segunda-feira, abril 27, 2015

Acromiomancia Revisitada - XXIII. Nem Rei nem Grei




«Calcule o senhor que os integralistas lusitanos me exigiam que restaurasse o trono como condição de colaboração. Disse-lhes que havia duas maneiras de fazer a monarquia: de cima, com o Rei, ou debaixo e de dentro fazendo o que o rei faria e restaurando-o depois. Ora a primeira solução era impossível: não havia ambiente nem força política porque a República efectivamente se incrustrara no país. Ficava portanto a segunda solução, porque a primeira arrastaria a minha queda e a deles todos. Pois não quiseram, e incompatibilizaram-se comigo. Zangaram-se o Pequito Rebelo, o Sardinha, o Hipólito Raposo, que tão mal escreveu de mim. Tudo boa gente: o Pequito Rebelo lá anda em Angola a prestar bom serviço. Mas os monárquicos fugiram-me. Eu disse-lhes que tinhamos feito uma constituição já preparada para a Monarquia. Da República, a constituição conservava três coisas: a bandeira, o hino e o nome: o resto era facilmente afeiçoável a um estado monárquico. Pois não quiseram. Foi um disparate e agora não há rei.»
- A.O. Salazar (a Franco Nogueira, em 30 de Maio de 1966)

É uma acusação séria que se ouve regularmente contra Salazar. Que, ao contrário de Franco, não teve a prudência, a sensatez e a visão de restaurar a Monarquia. Eu estou firmemente de acordo que a Monarquia deve ser restaurada, sob pena de Portugal desaparecer no ralo da história em boa velocidade. Embora não acredite nisso como uma espécie de panaceia ou pó mágico que, só por si, recoloque tudo nos eixos - e quando digo tudo é literalmente tudo. Mas temos que ser também nós justos e sensatos nas exigências: decerto Salazar não tinha esse Poder absoluto e milagreiro (mais super-poder até que poder) de restaurar por decreto ou varinha. Ou havia o esforço concertado e profícuo dum escol, ou nada feito. Ora, o que Salazar declara é que ficou sem o tal escol. E seguramente, a não ser que o absurdo constitua lei, não era sem os monárquicos que restauraria a monarquia. Eventualmente, poderemos então acusá-lo, com severidade, que falhou porque não conseguiu convencer, converter, ou obrigar os republicanos à ideia e, logo de seguida, ao facto. O tal absurdo, já se vê. Rir-se-iam os republicanos: "então este cavalheiro nem os monárquicos convence e quer-nos convencer a nós?!..." Mas, às vezes, fico com a sensação que é mesmo essa a essência da acusação que lhe fazem.
E, todavia, não foi por desinteresse, alheamento  ou falta de empenho da parte de Salazar que a coisa não se efectivou. As relações de Salazar com a Rainha Dª. Amélia eram as melhores. Houve contactos, por intermédio do Dr. José Nasolini (em representação de Salazar junto da rainha) em que alvitrou a restauração da Monarquia. Santos Costa chegou a sondar o Marechal Carmona nesse sentido (este respondeu com prudência, alguma abertura, mas depois teve a triste ideia de falar no caso a Cabeçadas...). A lei de Proscrição e Banimento da linhagem de D.Miguel foi destituída pela lei 2040, em 1950. O  Pretendente da Coroa, D.Duarte Nuno, neto de D.Miguel veio viver para Portugal, de modo a que, entre outros aspectos, o príncipe fosse educado entre nós. Em 1967, os restos mortais de D.Miguel regressaram a Portugal e foram depositados, em cerimónia de Estado, no convento de S.Vicente de Fora.
Só que, entretanto, o rei D.Manuel II havia falecido em circunstâncias súbitas e bizarras (asfixiou com um edema da glote), o que reavivou a disputa entre monárquicos, inflamando legitimistas, integralistas e constitucionalistas (litígio, diga-se, que nunca tinha deixado de crepitar) . Todavia, e dado que o falecido não deixava descendência, a coroa passava para os descendentes de D.Miguel (mas aqui, era a própria rainha Dª Amélia que tinha que se aclimatizar à nova situação)... Enfim, tudo isto para referir a complexidade e multiplicidade de factores em jogo. Mesmo Paiva Couceiro, um herói e símbolo da monarquia, já de provecta idade e agitado sabe Deus porque espírito-santos de orelha, entendeu desferir epístolas desabridas, infundadas ( e até, como se veria adiante, verberando acusações altamente injustas) a Salazar (a principal era que este não queria saber de Angola, o que estaria a fomentar independentismo), arranjando maneira de se auto-excluir do processo.
