quarta-feira, novembro 30, 2005

A Missão

Havia uma tribo de canibais irredutíveis, imunes a toda e qualquer tentativa de civilização, que reinavam, tenebrosos e vorazes, lá nos esconsos da selva.
Um dia um jovem presbítero, ao saber desses lendários seres, sentiu-se inundado de ardores missionários e, avassalado por irresistível ímpeto, arrombou matas afora, decidido a resgatar às trevas hediondas tão pobres e tresmalhadas almas.
Andarilhou esgazeado noites e dias, palmilhou pauis e montanhas, escapou miraculosamente a mil perigos e paludismos. Gastou anos, mas, com uma certeza, perseverança e azimute que só a mão imperscrutável de Deus pode explicar, lá deu, numa bela manhã, com a aldeia dos ferozes devoradores de carne humana.
Antes de iniciar tão épica aventura, garantira aos seus superiores que, com a graça de Deus, havia de convertê-los à Verdadeira Fé e ao vegetarianismo. Pois era isso mesmo que, uma vez ali chegado, ia encetar. Com todas as suas forças e sem trégua nem descanso.
Os canibais eram gente curiosa, bem nutrida, descontraída e luzidia. Tinham a despensa abastecida duma depredação recente pelas redondezas e, entre piqueniques e folguedos,, condescenderam em escutá-lo. Como não lhe entendiam a língua, faziam por tresler na mímica.
Ele, com a paciência própria dos justos, perorou-lhes durante trinta dias ininterruptos. De manhã, tentando industriá-los com as luzes do alfabeto e do evangelho; à tarde, procurando adestrá-los nos prazeres e virtudes do herbívorismo. Começou até por plantar umas alfaces e uns tomateiros, em canteiros geométricos, os quais, por via do clima húmido e quente da região, não tardaram a resplandecer de viço e verdura. Estavam mesmo um mimo de se ver, um bálsamo para a vista. Ante tal maravilha, o extravagante missionário exultou. Em triunfo, coadjuvado do sal e vinagre que trouxera consigo, dispôs-se a confeccionar um prato que, tal qual o evangelho em relação à alma, havia de redimir-lhes duma vez por todas o estômago.
Os canibais, enquanto lhes durara a despensa, haviam estado sossegados. Ao longo dos dias, ou mesmo à noite, de roda da fogueira, haviam-no observado e escutado com uma certa displicência. Mais até as mulheres, palradoras e coscuvilheiras por natureza, porque os homens, como é hábito, preferiam invariavelmente a sorna, e as crianças, como de costume, ensaiavam brincadeiras com a comida. Mas à medida que esta se sumia, todos eles começaram a manifestar um crescente nervosismo. O homem de Deus vira-os até murmurar claramente a seu respeito e congratulara-se: aquilo decerto significava que, por via da porfiada catequese, começavam a questionar-se, a macerar na crosta selvaginosa. Nem duvidava: Era a semente da Palavra, tal qual a das alfaces, a germinar e a formar repolhuda planta.
E, com efeito, esgotados os trinta dias e esgotadas as vitualhas da última safra, também os homens e as crianças, de olhar iluminado por um súbito e generalizado interesse, convergiram em redor do apóstolo. Foi, pois, com grande júbilo, ufano de tal congregação, que este preparou as alfaces e os tomates, temperou como convém e, por fim, com desculpável enlevo de “chef”, proclamou, numa mescla de alfabeto e mímica indubitável: “Vinde, provai! Comei e vede se não é uma delícia!...”
Os antropófagos entenderam-no na perfeição, o gesto sobretudo, e avançaram ao repasto, cheios de apetite. Expedições posteriores confirmaram-no: É duvidoso que, nesse bendito dia, tenham descoberto a Verdadeira Fé; mas, em contrapartida, descobriram a salada. Foi, pelo menos, acompanhado dela que o comeram.
E cagaram, acho eu.

6 comentários:

  1. donde, se mais nenhuma verdade possa revelar, o poder do verbo sempre chega para descobrirmos que falamos em prosa

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  2. A Meditar....

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  3. faz todo o sentido

    simplesmente brilhante

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  4. sobretudo

    "É duvidoso que, nesse bendito dia, tenham descoberto a Verdadeira Fé"

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  5. ó carissíma "ovelha tresmalhada",

    a moral da história tem necessáriamente de ser outra, sob pena não conseguirmos distinguir um homem honesto e bom, de vulgares filhos da puta. Ou seja:

    O jovem presbítero era um ser humano leal; confiável; amigo; corajoso; e,
    sobretudo,
    me pareçe, nada ingénuo se considerarmos que a moral da história estará contida, no pensamento, sempre presente por tradição, na mente propositada e convictamente simples do puro ferrabraz português quando enfrenta um inimigo, na aparência, fisicamente mais forte, e que é, como todos sabem: "..., e se me comer tem de me cagar!

    viva o jovem presbítero!

    Ass: Renegado.

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  6. Nem azul e branco, muito menos verde e encarnado. Não duvido do entendimento de cada qual, sou presbítero, sempre cagarei o "CANIBAL".

    Em dia de reconciliação nacional,
    Viva Portugal!

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