É muito curiosa a administração da morte pelo "estado"/ seus predecessores ou equivalentes ao longo da História. Chamemos-lhe, a este ministério da Morte, a Tanatopédia.
Pois bem, assim como para a cronologia histórica em geral se toma em consideração a figura de Jesus Cristo, na Tanatopédia, há também um antes e um depois... da Revolução Francesa.
Vamos ao antes. A execução da pena de morte varia nos seus trâmites e requintes consoante a geografia, mas também conforme a gravidade dos crimes e a própria posição social do condenado. Um nobre não é executado da mesma maneira que um plebeu: aquele é decapitado à espada; este, a machado ou passado pela forca. Por outro lado, um simples homicida não recebe a mesma morte que o cúmulo da classe - o regicida. Se aquele é sumariamente executado, este padece um suplício prévio de estarrecer o mais indómito espectador. Por conseguinte, não há suavizações patibulares. Pelo contrário, há uma gradação de suplícios consoante o grau de horrores perpetrado pelo criminoso. Num rigoroso sentido, o patíbulo é já a antecâmara do inferno. E tem duas funções primordiais, tanto quanto o castigo merecido, a dissuasão e a pedagogia para o futuro. Por muito que os estômagos delicados dos ensaistas do século XX efabulem meras repressões, a verdade é que, bem mais que repressiva, a função dos pavorosos espectáculos no cadafalso tem um carácter dissuasor. Aliás, só assim se compreende como as sociedades europeias viveram durante séculos sem , pasme-se, polícia. Não houve polícia na antiguidade, não houve polícia na idade média e não houve polícia em larga fatia da idade moderna. Em rigor, o primeiro corpo de polícia aparece já em pleno absolutismo francês; e em Portugal, também durante o absolutismo, pela mão dum iluminista: o Marquês de Pombal. É, aliás, natural e lógico que depois transite, o expediente, para o absolutismo do estado. Experimentem agora tirar a polícia (as várias centenas de esbirraria especializada, e sempre a crescer e a sovietizar o mundo) dos Estados Unidos ou da Europa, só para referir o Nec plus ultra da civilização e da virtude, digo, da democracia. Conclusão: antes da Revolução Francesa o aparato repressivo era mínimo e a dissuasão máxima.
Depois da Revolução, gradualmente, o aparato repressivo foi crescendo e a dissuasão diminuindo. Atingindo, destarte, o paradoxo actual: nunca se gabou tanto a liberdade, e nunca a repressão (policiamento, legislação, controlo, proibição, vigilância, etc) foi tão omnipresente e desorbitada. Adentra-se já a passos largos e frenéticos, sob a supervisão de brigadas de psicovigilantes, à auto-censura selectiva e stardartizada.
A revolução teve ainda outro efeito fundamental: a igualitarização tanatopédica: todos passavam a ser mortos da mesma maneira, não já directamente pelo representante da coroa - o executor-, mas por uma máquina - a guilhotina. Nesta democratização da morte, assiste-se assim, tanto a uma banalização desta, quanto a uma industrialização da mesma. É a primeira linha de produção em série da História, antes ainda das mercadorias e dos pinchavelhos: cabeças cortadas. O patíbulo cede lugar a uma espécie de matadouro municipal: a maior partre dos clientes da degola nem são contra-revolucionários assumidos, mas desgraçados que, por alguma bagatela, compareçam diante do Tribunal revolucionário. Lendo-se as memórias de Samson, o carrasco da monarquia que depois transita para a revolução (constitui, aliás, o único alto funcionário que transita do antigo regime para o regime lavado: vê-se apenas despromovido de "alto executor" a "servente da máquina"), é de estarrecer a vulgarização da pena de morte. Vai tudo a esmo. Um tipo qualquer embebedou-se e manifestou algum reparo menos beato à nova religião? Cabeça fora! Um sapateiro foi apanhado com notas falsas? Cabeça fora. De facto, não são só os nobres (a maior parte, por habilidosa sugestão de Mirabeau, expatriou-se) ou os clérigos fiéis ao passado que alimentam o engenho benemérito: