Atrelar um rei a uma Constituição não é coisa de seres racionais, mas de duma associação recreativa ou grupo excursionista de cavalgaduras. Dito ainda mais sinceramente: rei que aceite constituição é-me insuportável, a não ser que eu próprio seja esse rei. Como aceitar por soberano um cidadão meu semelhante, um súbdito duma receita lavrada qual catálogo duma teocracia de vermes? Intragável essa soberania promíscua, mais digna de albergue espanhol que de terra portuguesa, em que todos são soberanos do soberano, mas nenhum é soberano de si. Palco sórdido e velhaco onde se canta a liberdade, mas onde até o rei se vê reduzido à vassalagem. Da Constituição, imagine-se. Da democracia da treta e dos seus parasitas sufragados.
E note-se que o drama não começou na vaca da Revolução Burguesa, digo Francesa. Aí, na cloaca obrigatória, desaguou ele. Na verdade, tudo principiou, o trambolhão completo, quando um belo dia um rei, tentado por um qualquer espelho maligno, descortinou: "o Estado sou Eu". Foi o mesmo que dizer: "Eu sou a minha própria negação." Faltou lá um Aristóteles qualquer que lhe ensinasse, do alto daquela autoridade que só a neve dos cabelos brancos confere: "não, infeliz, isso é precisamente o que tu não és, e devias esmagar o quanto antes, como réptil peçonhento que é! Porque se em vez de o pisares, te transformares nele, trazendo-o para dentro de ti, virá o dia em que será ele a dizer: "O Rei sou Eu!"
Infelizmente, esse dia veio e é o dia que, como sombras errantes num Hades mais lúgubre que o original, atravessamos. Esta era em que o superior se submete ao inferior, em que se talha a regra à medida da lei, em que as estrelas do pântano se fazem aclamar como estrelas do céu. E, sobretudo, em que a "ausência de regime" passa por regime e a multiplicidade desarvorada de esquemas faz as vezes de sistema.
Ora, alguns idólatras da formalidade e do verbo fátuo, acreditam que se o réptil adoptar coroa a coisa fica menos sórdida e rastejante. É, assim, a coroa reduzida ao adereço material e o adereço promovido a fontanário de virtudes. Pior, é a Coroa legia nostra.
Todavia, não me parece assim tão difícil de perceber, mesmo para mentes frívolas e salta-pocinhas, a razão simples por que uma monarquia deteriorada e deteriorável não é melhor que a vulgar das repúblicas... É que a diferença entre ambas não reside já na essência mas no tempo. Diferenciam-se apenas enquanto fase, não enquanto processo. Querer regressar à monarquia deteriorada porque esta representa uma fase menos putrefacta do processo, mais que uma impossibilidade conjuntural (essa, contudo, ainda se resolveria), é duma desmioleira tremenda: é voltar de Cila para Caribdis e sentar-se lá à espera que Cila volte, fatalmente. Bem sei que o paradigma de Sísifo preside a esta Época do Absurdo, mas mesmo assim...
Na verdade, não nos compete restaurar monarquias, como não nos está autorizado arreá-las. É poder que não temos. Chamamos revoluções a meras bebedeiras colectivas, mai-las auto-flagelações, vomitórios e folclores decorrentes. O que temos é que restaurar a coluna vertebral, readquirir a postura vertical, a lucidez e a bipedia. Feito isso, a monarquia é o prémio natural, o resultado subsequente. Vem por simpatia. Ou seja, não é a monarquia que temos que restaurar, somos nós próprios. Os reis sempre foram o corolário natural de haver homens, mas jamais foram necessidade ou recompensa de escravos.
Por outro lado, o trono reflecte a cruz. Na monarquia, a de Cristo-rex; na pseudo-monarquia, do naufrágio assistido, a do papelinho anónimo para glória do papelão constituinte. É por isso que na primeira se simboliza o triunfo sobre a urna sepulcral, como na segunda se atesta o triunfo da urna eleitoral. A exacta diferença que medeia entre a vida e a morte lenta dum povo.
Resumindo e concluindo, ou há rei a sério ou sou anarquista. Ora, se há algo que não sou é anarquista. Logo, o rei está lá, onde sempre esteve e há-de estar. Não está sequer ausente: está encoberto. Pelo fumo, pelo ruído e pela névoa suja duma multidão de escravos, de pusilânimes, de sabujos do instante a ferver e, sim, de traidores. Traidores do seu rei, ou seja, das suas raízes, da sua terra, dos seus deuses, antepassados e nobres costumes. Traidores à sua própria natureza. Raquíticos mentais. Escaganifobéticos!