quinta-feira, janeiro 17, 2008

Safaris filantropicais




Ontem, à hora do almoço, reparei no caixote televisivo: um padre anunciava a sua expedição caritativa à Guiné e era festejado e aclamado em directo. Reuniu capitais, comprou com eles um jeep, atestou-o de bens essenciais (presumo) e preparava-se (e prepara-se) para um Lisboa-Dakar-Bissau. O país, embevecido, bebe-lhe o exemplo e inveja-lhe a peregrinação. Ah, que santo homem!...
Isto, tenho que confessá-lo, animou-me também a mim. Fiquei, quase direi, radiante. Não tanto pela proeza do cura em rali - o mais certo é nem chegar à Guiné nem aos pobrezinhos da dita: uns quaisquer bandidos do deserto Mauritano, imensamente carenciados, ficam-lhe com tudo, o jeep, o recheio, o passaporte e o que mais Alá lhes aprouver, poupando-lhe até a maçada final da barafunda distribuideira à pretalhada -, mas por um motivo bem mais comesinho: isto, um raid beneficiente deste jaez, só pode significar que os pobres, indigentes e miseráveis, de todas as idades e marcas, que diariamente trepam nos sensos deste país não existem. Melhor dizendo, à medida em que ascendem nas estatísticas, desaparecem da realidade. É o chamado efeito aspirador do INE. Só assim são compreensíveis estes actos desesperados dos beneméritos compulsivos ou profissionais, como este cura motorizado, ou aqueloutros que a televisão, numa noite destas, também exibia gastando as férias num animado safari de pinta-paredes no Senegal profundo. Sem pobres e miseráveis neste país, por via da voraz haurição estatística, estas santas pessoas têm que partir para África, para o Malabar, para a Coxichina, em busca, não já de especiarias, mas de coitadinhos aflitos a quem distribuir esmolas e bafos de ternura.
Sobretudo, é mais um sinal claro do progresso formidável que a todos nos deslumbra: antigamente, iam para África dar tiros nos animais : eram safaris de caça. Depois, passaram a fotografá-los: eram foto-safaris. Agora, já vão na fase de ir dar de comer, vestir, falar e rir aos indígenas: são os safaris filantrópicos. Filantropicais, melhor dizendo.
Evoluiram muito desde que Cristo recomendou que amassem o próximo. Agora, evasores militantes, já vão na fase de amarem sobretudo o longínquo. Quanto mais afastado e exótico, melhor. São tele-amantes, turistas peregrinos . A miséria e respectiva urgência são proporcionais à distância.
A caridade é o pretexto. O essencial é a viagem.

12 comentários:

  1. mas era disto que eu estava a falar, quando contei que o que o Papa disse nãofoi entendido pelo Tim.

    Eu fiz Portugal inteirinho (continental e ilhas) em caçadas a gárgulas. Praticamente não houve igjrejinha medieval que me escapou.

    E sei como a religião é importante para o pouco povo que ainda existe.
    E também percebi onde ela estava (porque os padres estavam lá e ainda diziam missa e serviam aquelas comunidades) e vi onde já não estavam, porque andavam a banhos ou a cuidar dos negócios.

    E quem chegava a dizer missa era o sacristão. E quem tinh as chaves eram as mulheres velhas da terra, para dizerem as novenas, pela Páscoa, por exemplo.

    E também vi cada vez mais igrejas fechadas porque não havia padre para todas. E vi pior; missas a despachar (como me diziam as mulherres quando eu perguntava quando é que poderia entrar para fotografar) ou fechadas durante mais de uma semana porque o senhor padre e mais uns amigos tinham ido em viagem (à Terra Santa, por exemplo, no Verão, era muito comum).

    Não vou bater mais porque sei que, apesar disto, o vazio ou o "plesidente" da câmara e séquito de partidos e negociatas corruptas, são calamidade mil vezes maior. E esta é que devia ser travada.

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  2. Mas posso garantir que houve localidades onde o padre nunca apareceu. E isto indo lá em 3 anos, em épocas diferentes. Mas via a bruta moradia onde ele morava com a irmã. Nunca apareceu, nem dizia missa. Era mesmo tudo feito pelo sacristão. Que também lá encaminhava os seus negócios, mas que, ainda assim, dava apoio àquele povo que teimava em querer ir à igreja.

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  3. É claro que nada disto se passou na Madeira ou nos Açores. Aí ainda não se troca a igreja pelo centro comercial laico.

    E por isso é que depois estes neoliberais de esquerda se enxofram muito por não serem respeitados referendos abortistas votados por meia dúzia de mecos. E tornados obrigatórios pela tal uniformnização totalitária deste novo conceito de tolerância e liberdade.

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  4. "Amar, sobretudo, o longínquo". LOL

    Nem sei como dizer a coisa sem parecer um laudatório militante. Mais vale ficar calado.

    :D

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  5. «E quem chegava a dizer missa era o sacristão.»

    Como é que "isso" é possível, ó Zazie???
    Só se o sacristão fosse diácono. E se o fosse não "dizia" a missa como diz o padre!

    Também não gramo os padres, mas também não é assim!...

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  6. Religião?!
    Aí está algo que me é completamente indiferente.

    (assim como a Democracia, por exemplo)
    :-)

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  9. estava demasiado anormal de erros e gralhas que tive de apagar.
    .....
    Larguei um comentário de outro computador mas não deve ter entrado.