a esmagadora maioria da clientela são cidadãos avulsos, por delitos que, na maior parte dos casos, raiam o ridículo. Tudo isto, não obstante, decorre no melhor dos mundos (na hora do carnaval prático, Voltaire mascara-se de Leibnitz): a máquina foi concebida para ministrar não apenas uma morte igual, mas, sobretudo, segundo os preceitos iluministas, uma morte com o menor sofrimento possível, ou seja, uma boa morte, enfim, uma "eutanásia". Fisicamente, bem entendido. Argumenta-se em realce e prova do avanço humanitário (não estou a ser irónico) a liquidação instantânea do freguês. Claro que o suplício prévio é agora de ordem psicológica; e a tortura, embora acelerada, é meramente judicial: se antes o povo assistia em silêncio, não raras vezes com velada compunção e piedade, agora vocifera e injuria, faz tricot e chacota (e anuncia as caixas de comentário do futuro); se antes o processo legal procurava cumprir todos os preceitos judiciais, agora marcha a toque de caixa em despacho sumário: a investigação apenas antepara e anuncia a sentença; a comparência é não apenas bastante, como inequívoca prova da culpa. "Como, vem sob escolta? - é um tratante, um faccínora comprovado e culpado à priori!" Basicamente, o Tribunal, por atacado e empreitada purificadora, despacha e abastece a nova "indústria". De local de pedagogia, o patíbulo converte-se em simples local de espectáculo. Não por acaso, entre os deputados à nova assembleia legisladora e instauradora do novo mundo admirável, a grande maioria provém das profissões tidas por imundas nos tempos medievais: advogados e palhadinos do direito são às mancheias.
Toda esta terraplenagem patenteia o abandono da qualificação criminal e a respectiva hierarquia de penas (como, acima e antes disso, destrói a qualificação moral e a hierarquia social), em prol da mera quantificação perante a lei. Tudo se submete doravante à lei, numa espécie de tábua rasa que alastrou da alma/mente empirofictícia ao próprio tecido do mundo, sendo que aquela, a lei, se encontra em permanente e fervilhante processo engendrativo, por obra e graça dos seus sacerdotes-demiurgos. Quer dizer, nunca está (nem estará nunca) acabada nem concluída, mas em perpétua expansão. Ao contrário da regra que vem depor, varrer e usurpar, e estava fixada como princípio eterno da própria humanidade, a lei nunca está fixa, evolui, adapta-se e é alfaitada segundo o humor e o capricho de cada nova vaga mundifeciente. Dito dum modo mais sugestivo: o big-bang legal precedeu o a teoria do big-bang sideral: as leis científicas foram precedidas e pré-enformadas nas leis sociais. A ciência enquanto Nova-religião do estado também arfa prenha de uma pulsão criacionista - o seu Fiat lux chama-se Direito. A justiça na idade média e, ainda em grande medida, no Ancien Régime, fundava-se na regra natural e procurava ajustar-lhe a sociedade humana; a justiça revolucionária passa a decorrer da lei artificial (fruto duma sofística), remove Deus e submete o mundo a essa cama de Procusta em perpétua manobra e cirurgia plástica. Visa agora adoptar o humano ao artificial da conveniência hegemónica do instante a ferver (e de quem lá subministra).
O paroxismo é de tal ordem que, actualmente, na Europa, só para citar o espaço que mais nos interessa e afecta, o absurdo nem reside tanto naquela fórmula muleta da seita neo-liberalóide, segundo a qual se tentam resolver problemas atirando-lhes dinheiro para cima (isso, quando muito, apenas identificaria a seita rival, socialique). Não, o que é geral e comum a todas as seitas é, diante do problema, resolvê-lo da forma consagrada, compulsiva e sacrossanta desde o Princípio do Mundo (1789): atirando-lhe leis para cima. Porque é que existe corrupção? É simples: uma falha do enquadramento jurídico. Mesmo as falhas e atamancamentos por encomenda evidentes das leis, como é que se resolvem? despejando e encomendando outras leis no montículo. Já não é um palimpsesto universal: é uma lixeira. Um aterro de entulhos.
