O nosso já velho conhecido Ralph Peters tem mais um desarrincanço bestial. A pérola formidável intitula-se
"Blood Borders -How a better Middle East would look" e desenovela-se a partir do seguinte axioma:
«The most arbitrary and distorted borders in the world are in Africa and the Middle East. Drawn by self-interested Europeans».
Felizmente, não existem apenas estes europeus maus, gananciosos e péssimos map-designers. Existe também o Ralph Peters e existem, sobretudo, americanos altruístas, sempre prontos a acudir às injustiças do mundo. Gente, ainda por cima, duma dinâmica e generosidade ímpar, que raramente perde tempo com pensamentos embaraçosos, preferindo, por regra e sem mais preâmbulos, a acção imediata e desembaraçada. Em conformidade, aprestam-se desde já para corrigir os desastrosos e grotescos sarrabiscos dos europeus. Peters dá o exemplo. Com destemor vigoroso, liderando todo um pelotão de arquitectos iluminados que se adivinha, atira-se ao Médio-Oriente. Efervescente de sabedoria, pletórico de energia característica da tribo, gastou dois minutos no estirador e, em duas penadas, com traço demiúrgico e inspirado, resolveu a balbúrdia. Arrumou cinderelicamente os países. Um Leonardo não faria melhor. A Carochinha, tão pouco.
África, entretanto, que não desespere. É quase garantido que não perde pela demora. Daqui a meia dúzia de "shock&Awes", há-de chegar a vez da Nigéria, de Angola, do Sudão, do Chade, da Líbia, enfim, de todos e quaisquer países cujas reservas petrolíferas o justifiquem. E compensem. Porque os americanos são beneméritos e altruístas -o projecto é gratuito, a assessoria posterior e a tutoria benigna também -, mas não podemos contornar nem esquecer, aquando da instalação, toda uma despesa com terceiros, nomeadamente onerosos encargos com sub-empreiteiros e maquinaria pesada...
A generosidade de Peters, não obstante, sempre na brecha, alcança píncaros de benevolência. Com caridade inexcedível, faculta-nos até um relance antecipado e certamente deleitante da sua prodigiosa maquete. Maquete - que digo eu?- milagre portentoso, isso sim (se Cristo curou paralíticos, Peters acaba de curar todo um semi-continente!). Pasmemos, então, caros leitores:
1. O Médio-Oriente desastrosamente gatafunhado por europeus pérfidos:
2. O Médio-Oriente redesenhado por americanos beneméritos e altruístas:
Uma vez recobrados do pasmo, caso não nos tolha para todo o sempre um trauma profundo ou torpor cataléptico equivalente, talvez nos ocorram um ou dois considerandos...
Um, que assim de relance me ocorre, relativamente insignificante, inócuo, senão de todo despiciendo, é que, por exemplo, em África, as fronteiras que os europeus tão ignobilmente traçaram só começaram a sangrar coisa que se visse desde que as potências beneméritas e altruístas –como os Estados Unidos, a União Soviética e a República Popular da China – desataram a armar, a instruir e a manipular toda uma constelação de grupelhos heteróclitos e satélites –entre proletarizados à pressão, evangelizados a martelo ou catequizados-sobre-o-joelho – mas todos eles inflamados de um ardor revolucionário-libertador e, sobretudo, duma vocação terrorista, gulosa e depredadora que, mais ainda que sobre os europeus que em tese a motivava e consagrava, se abateu, impiedosa e praticante, sobre os africanos (geralmente mais desprotegidos e cativos da gleba) que, por alguma dúvida ou reticência, não aderiam com a passadeira vermelha devida e a urgência VIP vitalícia, aos seus ímpetos e frenesins emancipantes. Prova disso, entre mil outros episódios que podia aqui descrever, aconteceu no norte de Angola, em 1961, quando uma horda de frenéticos liambados, sob o filantrópico patrocínio dos Estados Unidos da América, incendiou, pilhou, violou e assassinou –de catana, preferencialmente -, 3.000 brancos e 30.000 bailundos, todos eles portugueses. Os bailundos, com certeza, não podiam estar a expiar o crime de serem colonos.
Os ventos da história, naquela época, não dormiam. Concertados com a acção benemérita internacional, não descansaram enquanto não sopraram os pérfidos europeus dali para fora. Após peripécias várias, cada qual mais sórdida que a anterior, mas todas elas irrelevantes para a consciência dos nossos historiadores manteúdos de regime (seja ele qual for), lá acabaram por debandar todos, os tais glaucos, de volta ao ninho de víboras originário, deixando África entregue às suas fronteiras e aos delegados plenipotênciários de serviço - fiéis depositários e procuradores, todos eles, dos valores superlativos das potências beneméritas e altruístas. A democracia, merceeira ou popular, sempre à cabeça.
