terça-feira, dezembro 18, 2012
1...
(Som de fundo:
"À Nossa Senhora das Mordomias")
Leitores, compatriotas, amigos,
minhas senhoras e meus senhores
Excelências,
eu tinha preparado um brilhante e solene discurso. Tinha mesmo. Uma pungente e impressionante mensagem de despedida. Coisa descoroçoante, acreditem, de fazer chorar as pedras... Sabeis que não minto; que, quando quero, embora raramente, sou capaz de cintilâncias e granifulgências arrebatadoras. Pois é verdade que tinha. Só que o meu sócio, confrade e imediato Ildefonso Caguinchas, mais que as palavras, tirou-me as imagens da boca. Vendo a minha querida Svetlana assim exposta, fiquei também eu núcego de metáforas e hipérboles, sinestesias e onomatopeias, anacolutos e anáforas. Que vos hei-de eu dizer numa hora destas?... Olhem, vou ali comprar fósforos!...
2...
Diz-me o tirano: "Acabou, Caguinchas! Vai lá e despede-te das pessoas."
Portanto, cá estou. Não sou muito de discursos. E como uma imagem, dizem, vale mais que mil palavras, deixo-vos uma imagem que vale mais que um milhão... E que, não é preciso acrescentar, simboliza tudo o que eu penso do universo, da vida, da humanidade e do tempo efémero que aqui passamos...
PS: Sim, porque tudo bem espremido, filosofias, literaturas, economias, políticas (excepto certas religiões mais dadas à monotonia), tudo se resume a uma frase: "Mim Tarzan, tu Jane!..."
Ó Leonilde is Love! Ó Leonilde is Love!...
(E agora roam-se de inveja, ó seus piças moles!!...)
Portanto, cá estou. Não sou muito de discursos. E como uma imagem, dizem, vale mais que mil palavras, deixo-vos uma imagem que vale mais que um milhão... E que, não é preciso acrescentar, simboliza tudo o que eu penso do universo, da vida, da humanidade e do tempo efémero que aqui passamos...
PS: Sim, porque tudo bem espremido, filosofias, literaturas, economias, políticas (excepto certas religiões mais dadas à monotonia), tudo se resume a uma frase: "Mim Tarzan, tu Jane!..."
Ó Leonilde is Love! Ó Leonilde is Love!...
(E agora roam-se de inveja, ó seus piças moles!!...)
segunda-feira, dezembro 17, 2012
3...
Havia que escolher um postal que sintetisasse a generalidade do que aqui ficou escrito e que servisse também de mnemónica para o futuro...
Nada comos os provérbios do povo a que pertenço, só que devidamente adaptados à realidade moderna e, consequentemente, despidos de todo o eufemismo e suavização tradicionais. Nem todos nascemos brandos aqui nesta Brandoa...
Provérbios impopulares do Dragão
· Nem tudo o que lês é ouro
· Tristezas não apagam dívidas
· Vêem-se caras, não se vêem cotações
· Devagar se vê ao longe
· O silêncio é de outro
· A cavalo doido não se molha o dente
· Não guardes para amanhã o que podes foder hoje
· Os umbigos são para as ocasiões
· Em tempo de guerra não se limpam Karmas
· Cada maluco com a sua maria
· Cão que ladra não fode
· Contra flatos não há argumentos
· Da discussão nasce a cruz
· De boas invenções está o Inferno cheio
· De noite todos os patos são parvos
· Mudam-se os tempos, mudam-se as vaidades
· Não deites foguetes com fé na testa
· No papar é que está o ganho
· No melhor plano cai a nódoa
· O hálito não faz o monge
· O que não mata, engoda
· O Saber não ocupa lagar
· O futuro morreu de velho
· Olhos que não vêem, coração que não mente
· Cabrão fora, dia santo na gaja
· Quem fala, contende
· Quem morre por gosto, não descansa
· Quem espeta sempre alcança
· Quem mais jura, mais monta
· Quem te evita, teu amigo era
· Quem tem cu, tem mundo
· Um mal nunca tem dó
· A união faz a forca
· Ardor com ardor se apaga
· As aparências elegem
· Tristezas não apagam dívidas
· Vêem-se caras, não se vêem cotações
· Devagar se vê ao longe
· O silêncio é de outro
· A cavalo doido não se molha o dente
· Não guardes para amanhã o que podes foder hoje
· Os umbigos são para as ocasiões
· Em tempo de guerra não se limpam Karmas
· Cada maluco com a sua maria
· Cão que ladra não fode
· Contra flatos não há argumentos
· Da discussão nasce a cruz
· De boas invenções está o Inferno cheio
· De noite todos os patos são parvos
· Mudam-se os tempos, mudam-se as vaidades
· Não deites foguetes com fé na testa
· No papar é que está o ganho
· No melhor plano cai a nódoa
· O hálito não faz o monge
· O que não mata, engoda
· O Saber não ocupa lagar
· O futuro morreu de velho
· Olhos que não vêem, coração que não mente
· Cabrão fora, dia santo na gaja
· Quem fala, contende
· Quem morre por gosto, não descansa
· Quem espeta sempre alcança
· Quem mais jura, mais monta
· Quem te evita, teu amigo era
· Quem tem cu, tem mundo
· Um mal nunca tem dó
· A união faz a forca
· Ardor com ardor se apaga
· As aparências elegem
- Diz-me em quem mandas, dir-te-ei quanto é
- A ração tem sempre cliente
- A ração tem sempre cliente
domingo, dezembro 16, 2012
4...