PS: O novo mundo pós-revolucionário, como lhe compete, é dualista (maniqueísta, leninista, etc, é toda uma linhagem de metamorfoses ao longo dos tempos...) - reflectindo a assembleia constituinte (dele, Mundo), divide-se, esencialmente, em dois hemiglobos: direita e esquerda.
Que a coisa, com o aprofundar da doença, patenteia cada vez mais, em regime de caquexia avançada, o manicómio global, não espanta. O problema maior é que (como confidenciou uma alta figura Estado Unidense da época a um ministro dos negócios estrangeiros português, a propósito da política americana de então e seguintes), os internados tomaram conta da administração do asilo.
Toda esta terraplenagem patenteia o abandono da qualificação criminal e a respectiva hierarquia de penas (como, acima e antes disso, destrói a qualificação moral e a hierarquia social), em prol da mera quantificação perante a lei. Tudo se submete doravante à lei, numa espécie de tábua rasa que alastrou da alma/mente empirofictícia ao próprio tecido do mundo, sendo que aquela, a lei, se encontra em permanente e fervilhante processo engendrativo, por obra e graça dos seus sacerdotes-demiurgos. Quer dizer, nunca está (nem estará nunca) acabada nem concluída, mas em perpétua expansão. Ao contrário da regra que vem depor, varrer e usurpar, e estava fixada como princípio eterno da própria humanidade, a lei nunca está fixa, evolui, adapta-se e é alfaitada segundo o humor e o capricho de cada nova vaga mundifeciente. Dito dum modo mais sugestivo: o big-bang legal precedeu o a teoria do big-bang sideral: as leis científicas foram precedidas e pré-enformadas nas leis sociais. A ciência enquanto Nova-religião do estado também arfa prenha de uma pulsão criacionista - o seu Fiat lux chama-se Direito. A justiça na idade média e, ainda em grande medida, no Ancien Régime, fundava-se na regra natural e procurava ajustar-lhe a sociedade humana; a justiça revolucionária passa a decorrer da lei artificial (fruto duma sofística), remove Deus e submete o mundo a essa cama de Procusta em perpétua manobra e cirurgia plástica. Visa agora adoptar o humano ao artificial da conveniência hegemónica do instante a ferver (e de quem lá subministra).
O paroxismo é de tal ordem que, actualmente, na Europa, só para citar o espaço que mais nos interessa e afecta, o absurdo nem reside tanto naquela fórmula muleta da seita neo-liberalóide, segundo a qual se tentam resolver problemas atirando-lhes dinheiro para cima (isso, quando muito, apenas identificaria a seita rival, socialique). Não, o que é geral e comum a todas as seitas é, diante do problema, resolvê-lo da forma consagrada, compulsiva e sacrossanta desde o Princípio do Mundo (1789): atirando-lhe leis para cima. Porque é que existe corrupção? É simples: uma falha do enquadramento jurídico. Mesmo as falhas e atamancamentos por encomenda evidentes das leis, como é que se resolvem? despejando e encomendando outras leis no montículo. Já não é um palimpsesto universal: é uma lixeira. Um aterro de entulhos.
PS: O novo mundo pós-revolucionário, como lhe compete, é dualista (maniqueísta, leninista, etc, é toda uma linhagem de metamorfoses ao longo dos tempos...) - reflectindo a assembleia constituinte (dele, Mundo), divide-se, esencialmente, em dois hemiglobos: direita e esquerda.
Que a coisa, com o aprofundar da doença, patenteia cada vez mais, em regime de caquexia avançada, o manicómio global, não espanta. O problema maior é que (como confidenciou uma alta figura Estado Unidense da época a um ministro dos negócios estrangeiros português, a propósito da política americana de então e seguintes), os internados tomaram conta da administração do asilo.
"os internados tomaram conta da administração do asilo"
ResponderEliminarSão os Napoleões de Hospício.
Que maravilha de post. Para guardar e reler.