Ora, esta perpetuação da pugna cismática, por muito justificada que fosse, não contribuiu em nada para a boa resolução do assuinto. Já antes do Estado-Novo, os integralistas e legitimistas proclamavam a qualquer constitucionalista que os quisesse ouvir, que não contassem com eles para se baterem pela pseudo-monarquia. Também, pôr-se Salazar a referir uma "constituição afeiçoada à Monarquia" a iintegralistas, ou seja, a indivíduos que não nutriam qualquer afectividade pela constituição, também não seria o mais galvanizante dos estímulos. E note-se que eu, que escrevo isto, também considero D.Pedro um usurpador traidor e miserável cuja estátua no Rossio me impede sequer de cruzar aquela praça, por nojo insuportável e vertigens de dinamite. Contudo, há alturas em que que as desavenças fratricidas têm que ser suspensas e ultrapassadas em prol dum bem comum. Esse, de resto, é o principal drama nacional: o permanente ambiente de rixa doméstica, sobre tudo e uma palha. Donde resulta o estado crónico e cíclico, por entre esporádicos intervalos a contra-maré, de uma nação que passa o tempo em luta consigo própria e a derrotar-se a si mesma. Mesmo a relação peganhenta com o estrangeiro nada mais congrega que um expediente atávico: o do sectário (em acto ou potência), ávido e militante, na recolha de munições, sejam elas de índole mental ou material,  para arremessar e regurgitar na imarcescível zaragata interna. Tão pouco se pode falar em guerra civil permanente: trata-se simplesmente de violência doméstica compulsiva. Do governo contra os governados; dos governados contra os desgovernantes; dos desgovernados uns contra os outros; dos eleitos contra os eleitores; etc, etc. Mesmo as eleições, além de fictícias e falsárias, mais não constituem que vazadouros colectivos para raivas, ódios e ressentimentos acumulados. Ninguém faz campanha por coisa alguma, programa credível ou ideia concreta e acabada: é sempre contra qualquer coisa, ameaça, conspiração ou perigo iminente. O pai contra a mãe e a mãe contra o pai -mãe e pai do descalabro, da bulha instalada e sempreviçosa, entenda-se - com a filharada em ricochete e  a ascendência em apneia . Vence aquele que conseguir denegrir, delatar e de alguma forma achincalhar, com mais injúrias, ínfâmias e menoscabos o adversário. No fim do fétido sarrabulho, diante da urna, menos de metade dos eleitores inscritos, que por qualquer requinte  de morbidez ou sadismo ainda se digna comparecer, divide-se entre a flagelação ao mais detestado ou o descargo de consciência cívica no menos imundo.                                                                                                                                                                        
Voltando a Salazar... Não deixa este de referir que, embora de candeias avessas consigo, todos aqueles integralistas eram boa gente. Não obstante, em 1958,  nos anteparos da intentona de 1959 contra o regime, acontecem algumas movimentações conspirativas que aparecem descritas pelo Coronel  Fernando Valença, na sua obra "A Abrilada de 1961" (e numa perspectiva anti-salazarista), a páginas 94:
«É um facto que em 1958, quando foi decidido não reconduzir o marechal Craveiro Lopes na presidência da república, houve realmente contactos deste e do general Botelho Moniz (mas indirectos) com um grupo de militares e civis que pretenderam opor-se àquela ideia e provocar um forte reformismo no regime. (...) O general Botelho Moniz, ainda Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas é contactado então por intermédio de dois oficiais do Secretariado-geral da Defesa Nacional, os majores Pedro Cardoso e Viana de Lemos.»          
Antes de prosseguir, uma breve nota sobre estes dois oficiais... Um, o major Viana de lemos já é nosso conhecido - era o subsecretário do Exército de Marcello Caetano, à altura do 25 de Abril. O tal que acompanhava as reuniões do Movimento dos Capitães e era amigo íntimo de Costa Gomes. Já o major Pedro Cardoso, também coronel à data de Abril de 74, participará no MFA e tornar-se-á o homem das Informações do regime democrático. Está por detrás da lei dos serviços secretos e respectivas dinâmicas. Em síntese, é o criador do SIRP e suas subdivisões, o SIS e o SIEDM.
Mas o Coronel Valença prossegue:
«Os dois majores, com o conhecimento do general Botelho Moniz, foram a uma reunião em casa do Dr. Pequito Rebelo, onde se encontravam monárquicos e esquerdistas. Ali se viam os capitães Vaz Pinto, Varela Gomes, Ramires, Vicente da Silva, Ferreira Pinto, Almeida Santos, Francisco Morais e Ribeiro Simões, que nessa época seria a ligação com o general Lopes da Silva, e o major Calafate.»
Que raio, então é mais difícil os monátrquicos entenderem-se entre si do que conspirarem com esquerdistas?
Só o tal Varela Gomes é todo um hino.Antifascista frenético, comanda o assalto ao quartel de Beja (intentona planeada por Humberto Delgado para derrubar Salazar), em 1962; reintegrado no pós-25 de Abril, com a patente de coronel; terá sido ele, mais a distinta esposa e insigne militante do PCP, quem tratou da transferência de vultuosa quantidade de ficheiros da PIDE/DGS para o Partido Comunista e posteriormente para a KGB/Moscovo; acolitou Vasco Gonçalves e comandou a célebre 5ª Divisão (da Dinamização Cultural); fugiu depois do 25 de Novembro para Angola e, na velhice, vai escrevinhando livros de propaganda onde mima a actual democracia (burguesa), imagine-se, com epítetos amorosos do estilo "filofascista".

