quinta-feira, março 02, 2023

Do assassínio como uma fútil arte

A propósito duma notícia onde se lia: "homicídio por motivos fúteis". Aqui deixo alguns casos emblemáticos, 29 mais concretamente, com uma dedicatória, sempre devota e sincera, a Max Aub.


1. Matei-o porque...enfim, já nem me lembra porquê. Têm a certeza de que o matei? Morreu, foi?...Quem, a propósito?...

2. Matei-o porque sim. Foi um acto simbólico. Acreditei que o imenso tédio que me aborrecia podia morrer com ele. A fé enganou-me. O aborrecimento só piorou. Agora até me querem encarcerar por uma série de anos. 

3. Matei-o porque nunca tinha matado ninguém. Foi o primeiro que apareceu. Um homem não deve morrer ignorante de certas sensações fundadoras da civilização. Matei dois coelhos duma cajadada (foi com um cajado, sim, era o que tinha à mão): o homicídio e o surrealismo.

4. Matei-o porque estava a chover: achei que se travasse podia causar um acidente. Toda a cautela é pouca. Acelerei para não perder a aderência.

5. Matei-o para ver se ele sabia voar. Nem planar, quanto mais voar! Um perfeito calhau!

6. Matei-o discretamente. Não tão discretamente quanto gostaria, devo reconhecê-lo.

7. Matei-o às três pancadas. Podem dizer que sou um rústico, mas morreu na mesma.

8. Matei-o porque Deus não existe. E quanto ao livre-arbítrio, estou-me nas tintas. A verdade, é que não existindo Deus, tanto faz. Matar ou não matar, vai dar ao mesmo. Metem-me na prisão? E depois? Numa penitenciária já eu vivo e ainda tenho que me esfalfar todo para pagar a renda, a côdea, os impostos, as taxas, as pensões e o diabo a sete. Assim dão-me alojamento à borla, comida grátis, assistência médica, tv cabo, jogos de salão, videojogos e nada de contribuições nem impostos. Vão-me ao cu? No pior dos casos; mas comparado com espicaçarem-me e assarem-me pela eternidade, vou queixar-me de quê?...

9. Matei-o porque, enfim, é preciso motivo, é?... Andam a ver muitos filmes!...

10. Matei-o porque não o conhecia de lado nenhum. No fundo, eu não queria matá-lo, queria apenas não correr riscos. O risco de conhecê-lo, sobretudo.

11. Matei-o porque a frustração me transportou. Quem nunca viajou sem bilhete nem passe que atire a primeira pedra!...

12. Matei-o porque estava a pedi-las. Ele? Não, eu. Estava a pedir-lhe as sapatilhas Nike, cheio de pressa, e ele nunca mais se despachava a descalçá-las. Despachei-o eu.

13. Matei-o porque não tenho preconceitos. Nenhuns.

14. Matei-o porque a ele fugiu-lhe a boca para a verdade, a mim fugiu-me a enxada. Ficámos quites. E a verdade é que eu estou vivo e ele está morto.

15. Matei-o sem querer. Foi um acidente. Mas não me arrependo. Se não carrego a culpa, como poderia carregar o arrependimento? Demais, em tempo de paz, é importante manter as armas limpas.  Ter-lhe também limpo o sebo a ele, foi um excesso de higiene? Ou um requinte. Depende da perspectiva.

16. Matei-o porque, com franqueza, estava no local errado à hora errada. Ainda por cima a perguntar-me as horas... Tanto disparate junto clamava o devido correctivo. Acertasse nem que fosse em metade da equação, aquele banana, e a esta hora eu não teria acertado nele. 

17. Matei-o, é um facto. Neste universo. Mas num universo paralelo pode estar ainda vivo. Agora que penso nisso não sei se não devia tê-lo matado melhor.

18. Matei-o porque a televisão não se calava. Nem ele. Calei-os aos dois. Sou, como já devem ter reparado, de poucas falas.

19. Matei-o porque não conseguia dormir. Pu-lo no eterno descanso. Que querem, sou um mãos largas!... Quando é para dar, dou logo tudo.

20. Matei-o às prestações. Mas não cobrei juros. Sou um assassino? Do mal o menos: não sou judeu!

21. Matei-o porque era Sábado. Pôs-se a buzinar atrás de mim, no semáforo....e a zurrar, "então, ó panhonha, nunca mais é sábado?!" ... 

22. Matei-o porque não havia maneira de largar o multibanco. Pagar facturas, é uma coisa: masturbação de cartões é outra. Particularmente nojenta e obscena de se assistir, convenha-se. Aposto que também era pedófilo!...

23. Matei-o porque não resisti à tentação. Há plataformas vertiginosas e comboios do diabo! Querem apresentar-me a um juiz? Faria mais sentido apresentarem-me a um exorcista!...

24. Matei-o porque não sei, legalmente, em que consiste homicídio voluntário do Primeiro Grau. Se me tivessem explicado devidamente a teoria, decerto ter-nos-íamos todos poupado a esta sujidade empírica.

25. Matei-o porque gosto de segredos. E não tinha nenhum de jeito. Raios, acho que já falei demais!...

26. Matei-o porque disse mal de mim. O quê, exactamente? E isso importa?... Sei lá! Nem me interessa. Abriu demais a boca e eu fechei-lha. Remédio santo.

27. Matei-o porque estava muito calado a meditar. Coisa boa não era. Provavelmente, até devo ter evitado algum atentado terrorista ou catástrofe ambiental, não me admirava nada!... Os calados são os piores!

28. Matei-o para ensaiar.  Irromperem com críticas e julgamentos sem me darem sequer oportunidade de estrear a peça, parece-me duma alarvidade e incultura atrozes. Parece-me, não: tenho a certeza!

29. Matei-o para não perder a ocasião. Era preciso estar catatónico para não aproveitar um bocejo daqueles! 


4 comentários:

  1. "Matei-o porque estava a pedi-las. Ele? Não, eu. Estava a pedir-lhe as sapatilhas Nike, cheio de pressa, e ele nunca mais se despachava a descalçá-las. Despachei-o eu."

    ó pá -:)

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  2. " (...) Um homem não deve morrer ignorante de certas sensações fundadoras da civilização. (...)"
    :))

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  3. Max Aub , não conhecia . Anotado. Reservado já fica o lugar na estante dos latino americanos , grato Ao Dragão por o apresentar

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  4. Note, eu refiro o Aub, por deferência ao estilo dos "crimes exemplares". Mas destes publicados o autor sou eu. Quer dizer, é a musa; eu fui só o porta-voz. :O)

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