«Penso que agora entenderás melhor o que há pouco te perguntava, ao interrogar se a função de cada coisa não era aquilo que ela executava, ou só ela, ou melhor do que as outras.
-Entendo - respondeu - e parece-me que é essa a função de cada coisa.
Bem - disse eu -. Portanto, não te parece ter uma virtude que lhe é própria tudo aquilo que está encarregado de uma função? Tornemos ao mesmo ponto: os olhos, dizíamos nós, têm uma função?
- Têm.
- Portanto, têm também uma virtude?
- Têm também uma virtude.
- E então? Tínhamos dito que os ouvidos tinham uma função?
- Tíonhamos.
- Portanto, uma virtude também?
- E uma virtude também.
- E relativamente a todas as outras coisas? Não é igual?
- É.
- Ora bem! porventura os olhos cumpririam bem a sua função, se não tivessem a sua virtude própria, mas um defeito em vez dela?
- Como poderiam fazê-lo? - retorquiu -. referes-te talvez à cegueira, em vez da vista?
- À virtude deles, seja ela qual for - respondi -. Não é isso que eu estou a perguntar, mas se a sua função se desempenha bem, graças à virtude que lhes é própria, ou mal, devido ao defeito.
- Falas verdade.
- Logo, também os ouvidos, privados da sua virtude própria, desempenham mal a função?
- Exactamente.
- Englobaremos, portanto, todas as outras coisas no mesmo raciocínio?
- É o que parece.
- Ora vamos lá, depois disto, a examinar este ponto. A alma tem uma função, que não pode ser desempenhada por toda e qualquer outra coisa que exista, que é a seguinte: superintender, governar, deliberar e todos os demais actos da mesma espécie. Será justo atribuir essas funções a qualquer outra coisa que não seja a alma, ou deveremos dizer que são específicos dela?
- A alma, e a nenhuma outra coisa.
- E agora quanto à vida? Não diremos que é uma função da alma?
- Acima de tudo - respondeu.
- Logo, diremos também que existe uma virtude da alma?
- Di-lo-emos.
- Então, ó Trasímaco, a alma algum dia desempenhará bem as suas funções, se for privada da sua virtude própria, ou é impossível?
- É impossível.
- Logo, é forçoso que quem tem uma alma má governe e dirija mal, e, quem tem uma alma boa, faça tudo isso bem.»
- Platão, "Politeia"
Vamos por partes. Para muitos, Deus não existe; logo, a alma também não. Não faz pois qualquer sentido falar nisso.
Para outros, inúmeros também, embora Deus exista, agem como se não existisse. E apesar de terem alma, não a usam.
Objectar-me-ão, e eu aceito, que Deus é uma questão demasiado intrincada e potenciadora de equívocos ou resistências emocionais. Traduzindo: está fora de moda. Vamos então para uma ideia mais terrena e menos problemática: a Pátria. Também está fora de moda, mas não tanto. Deu-me para o optimismo, hoje.
Sendo certo que para muitos, tanto à esquerda quanto à pseudo-direita, o homem actual não tem Deus, nem alma, nem pátria, para uns tantos outros, por enquanto, a pátria ainda é um conceito com algum significado. Embora, para a grande maioria possa ser dito aquilo que já anteriormente se avaliou em relação a Deus: se bem que reconheçam que a pátria existe, agem como se não existisse.
Não obstante, a mesma função e virtude que a alma desempenha no homem (enquanto indivíduo), tem ou não tem um correspondente nesse mesmo homem enquanto povo? Sintetizando: a Pátria tem uma alma? Bem, parece-me que a afirmativa é facilmente deduzível: algo tem como função dirigir um povo e respectiva pátria. E se a esse algo cumpre superintender, governar, deliberar e todos os demais actos da mesma espécie, parece então óbvio quem desempenha a alma de Portugal: os seus governantes e autoridades administrativas.
