelizmente, o Marcello não possuía a excelência universitária. E ficava bastante abaixo da mediania de Salazar. Sou o primeiro a lamentá-lo.
    Isto, sem colocar minimamente em causa, as suas estrénuas capacidades de trabalho, sólida formação moral, imaculada liderança familiar e aparelho completo das melhores intenções.

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  14. Ah, e ódio cego à democracia é que eu não tenho.
    Admiro-a até muito... nos ingleses. E até, em boa medida, nos americanos.
    A mixórdia que os portugueses, por incompantibilidade atávica e genética (passe a redundância, fazem com ela, é que me causa, não ódio, mas justa repugnãncia. Gosto de whisky escocês, irlandês e até de bourbon do Tenessee/kentucky... Surrapa de Sacavém, beba-a você, se gosta e tem estômago para isso.

    Por isso, acredite: a democracia, em Portugal, nem é um problema de regime: é um problema de higiene pública!...

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