Quase seria capaz de apostar dobrado contra singelo que os leitores não adivinham quem foi o autor do texto que a seguir se transcreve. Falarei dele num postal próximo da Acromiomancia Ultramarina. Mas para já fica, com meridiana clareza, um paralelismo estarrecedor entre o Portugal nele descrito e o Portugal actual.
Acorre-nos à mente aquele célebre aforismo do "Leopardo": «é precsiso que tudo mude para que tudo fique na mesma».
Entretanto, caso se queiram deitar a adivinhar, façam favor. Mas tenho sérias dúvidas que acertem.
«A monarchia liberal, meu príncipe, morreu ao nascer. Foi muito festejada porque abriu as portas de algumas prisões e deslaçou o nó de algumas cordas de enforcado, além de que deu satisfação a alguns theoricos de má morte. Mais nada. Apenas entrou em funções, os portugueses voltaram-se contra ellla e declararam-lhe uma guerra que só terminou vinte anos depois. Pela victória? Nâo! Pela derrota. V.M. deve saber isto. A avó de V.M., a senhora D. Maria da Glória, só conseguiu obter a paz em Portugal, com o auxílio das armas estrangeiras.
Uma nação pacificada pela força das armas estrangeiras é uma nação morta. Não há a esperar d'ella senão os fructus da humilhação: o desanimo e o abatimento n'uns, o servilismo e a corrupção n'outros. Foi o que nos succedeu. Na occasião em que Portugal expirava viu-se de um lado Herculano chorando e do outro Rodrigo da Fonseca, rindo. O futuro é dos cynicos e por cynicos passou Portugal a ser governado até hoje. Cadaver abandonado é pertença de milhafres. Portugal foi esse cadaver abandonado. Os milhafres foram os seus governos.
Terminara o drama: começou a comedia: a comedia dos principios mortos, a comedia dos partidos que já não tinham razão de ser, a comedia das luctas simuladas, a comedia das paixões fingidas. Essa comedia se representou durante os dois reinados do senhor D.Luiz e do senhor D.Carlos. Falsificou-se um Estado - caso novo na história - e falsificou-se tudo o que lhe dizia respeito. Falsificou-se uma opinião que não havia, falsificou-se um parlamento de falsos representantes, falsificou-se um executivo que d'esta fraude recebia por sua vez mandato, falsificou-se uma imprensa e uma tribuna de governo e de oposição atribuindo-lhes anatgonismos que não tinham, falsificou-se a justiça com uma magistratura de compadres, falsificou-se a contabilidade pública, falsificaram-se orçamentos, falsificou-se a moeda.
Tudo foi simulado, tudo foi fingido. Uma só coisa era real - a ruina.
Mas os povos não teem o direito de se arruinarem, sobretudo à custa dos outros. A ruina trouxe a bancarrota. Quando o senhor D.Carlos subiu ao throno, o paiz fallia, chamava credores, entregava o rendimento das alfandegas, como mais tarde havia de entregar os dos caminhos de ferro, os dos tabacos, os dos phosphoros, até chegar aos derradeiros expedientes em que hoje se debate fazendo dinheiro pelos processos melodramaticos dos Trinta annos, ou a vida de um jogador.
Esta obra, entretanto, não produzia os seus effeitos sobre um organismo extincto. O povo, é sempre o mesmo e é sempre outro. Constantemente se renova. Constantemente renasce. O Portugal da senhora D.Maria da Gloria morreu; morreu com Herculano, com os Passos, com José Estevam e os Ribeira de Sabrosa, mas outro nasceu, filho d'esse, que, herdando as suas decepções, começo por fazer d'ellas o scepticismo bonacheirão que deu o Zé Povinho e acabou por os levarao estado congestivo de revolta que deu o Buiça. Do Zé Povinho ao Buiça que longa estrada! O Zé Povinho era o chamado - povo indifferente, povo aphatico, povo morto. Na realidade era o - Desprezo. Eram as urnas desertas, eram os cidadãsos de mãos nos bolsos, encolhendo os ombros e dizendo que "tão bons eram uns como os outros". Na realidade, era a nação recusando-se a collaborar na comedia. A ficção não era já uma ficção: era um escandalo cada vez mais clamoroso. A falsificação fazia-se a escancaras. Porque não? Porventura alguem a impedia? O povo ria. Dividia-se o paiz como os piratas dividem o producto de um saque - bulhando. os politicos tratavam-se reciprocamente de ladrões. O avô de V.M., o senhor D.Luiz, era acusado de cubrir com o seu manto, acusação injusta porque o manto era pequeno e os ladrões eram muitos. Nada se salvava, nem as apparencias, e para quê? O povo ria, ria com as mãos nas ilhargas. Os politicos gabavamn'o: Bom povo! Não ha melhor povo! E, com effeito, não havia. O povo não sabia o que era protestar e dava tudo o que lhe pediam: contribuições, soldados, victimas da Assistencia Nacional aos Tuberculosos, Albarda, real senhor! Clamavam os pamphletarios. O povo deixava-se albardar. era um jumento bom.»