Ora bem, uma alma má, segundo Platão (e penso que aqui só internados ou candidatos a Rilhafoles poderão discordar dele), dirige e governa mal; e uma alma boa, pelo contrário, dirige e governa bem. E o que é que distingue uma alma boa da alma má antes mesmo do resultado dos seus actos, ou seja, o que é que promove a bondade ou a maldade da acção? Ambas cumprem a mesma função, só que uma fá-lo juntando-lhe a virtude, a outra executa-o prescindindo dela. Governar é governar bem; governar mal é desgovernar; tal qual ter olhos e ver é auferir da virtude da visão e ter olhos e não ver é padecer do defeito da cegueira. Os parâmetros da acção medeiam assim entre a governação virtuosa ou a desgovernação viciosa/deficiente.
Por outro lado, dizer que a alma dum povo se resume ao seu governo parece um tanto ou quanto redutor caso se entenda o simples número dos ministros e secretários do executivo central. Ora, esse pequeno número significa geralmente a manifestação mais visível e proeminente de algo mais vasto. Quando hoje em dia assistimos a desgovernos vários e consecutivos, tanto quanto ao entranhamento dum regime defeituoso, assistimos igualmente à ausência desse "algo mais vasto" subjacente. Não falta apenas a alma, falta o corpo são e digno de onde a alma se eleva. Há um problema sério com o corpo actual de Portugal. Actual significa em acção, activo, e o que se depara, a todas esquinas e horas, é a uma chusma passiva, resignada, impotente. Que chafurda, destilando licores de trampa, em rótulo novo-rico ou velho-abutre, que exibe - e ora lambuza, ora defenestra - nas pantalhas. É uma massa informe e criptocéfala que se odeia e despreza a si própria na figura daqueles que içla e sustenta. Daí, aliás, o espelho palúdico onde desgovernantes e desgovernados se reflectem. A safadeza impera. É o safe-se quem puder, cada qual por si e todos auto-investidos no imperativo descategórico: todos lhe devem e ele não deve nada a ninguém. Portugal está reduzido e nhanhificado, mais que a um rectângulo auto-mutilado, poltrão e inglório, às suas vísceras. De facto, a ausência de elites condignas desse nome apenas certifica o raquitismo do povo que as deveria arvorar. Não falta apenas essa bandeira: falta, sobremaneira, o braço e o corpo que a empunha e ergue com orgulho e destemor. Está, pois, mal feita a pergunta pelas elites: a pergunta correcta é a que demanda pelo povo. Que é feito do povo? Em que estado o trazem e mantêm?
Dostoievski dizia que quem quisesse destruir um povo começava por destruir-lhe a juventude. Vale a pena (embora agrida o estômago) dar uma olhadela à juventude portuguesa que por aí fora se avista. Que representa a juventude? - A capacidade regenerativa de um povo. Algo que não se regenera, envelhece e morre. Ora, o que mais se lobriga são jovens caquécticos e jarretas a armarem ao adolescente. Uns a agredirem a sua própria inteligência e verticalidade, desde pequeninos; outros a regredirem ao estado larvar da sua mocidade revista e requentada. A balbúrdia fétida e desarmoniosa na própria sociedade alastra ao aparelho psicológico dos porta-egos: cada desalmado está em perpétuo conflito consigo próprio, dilacerado entre um bandulho desmesurado que tudo deseja e ambiciona (e a quem tudo é prometido, devido e acicatado), e um pensamento enfezado, anoréctico e frouxo que nada satisfaz. Em bom rigor, um dispensamento (dispensam toda e qualquer ética, coerência, dever ou verdade que dure mais de quinze dias, se tanto). À falta de juventude genuína, temos, assim, uma pseudo-adolescência que vai dos 8 aos 80. A infância e a maturidade foram banidas e andam a monte. Tanto quanto a masculinidade. Por toda a parte, viceja o mosquedo ruidoso, cobarde e mesquinho. Sempre pronto para a rixa doméstica, intestina, para a cata-bichice do vizinho, para o trampolim sobrexcitado da purga interna, mas jamais disponível para a união e defesa de valores mais elevados, concretos e intemporais do que o simples horizonte de sopeiras militantes que parece congregar em absoluto a desalmação de todos estes fetichistas da economia.