    Não interessa muito entrar em detalhes, porque nem quero comprometer ninguém mas é verdade. Como disse, fiz Portugal inteirinho de mochila às costas e em transporte público e sei como é. Mas, é verdade, que a par desses casos e pior, do turismo de luxo à Terra Santa, um hábito que começa a espalhar-se até pelos curas de berças, há os que ainda por lá ficam e dão sentido às comunidades.

    Porque, o contrário disto é que é mil vezes pior. É a tal socieade laica. Onde os padres até precisam de ter a igreja trancada por causa dos roubos ou dos drogados que largam seringas no terreiro (vão a Vila Real e vejam como é, por exemplo). Porque, já não cabe ao padre a moralização da socieade. Se há ciganagem que aparece onde nunca tinha existido, é xenofobia não a querer lá. E, se a ciganagem até introduz a droga, já não é ao padre que deve competir ensinar que não se devem drogar.

    Não, agora tudo isso se tornou uma fatalidade muito lucrativa: se há drogados à esquema de negócio para todos. Incluindo para os "astrónomos" dos observatórios que se dedicam a estudar o comportamentos dos drogados, mais os psicos que se dedicam a estudar como aquilo tudo funciona, e uma série de melros por conta, que também ainda contam lucrar em partilha de poder, se prometerem salas de xuto para os mesmos drogados.

    É mais ou menos esta a historieta da felicidade da tolerância laica e da boa da abertura à decadência dos costumes.
    ...........
    Quanto a viagens há melros mais giros que os católicos. São os evangélicos das seitas. As tais seitas que às vezes até parece que teriam sido a maravilha terrena se nunca tivesse existido Papa e Vaticano.

    Deixo aqui um exemplo, colhido do Trento na Língua, com um comentário de um Samuel. È de chorar a rir:

    Desassossego

    Na edição deste mês das Novas de Alegria, uma boa revista evangélica, a nota biográfica de um missionário pentecostal sueco falecido no final do ano passado:
    “O jovem casal Ebba e Eric viviam numa pequena e sossegada vila no centro da Suécia. O Eric era um empresário bem sucedido, sempre presente na diferentes actividades da igreja local, mas em 1951 ouviu uma voz dentro dele dizendo LISBOA, sem saber o seu significado (em sueco é diferente). No mesmo dia, por coincidência(!), ele encontrou um dicionário onde descobriu que Lisboa significava, em português, a capital de Portugal. Contou o sucedido à sua esposa e, por estranho que pareça, ela também tinha ouvido a mesma voz. Ambos sentiram que era em Portugal que Deus os queria, e sabiam que era importante serem obedientes à voz de Deus!”
    A relação pessoal com Deus traz sempre o risco do desassossego. Podem ser vozes ao ouvido, ou dentro da cabeça. Ou silêncios soberanos. Ou cutucadas estratégicas, nos encontros e desencontros da vida.


     At 3:58 PM, samuel said…
    O meu tio Hopólito foi director dessa revista durante "eras"...
    Pessoalmente, morei na... deixa lá ver... Malveira, Évora, Viseu, Muge, Viseu (de novo), Viana do Castelo, Águeda, Tomar e Setúbal, por causa dessa "voz" que tinha esse hábito de "dizer nomes de terras", também ao meu pai.
    Ainda hoje, embora há tanto tempo por minha conta, acho uma verdadeira proeza, viver mais que dois anos numa mesma casa ou localidade...

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  10. Mas este post do Dragão está uma loucura

    ahahahha
    Delicioso.

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  11. Para o Anónimo:

    Como é que "isso" é possível, ó Zazie???
    Só se o sacristão fosse diácono. E se o fosse não "dizia" a missa como diz o padre!

    Também não gramo os padres, mas também não é assim!...


    Eu gramo-os. E ainda curto mais os fradinhos. Não sou, nem nunca fui, anti-clerical. Mas isto é verdade.
    Não é assim em todo o lado, mas é assim em muito. As razões podem ser diversas. As mais prosaicas: o desaparecimento do povo e esvaziamento do interior. Outra: o facto de cada vez existirem menos pessoas capazes de largarem a vida mundana e serem padres ou freiras.

    E a outra, bem real também, o gostinho pelo aproveitar da situação e das brutas benesses e facilidades turísticas que têm à disposição.

    Certo é que, por exemplo, em Estombar, essas excursões não são acessíveis à bolsa dos populares. Quem vai é o padre, que deixa a porta trancada e a chave a umas mulheres da terra e mais uns amigos. Geralmente malta bem laica mas muito dada a peregrinações à Terra Santa...

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  12. A história do sacristão que também diz missa também é verdade. E até foram as pessoas da terra que me contaram, pelo facto de eu nunca ter conseguido encontrá-lo. Porque há outra igreja mais longe, mas ele ainda tem aquela por sua conta e depois também tem mais que fazer.

    Mas esses são os locais onde as próprias comunidades já foram cortadas pelas estradas que as rasgam ao meio e por toda uma mudança de velho centro da terra para fora dele, para a catedral do comércio e mais as sedes partidárias que, entretanto, foram abrindo no "espaço moderno".

    Exemplos onde quem vive ainda na parte velha tem de arriscar a vida para atravessar a auto-estrada onde nem uma passadeira existe, quanto mais semáforos. E só lá vai uma camioneta da carreira de tempos a tempos. De resto, tudo tem carro e a vida comunitária está destinada "naturalmente" a morrer.

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