«O Homem é humano quase tanto como voa a galinha. Quando apanha uma traulitada, quando um carro a obriga a bailar, lá vai ela pelos ares até ao telhado, mas logo de seguida aterra no lodo e desata a debicar na bosta. É a natureza, a ambição dela. Entre nós, na sociedade, dá-se exactamente o mesmo. Deixa-se de ser tratante sob a acção de uma catástrofe. Quando tudo torna ao normal, a natureza retorna logo ao que era. Por isso mesmo é que, de uma Revolução, só vinte anos depois se pode ajuizar.
"Eu sou! tu és! nós somos rapaces, pérfidos, sacanas!" Jamais se dirão coisas destas! jamais! Jamais! verdadeira revolução porém seria a das Confissões, a grande purificação!»-Céline, "Mea culpa"
Peguem em qualquer postal que eu aqui tenha escrito em 2005 ou 2007 ou 2010 sobre os (des)governos da época. Ajusta-se que nem uma luva ao desgoverno de hoje. A mesma coisa sobre americanos, europeus, árabes (de burka ou de penca), esquimós, marcianos, aliões constipados, etc, etc. Às tantas, um tipo dá consigo a sentir-se papagaio de si próprio. A patinhar ab aeterno em bosta. Ou a debicar militantemente nela, como a galinha do Céline. E o pior é que como em tudo, o eco fica sempre àquem do original. A repetição perde sempre o brilho, o lustro da descoberta. De facto, neste mundo doravante entregue aos vermes e aos parasitas, as coisas não evoluem: deterioram-se. O único sentido de mudança que experimentam é a alteração física - essa qualidade de movimento estático definido por Aristóteles como geração/corrupção. Eventualmente, os países, os povos, as civilizações são como as pessoas. Nascem, crescem e morrem. No fim da geração (e das gerações ínclitas) aguarda fatalmente a corrupção (e as corrupções sórdidas). Senil, amnésico, hipocondríaco, flatulento, velhaco, cobarde, podre do corpo e abandonado pelo espírito, Portugal está a morrer. Não é matéria para galhofa, chalaça, nem riso. Aos desfiles fúnebres assiste-se em silêncio. Um Dragão não é uma hiena.
sábado, dezembro 15, 2012
5...
«(...)Leobundo dirigiu-se para a Síria, direito a Antioquia.
Como sempre,ao longo do seu itinerário - virasse à esquerda, virasse à direita, subisse às montanhas, descesse aos rios -, não encontrava vivalma. Mesmo da criação, nas quintas, só os porcos, adultos e calejados, o recebiam, remirando-o então interessados, de dentro das suas pocilgas, ou fossando nas enxovias que bordejavam as casas, conforme ele passava célere, em ritmo de marcha acelerada e trompeta justa. Leobundo benzia-os e prosseguia em bom ritmo. Desde Jerusalém, adquirira o hábito de se ir arauteando, em jeito de anúncio: "A mim, os paralíticos, os leprosos, os cegos-tristes e os surdo-gagos!"