A própria economia está, no seu objecto, função e essência, emporcalhada e pervertida: oikos, (donde o nosso prefixo eco) na etimologia, significa casa. Casa pressupõe humanidade, pessoas, gente. A economia é uma ciência da administração da casa. Perante este curral em que cada vez mais descambamos, a economia não é, de todo, a ciência aplicável: é, outrossim, qualquer outra engenharia da ordem da antropecuária. Sitiam-nos não apenas os aleives e voragens do estrangeiro roncante da hora a ferver, mas, em delegação interna e esbirra, todo um arraial de bestas zombificadas e zumbidoras. A palha em que refocilam e com que cevam a pança é a mesma com que agasalham a idiotia mijona e engordam o espantalho mental a fingir de espírito.
Suspeito bem que o tratamento de determinadas aberrações pertence quase por completo ao domínio da potestade Divina ou das catástrofes da Natureza. Não há terapia humana para determinados desarranjos. A ideia de que tudo podemos foi a exacta ideia que nos trouxe aqui.
Por outro lado, dizer que a alma dum povo se resume ao seu governo parece um tanto ou quanto redutor caso se entenda o simples número dos ministros e secretários do executivo central. Ora, esse pequeno número significa geralmente a manifestação mais visível e proeminente de algo mais vasto. Quando hoje em dia assistimos a desgovernos vários e consecutivos, tanto quanto ao entranhamento dum regime defeituoso, assistimos igualmente à ausência desse "algo mais vasto" subjacente. Não falta apenas a alma, falta o corpo são e digno de onde a alma se eleva. Há um problema sério com o corpo actual de Portugal. Actual significa em acção, activo, e o que se depara, a todas esquinas e horas, é a uma chusma passiva, resignada, impotente. Que chafurda, destilando licores de trampa, em rótulo novo-rico ou velho-abutre, que exibe - e ora lambuza, ora defenestra - nas pantalhas. É uma massa informe e criptocéfala que se odeia e despreza a si própria na figura daqueles que içla e sustenta. Daí, aliás, o espelho palúdico onde desgovernantes e desgovernados se reflectem. A safadeza impera. É o safe-se quem puder, cada qual por si e todos auto-investidos no imperativo descategórico: todos lhe devem e ele não deve nada a ninguém. Portugal está reduzido e nhanhificado, mais que a um rectângulo auto-mutilado, poltrão e inglório, às suas vísceras. De facto, a ausência de elites condignas desse nome apenas certifica o raquitismo do povo que as deveria arvorar. Não falta apenas essa bandeira: falta, sobremaneira, o braço e o corpo que a empunha e ergue com orgulho e destemor. Está, pois, mal feita a pergunta pelas elites: a pergunta correcta é a que demanda pelo povo. Que é feito do povo? Em que estado o trazem e mantêm?