Curiosamente, desde então até hoje, as fronteiras têm sangrado com uma abundância sempre crescente, quando não recordista de carnificinas. Os massacres, as razias, as epidemias, a fome, a miséria, a corrupção, o racismo, o apartheid baseado no espólio, a desvalorização da vida humana, alcançaram contornos dignos dum Mordor tolkienesco. Extraviados das suas formas de vida tradicional, despejados anarquicamente do Comboio-para-a-civilização, os africanos viram-se largados na terra de ninguém, num limbo de não-gente - decoração macabra de estatísticas, pura e completamente à mercê dos apetites insaciáveis de empórios, traficantes e tiranetes de aluguer. Ainda mal acabavam de suportar o pior do colonialismo, cem anos de discriminações e desumanidades avulsas, quando finalmente começavam a usufruir da qualidade de pessoas, com direitos, benefícios e dignidades arduamente adquiridos, eis que os devolviam, de roldão, ao tribalismo mais asselvajado. Depois dos europeus brincarem com eles às civilizações, era a vez dos soviéticos (e toda uma esquerda acólita, de lavadinhos mentais e desinfectados urbanos) brincarem às revoluções e aos marxismos-leninismos em digressão tropical; dos americanos brincarem, primeiro, às guerras frias e, logo após, aos mercados, aos FMIs e aos Terrorismos de Conveniência; e de todos, beneméritos e egoístas, americanos, europeus penitentes, russos, chineses e até indianos e brasileiros, brincarem aos neo-colonialismos. Redundante será acrescentar que, comparado ao melhor do neo-colonialismo, o pior do colonialismo não passava duma brincadeira de crianças.
A culpa, naturalmente, hoje e sempre, é das fronteiras e de quem as traçou. São fronteiras que sangram excessivamente, numa incontinência desatada. A culpa, grandessíssima culpa, sabemos mais, sabemos todos, por decreto e tele-pulverização ao domicílio, é da velha Civilização Ocidental, pré-holocáustica, europeia, essa messalina! E do europeu malvado, Atlas em figura de gente, mais o seu imenso e esmagador fardo de remorsos e assombrações persecutórias!
Graças a Deus, a Darwin e ao macaco ateísta com polegar oponível à boleia da última moda, uma das potências beneméritas e altruístas ascendeu a superpotência única, criadora duma Nova-Civilização Acidental, pós-holocáustica, pelo que se pode dar ao luxo, ao requinte e ao desfrute catita de ser super-benemérita e super-altruísta. É, pois, nessa condição inefável e por via de tão sublime confluência astral, que vai doravante redesenhar as fronteiras hemofílicas legadas por europeus malvados, substituindo, o quanto antes, aquelas que sangram por umas que nunca mais sangrem e apenas suem e segreguem sucos energéticos com a maior das generosidades. Sendo que o mais certo, pelo andar da carruagem, é acabar tudo numa substituição de fronteiras com hemorragias por fronteiras com hemorróides. E confiar que, dissolvido em tanta e tão ininterrupta merda, o sangue acabe por passar despercebido.
São infinitas as propriedades diluentes do sangue dos outros.
PS: A realidade deste nosso mal parido tempo, lembra cada vez mais a profecia nietzschina dos “últimos homens” - criaturas pequeninas, rasteiras, superficiais, sem valores, peixinhos coloridos confinados a um aquário nihilista. O filósofo alemão não se cansou de anunciar - fenómeno que, aliás, já grassava na sua época -, a efeminação e a infantilização –ou seja, a imbecilização paulatina e convulsiva - da humanidade.
Olhando a política, a geopolítica, a geoestratégia e toda a corte de minhoquices subsidiárias - da propaganda à publicidade, da história às artes, da filosofia à literatura - que nos cercam e sitiam, a ideia que fica, que se instala, que persiste obsidiante por mais que a esconjuremos, é a dos governos das nações, do recreio das elites e do laboratório das ciências estarem transformados numa amálgama tumultuosa fruto do cruzamento consanguíneo entre o parque infantil e o asilo de alienados perigosos. Como se por toda a parte imperasse não a prudência, o realismo, a humildade básica inerente a um ser mortal, a comum sensatez, o sentido de povo, sociedade ou estado, uma moral ou ética por mais rudimentar que seja, ou qualquer outra virtude ou faculdade imprescindíveis à gestão sóbria dum destino, mas a birra, o capricho, a mania, a pirraça, a maldade gratuita, a manha, a mariquice assexuada, a irresponsabilidade ufana, a espertalhonice, a fanfarra, a imitação macacóide, a cagufa histérica, a frivolidade, a egomania, o autismo, a toleima, a chantagem emocional, a mitomania, a fantasia parola, o bandoleirismo coquete, o carnaval ubíquo, o onanismo furtivo e toda uma parafernália de puerilidades traquinas do idêntico quilate.
Quando fedelhos cristalizados destes se põem a brincar com fronteiras, com países e, sobretudo, com o sangue, a dor e a desgraça das pessoas, o mínimo que devia haver era uma espécie de autoridade justiceira metafísica, ao estilo da Nemésis ou da Até mitológicas, que os confinasse a um qualquer Hades correccional, onde, na vizinhança de Sísifos e Tântalos, brincariam pela eternidade... Com a pilinha - perpetuamente mirrada e flácida - deles. (Ou o grelinho - infinitamente estéril e frígido -delas.) Sendo que a pilinha e o grelo seriam -como em muitos casos já são - perfeitamente intercambiáveis.