É preciso nunca esquecer que as "ideias" constituem um dos mais venenosos tipos de "arma". É sempre útil ter isto em mente, especialmente ao (re)ler trechos sumamente verdadeiros como este, em epígrafe:
«Uma nação pacificada pela força das armas estrangeiras é uma nação morta. Não há a esperar d'ella senão os fructus da humilhação: o desanimo e o abatimento n'uns, o servilismo e a corrupção n'outros.»
O Dragão anda um pouco desmemoriado e com pouca confiança nos leitores; pois que a resposta está nos arquivos. Felizmente para a bolsa mitológica, não sou dado a apostas.
ResponderEliminarQuanto ao mais importante, a substância do postal, pouco há que acrescentar. É o que somos e o que seremos sempre.
Zé Kalanga
Pois tem razão no "desmemoriado". Embora não me tenha esquecido que existe em arquivo. Só não me lembro se será o mesmo texto...
ResponderEliminarSeguramente é do mesmo artigo, isso é certo.
Fui confirmar...
ResponderEliminarFaz favor de dizer quanto lhe devo. Cumpre-me pagar.
:O)
Relacionado com o tema, há um assunto que há muito gostaria de ver dissecado pelo grande Draco: o ano 1834.
ResponderEliminarFica o pedido de um admirador.
Miguel D
também chaguei lá , chaguei :) e isso depois de fritar uma pescadinha de rabo na boca :)
ResponderEliminarCaro Miguel,
ResponderEliminarO Devorismo permanece desde 1834 até aos dias de hoje, com um intervalo excepcional entre 1926 e 1974. (Não obstante, mesmo nesse período excepcional, os devoristas não desapareceram, mantiveram-se apenas mordendo o freio, resfolgando, e em estado latente, à espera de melhores dias, ou, no caso, para todos nós, piores.)
E é extremamente curioso que toda a gingajoga devorista (entre desgoverno central e desgoverno autárquico, onde nestes últimos 40 anos têm mamado e refocilado os aparelhos partidários) tenha sido estruturalmente concebida e instalada a partir de 1834.
A estimada e adorada marina escusa de estar a tentar disfarçar-se de leitora, pois sabe bem que pertence a uma classe acima: a das musas.
ResponderEliminarPosso estar cada vez mais desmemoriado, mas disso não me esqueço.
:O)
É uma tarefa penosa a cobrança de dívidas. Contudo, uma visita guiada, lúdica e didáctica à galeria de Svetlanas do Engenheiro-Arquitecto Ildefonso, parece-me o ajuste adequado às contas =)
ResponderEliminarZé Kalanga
Ainda antes de 1834 tudo começou com o Marquês de Pombal.
ResponderEliminarE claro o ano de 1789.
ResponderEliminar):
«[P]ara além da eliminação brutal e às abertas da liberdade e da decência, há também - tão cristalinamente antevista por Tocqueville - a evolução democrática em relação à escravidão não violenta devida a um modo de pensar e de perspectiva basicamente como o que conduz às formas mais óbvias de tirania. Não devemos ficar surpreendidos com isto porque as raízes do mal são histórica e geneticamente as mesmas em todo o mundo ocidental. O ano fatal é 1789, e o símbolo da iniquidade é o barrete jacobino. A sua heresia é a negação da personalidade e da liberdade pessoal. As suas realizações concretas são a democracia jacobina de massas, todas as formas de colectivismo nacional e de estatismo, o marxismo a gerar o socialismo e o comunismo, o fascismo e o nacional-socialismo, o esquerdismo em todos os seus modernos disfarces e manifestações aos quais na América o bom termo "liberalismo", perversamente, está a ser aplicado. A questão é entre o homem criado à imagem de Deus e a térmita disfarçada de ser humano. É em defesa do homem e em oposição aos falsos ensinamentos que pretendem reduzir o homem à condição de um insecto que este livro foi escrito.»
EF
«Se a força do regime popular na paz está na virtude, a força do governo popular na revolução está, ao mesmo tempo, na virtude e no terror: a virtude sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é do que a justiça pronta, severa, inflexível; por conseguinte, emana da virtude, é menos um princípio particular do que uma consequência do princípio geral da democracia aplicado às necessidades mais prementes do país.» ~ Maximilien Robespierre
ResponderEliminarEF
O comentário das 2:11 é um Excerto da Introdução de "Esquerdismo" de Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn (1974).
ResponderEliminarDragao, nunca mais vi posts seus sobre as eleicoes americanas e especialmente do Donald Trump?
ResponderEliminarNo caso de querer inspiracao, sempre bem vindo ao meu site - http://portugal4trump.blogspot.com/
Sobre o Trump é simples: espero que ganhe à bruxa. E depois estou à espera para ver o que realmente faz. Ou se o deixam fazer...
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