ResponderEliminarMuito obrigado
Miguel D
"Depois da Revolução, gradualmente, o aparato repressivo foi crescendo e a dissuasão diminuindo. Atingindo, destarte, o paradoxo actual: nunca se gabou tanto a liberdade, e nunca a repressão (policiamento, legislação, controlo, proibição, vigilância, etc) foi tão omnipresente e desorbitada."
ResponderEliminar"Nesta democratização da morte, assiste-se assim, tanto a uma banalização desta, quanto a uma industrialização da mesma. É a primeira linha de produção em série da História, antes ainda das mercadorias e dos pinchavelhos: cabeças cortadas."
"A justiça na idade média e, ainda em grande medida, no Ancien Régime, fundava-se na regra natural e procurava ajustar-lhe a sociedade humana; a justiça revolucionária passa a decorrer da lei artificial (fruto duma sofística), remove Deus e submete o mundo a essa cama de Procusta em perpétua manobra e cirurgia plástica. "
Ninguém mais escreve assim em Portugal.
Miguel D
Muito, muito bem!
ResponderEliminarEste Dragão "flameja" ouro. :)
Não me lembro de ver o pseudo-bem, “justiça” e "emancipação" da alvorada das hordas mais conscientemente criminosas da história da europa tão bem caracterizado. (Sim porque antes eram bestas muito pela ignorância. Aqui ao invés é pela “razão”.)
Não é a perda de deus, mas antes a perda do sentido da finitude, consciência e limitação humanas, que transforma a lei e a sua aplicação numa bestialidade.
O problema de deus na sua aplicação práctica e corrente é que este serve de armadilha lançada por qualquer classe de intelectuais, iluSionistas :) e intrujões. Deus adquiriu tão má fama pelas "companhias" humanas que se dizem ser suas representantes (quase na sua totalidade por culpa das religiões abraâmicas) que provoca repulsa.
Mas o oposto em relação a deus também é verdade, como no caso corrente. Porque em geral, o açambarcamento que estas “religiões” fizeram sobre o espírito humano é de tal forma que retirar a crença em deus é quase o mesmo que desumanizar o indivíduo.
Porém, jamais o homem se existir como ser consciente e com racionalidade perderá o sentido espiritual da vida e do mistério da sua própria criação, o que implica uma humildade incompatível com certo tipo de atitudes.
A necessidade de mais leis demonstra apenas a miséria humana que existe. A falta de qualidade das gentes existentes, decorrentes da falta de sentido de nação, identidade, educação, tradições, cultura, senso, … Tudo isto alimentado por um materialismo e um consumismo consciente e deliberadamente exacerbados pela ganância e canalhice de muitos (são cada vez mais - então nas gerações pós 25 do dito cujo, as bestas vêm ás carradas dos estábulos e estrebarias).
Resumindo, trata-se da implantação das turbes dos escravos, i. é: “semitização” da humanidade, e o seu consequente fim trágico.
V
PS: “(e anuncia as caixas de comentário do futuro)" :)))
"...o que é geral e comum a todas as seitas é, diante do problema, resolvê-lo da forma consagrada, compulsiva e sacrossanta desde o Princípio do Mundo (1789): atirando-lhe leis para cima."
ResponderEliminarÉ isso mesmo e, na realidade, ainda não saímos da Convenção.
Au contraire! :-)
A diferença é que a Convenção já não está em Paris.... agora está Urbi et Orbi!
Um messianismo, enfim.
Ei-la .... a Convenção (ou, pelo menos, o seu espírito) em todo o seu "esplendor".
ResponderEliminarhttp://www.telegraph.co.uk/technology/2016/04/06/applied-for-a-us-visa-in-the-last-20-years-your-fingerprints-and/
:-)
Dá a nítida impressão que vivemos nas páginas de 1984.
Isto começa a ser INGSOC (por enquanto disfarçado) mas o gato é demasiado grande e gordo e já se lhe vê o rabo. ;-)
NOTA:a despropósito (ou talvez não), analisando a papelada do Panamá, constatamos, em júbilo, que os EUA e suas empresas são apenas instituições beneméritas e sem quaisquer fins lucrativos onde impera a mais austera honestidade.
Nem um, so far. :-) :-0