Como dizia Alguém há mais de dois milénios: é preciso usar de extrema prudência e parcimónia nos juízos.

Mas vamos imaginar que Salazar até restaurara a Monarquia. O que é que nos garante que, no dia 25 de Abril de 1974, juntamente com o regime não iria de novo o Rei? Aliás, como pode ler-se muito bem descrito a propósito do 5 de Outubro:
«Já em 5, pela manhã, Paiva Couceiro ainda ataca de novo. Mas às 7 horas o representante diplomático alemão pede uma trégua para retirar os respectivos súbditos da cidade. Nas suas deslocações para parlamentar, usou uma bandeira branca no automóvel... e o equívoco gerado por esse símbolo no Quartel General provocou um efeito semelhante ao rebentamento de um colector gigante! Civis e militares misturaram-se, já nem se sabia quem era "quem" e o "quê". Foi o fim. O esgoto impôs-se, vasando sobre o carácter dos homens. Surge a sofreguidão de aderir, como aconteceria, muitos anos mais tarde, em 25 de Abril de 1974. Chamou-se-lhe, em 1910, o fenómeno dos adesivos.»
- (Fernando Amaro Monteiro, in "Salazar e a Rainha") 

                                                                                                                    

5 comentários:

  1. Não sei se o Sardinha teve tempo de se manifestar sobre Salazar. Possivelmente o Salazar tinha a ideia (por conversas pessoais ou pelo "diz que disse") de que o Sardinha estava "zangado" com ele.
    Aquilo que a malta integralista mais lhe critica é o facto de Salazar se ter demonstrado centralizador (ou continuador do centralismo) e por não ter levado às últimas consequências o corporativismo.
    Ainda assim, acho que o percurso e as amizades políticas de alguns integralistas, como Pequito Rebelo, Barrilaro Ruas ou Hipólito Raposo deixam algumas dúvidas sobre a disciplina do seu carácter.

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  2. Há gente inteligente e que eu considero que atribui ao Oliveira Salazar um certo pombalismo (esse centralismo que o Manuel Rezende refere como crítica dos integralistas)...
    Não sei até que ponto fazia parte do plano ou foi fruto duma cadeia ininterrupta de circunstâncias, a partir de certa altura (depois da 2ª Guerra) mais desfavoráveis que propícias...

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  3. Depois de uma cadência de posts avassaladores chegamos agora a pontos extremamente sensíveis:

    - A transição Política
    - O Centralismo
    - O Consenso para o Bem Comum

    Temas que merecem ser debatidos ao pormenor.






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  4. Escreve o "suspeito" José Adelino Maltez no seu facebook o seguinte:

    "Há duas tribos de pensamento político que dificilmente entraram no Portugal contemporâneo: os tradicionalistas anti-absolutistas, isto é, os velhos republicanos de 1385 e de 1640, e os liberais iluministas pouco dados ao jacobinismo, mas que geraram o romantismo patriótico. Ambos foram vítimas de assassinatos políticos e os assassinos e ainda andam à solta."

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  5. É interessante notar que a primeira república durou apenas 16 anos - e mesmo assim foi considerada "incrustada".

    Foram anos longos e atribulados, mas mesmo assim ...

    (Considerando um prelúdio de 76 anos de monarquia republicana talvez seja mais compreensivel.)

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