Também as populações e as regiões visitadas, aos poucos, começavam a adoptar curiosos costumes. Assim, consoante se apercebiam da sua aproximação (o que não era difícil) e reuniam um cálculo abalizado sobre o seu presumível itinerário, iam abandonar todos os seus paralíticos e cegos-tristes bem no enfiamento da rota do santo. Nos dias em que o vento soprava de feição, ainda o beato peregrino vinha a quilómetros, e a cura milagrosa não se fazia esperar. Os paralíticos, arrebatadamente, levantavam-se, e desatavam, mais que a andar, numa correria louca; os cegos-tristes, sem sequer quererem saber nem ver onde raio punham os pés, largavam em tropel semelhante, doravante alegres e dando graças a Deus, já que para mirar a abominação correspondente a semelhante aroma, mais valia não ver, bendita a hora em que haviam perdido a visão, que os poupava a tais horrorers, etc, etc. E mesmo quando, mais tarde, os repescavam dos precipícios, poços ou rios onde se despistavam por via da desorientação, encontravam-nos sempre com um sorriso nos lábios, mesmo se mortos ou feridos. O poder do santo só não era eficiente junto dos surdo-gagos, pois estes, à primeira inalação, regrediam imediatamente para surdos-mudos. Quanto aos leprosos, como já sabemos, o panorama era misto, mas não deixava de ser animador: aqueles que já haviam perdido o nariz recebiam-no cortesmente, escutavam-no e tornavam-se mesmo seus discípulos; os que perseverassem com nariz fugiam apavorados; mas todos eles, à uma, perdiam a melancolia e o acabrunhamento que, até aí, os assombrava.
Foi numa manhã cinzenta de baixas neblinas que Leobundo regressou a Antioquia, ou melhor, aos arredores desta, junto da coluna onde Simão, o seu mestre-treinador, morava.
É claro ue se fizera preceder duma debandada miraculada de paralíticos-corredores e cegos-alegres. Esta revoada anunciadora começava a tornar-se, para bom entendedor, péssimo e indubitável augúrio.
Mas Simão, lá nas alturas onde vivia, pouco se apercebia das peripécias e folclores, sempre patéticos, do mundo. Nessa noite dormira particularmente feliz pois os seus adeptos e admiradores tinham-lhe acabado de elevar a mansão até aos 22 metros onde agora se encontrava. Mais próximo doravante do céu e, por conseguinte, de Deus, Simão afagava voluptuosamente as nuvens, sem reparar na revoada de entrevados-corredores e cegos-alegres que, mais abaixo, desarvoravam.
Estas revoadas, convém referi-lo, faziam-se acompanhar de gritarias e alaridos onde predominavam "Deus nos acuda!", "Ó da guarda!", "salve-se quem puder!", "Ai minha mãe!, "Nossa Senhora nos valha!, "vade retro e abrenuncio!", e por aí fora. Essa manhã não foi excepção: os adeptos e fiéis de Simão, acampados à volta da coluna, puideram, com grande estupefacção, vê-los passar em correria desautinada, como se a própria peste os perseguisse. Um dos dos cegos-alegresq ue, entre sprintes e tombos, se distinguia pelo vigor com que accionava os joelhos, veio mesmo esbarrar estrondosamente no poste magnífico onde o asceta apontava ao céu. Correndo a socorrê-lo e ampará-lo - ao cego desgovernado, já que o asceta continuava firme lá no alto -, os fiéis, perplexos, interrogavam-no sobre os motivos para tanta pressa e as razões de tão ébria condução. Mas logo que recobrou os sentidos, o frenético invisual esbracejou que nem um endemoinhado, cuspiu vários dentes e, apesar do nariz a golfar sangue, arrancou num galope ainda mais desaurido do que antes. Enquanto ele se ia despenhar por uma ribanceira deveras íngreme que ficava logo adiante, os adeptos de Simão entreolhavam-se, entre aturdidos e preocupados. Que raio se passava, afinal?