Dostoievski dizia que quem quisesse destruir um povo começava por destruir-lhe a juventude. Vale a pena (embora agrida o estômago) dar uma olhadela à juventude portuguesa que por aí fora se avista. Que representa a juventude? - A capacidade regenerativa de um povo. Algo que não se regenera, envelhece e morre. Ora, o que mais se lobriga são jovens caquécticos e jarretas a armarem ao adolescente. Uns a agredirem a sua própria inteligência e verticalidade, desde pequeninos; outros a regredirem ao estado larvar da sua mocidade revista e requentada. A balbúrdia fétida e desarmoniosa na própria sociedade alastra ao aparelho psicológico dos porta-egos: cada desalmado está em perpétuo conflito consigo próprio, dilacerado entre um bandulho desmesurado que tudo deseja e ambiciona (e a quem tudo é prometido, devido e acicatado), e um pensamento enfezado, anoréctico e frouxo que nada satisfaz. Em bom rigor, um dispensamento (dispensam toda e qualquer ética, coerência, dever ou verdade que dure mais de quinze dias, se tanto). À falta de juventude genuína, temos, assim, uma pseudo-adolescência que vai dos 8 aos 80. A infância e a maturidade foram banidas e andam a monte. Tanto quanto a masculinidade. Por toda a parte, viceja o mosquedo ruidoso, cobarde e mesquinho. Sempre pronto para a rixa doméstica, intestina, para a cata-bichice do vizinho, para o trampolim sobrexcitado da purga interna, mas jamais disponível para a união e defesa de valores mais elevados, concretos e intemporais do que o simples horizonte de sopeiras militantes que parece congregar em absoluto a desalmação de todos estes fetichistas da economia.
A própria economia está, no seu objecto, função e essência, emporcalhada e pervertida: oikos, (donde o nosso prefixo eco) na etimologia, significa casa. Casa pressupõe humanidade, pessoas, gente. A economia é uma ciência da administração da casa. Perante este curral em que cada vez mais descambamos, a economia não é, de todo, a ciência aplicável: é, outrossim, qualquer outra engenharia da ordem da antropecuária. Sitiam-nos não apenas os aleives e voragens do estrangeiro roncante da hora a ferver, mas, em delegação interna e esbirra, todo um arraial de bestas zombificadas e zumbidoras. A palha em que refocilam e com que cevam a pança é a mesma com que agasalham a idiotia mijona e engordam o espantalho mental a fingir de espírito.
Suspeito bem que o tratamento de determinadas aberrações pertence quase por completo ao domínio da potestade Divina ou das catástrofes da Natureza. Não há terapia humana para determinados desarranjos. A ideia de que tudo podemos foi a exacta ideia que nos trouxe aqui.
> Ora bem, uma alma má, segundo Platão (e penso que aqui só internados ou candidatos a Rilhafoles poderão discordar dele)
ResponderEliminarEssa fézada no Platão ainda vai dar mau resultado.
O camarada Platão era um mero retórico republicano de raciocinios retorcidos - aquele que citou é particularmente patético, e poderia ser usado para "demonstrar" fosse o que fosse e o seu contrário.
Aliás, quando chegou a Siracusa, o tirano reinante, como homem de bom senso, empacotou-o de volta a Atenas, mais as teses de reis-filosofos ("Oh really?").
Eu cá é mais "os primeiro quatrocentos nomes da lista telefónica, em vez do corpo docente de Harvard", como disse o outro, que bem sabia.
Quem vê almas não vê corações.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarA gesta nacional explica-se porque a fizemos, com todos os corpos da nação, à uma A alma dos interesses particulares, de classe ou o que fosse, conjugou-se numa alma colectiva. Alma(s) esclarecida(s) houvemos cujo sopro se apagou. Não sei que sucedeu.
ResponderEliminarO Poeta contou do «fraco rei faz fraca a forte gente». Pelo menos nesse passo havia gente. Não sei agora de rei, fraco ou forte, nem de gente. É o completo vazio, físico, metafísico e restante.
Anoréctico e caquéctico poderiam ser adjectivos deste nada...
Cumpts.
Bic,
ResponderEliminarjá está.
«O camarada Platão era um mero retórico republicano»
ResponderEliminar«mais as teses de reis-filosofos»
Então, ó caro Euro2cent, em que é que ficamos? Retórico republicano ou monárquico esclarecido?
:O))
PS: Rilhafoles - ala dos platofóbicos.
☺
ResponderEliminarcumpts.
Magnífico texto. Parabéns.
ResponderEliminarQuer isto dizer que, no prosseguimento d'alguns textos recentes, a juntar ao de hoje, 'regressámos' ao estilismo de excelência precedente? If that's the case, good for you:)
Maria