É preciso recordar que muitos deles eram peregrinos oriundos de longínquas paragens, pouco eruditos nos costumes e perigos da região. Chegavam, após árduas jornadas, na expectativa de algum milagre, relíquia ou sermão iluminante. Madrugavam e congregavam-se ali, ainda mal o sol raiava, porque era todos os dias àquela hora que o santo, lá de cima, procedia à vazão diária. Uma multidão ansiosa montava sentinela atenta à liquefacção inspirada. Ao princípio, quando a coluna pouco mais tinha que três metros de altura, era simples: o jorro descia coeso e bem defenido. dada a boa visibilidade, conseguia prever-se com eficaz antecipação para que lado o asceta visaria. A turba convergia então, não sem alguns precalços e atropelos, estendendo potes e vasilhames. Mas depois que o torreão se elevara para lá da dezena de metros, o vento e o prognóstico começaram a interferir. O jorro derivava, a maior parte das vezes, para chuveiro. Nunca se sabia exactamente que ponto cardeal o anacoreta aéreo privilegiaria para a sua devota rega. O cálculo das probabilidades implantou-se. Complexos processos de adivinhação e vaticínio antecediam a madrugada. Áugures profissionais passaram a montar consultório nas redondezas e a cobrar tarifa aos crentes. Postos de observação artificiais terão sido levantados, com o intuito de espreitar o eremita e transmitir as suas tendências. "É leste!", gritavam os vigias; ou "é sudoeste!", avisavam os logradores. E a maralha comprimia-se, atropelava-see contundia-se por um lugar vantajoso, à bica do santo.»
Duas ou três notas complementares, se me permitem abusar da vossa condescendência. É evidente que estamos perante um exercício cruel de humor negro. O único, aliás, que verdadeiramente me interessa e apaixona. Mas também uma espécie que em Portugal gera invariavelmente um dose monumental de incompreensão, para não dizer mesmo desconforto. Até à ironia, em porções suaves e descaroçadas, a malta ainda vai. Todavia, dum modo geral, mesmo essa é olhada de esguelha, com desconfiança, melindre bacoco ou desdém alarve. Será consequência dum défice endémico de inteligência - isto é, serão os portugueses, intrinsecamente, um povo troncho e estúpido, em que a nata e a borra se confundem no mesmo paúl de indigência mental? Bem, nisso, e no tempo actual, o povo português não se distinguiria da generalidade dos povos, sobretudo ocidentais. Pelo que não vou por aí: Se isso, em parte é verdade, não o é absolutamente. Portanto, não define a coisa nem o fenómeno envolvente da coisa. Eu diria antes que o que cada vez mais atravanca e menoriza o pensamento das pessoas é a pressa, a vertigem aquisitiva, de bugiigangas tanto quanto de notícias, de sinais exteriores de sucesso tanto quanto de (pseudo)conhecimentos - sendo que, para cúmulo, a cultura do conhecimento refina-se e resume-se sobremaneira no "conhecimento de pessoas úteis", e nas mil e uma formas, sortilégios e expedientes para seduzi-las e atrai-las ao nosso proveito, nem que seja, à falta de melhores trunfos ou armamentos, pela bajulice, o rapapé e a tele-osmose pública, estrepitosa e repenicada. Dessa vertigem resulta a fatal superficialidade do crivo: sempre a encher-se e sempre a sentir-se vazio. Quanto mais perpassa menos retém. E essa, infelizmente, é a cultura da internet, do google, da wikimérdia, do palramento que alastra da acrópole ao necrotério. Ingurgita-se cada vez mais, mas digere-se cada vez menos. Tudo é uma papa. E não tarda, nem isso: pílulas e soro directo na veia, o que dispensará gastos supérfluos, como actualmente, com o funil. Diz-se que os capitalistas promoveram a alfabetização para pôr as massas a ler jornais. Já passaram à segunda fase: agora já as colocaram a escrevê-los. Bem como a best-sellers literários E aí o fenómeno adquire contornos tenebrosos, que se traduzem numa constatação tão gritante quão eloquente: o segredo não está em limitar e, muito menos, reprimir, a liberdade de expressão; o truque, através do despejo ininterrupto de "informação" e expressão à pendura, consiste, ao invés, em, atrofiar, até à erradicação funcional, mais que a liberdade, a própria possibilidade de pensamento. Desde que não penseis, podeis dizer tudo o que vos der na real gana. Aliás, quanto mais tempo gastardes a debitar esses chorrilhos imarcescíveis entre a lamúria e a aleivosia, esse perpétuo diz-que-diz-do-que-o-outro-disse, menos perigo - e sobretudo tempo! - há de pensares efectivamente no que quer que seja. As pessoas ainda não perceberam que a troco da palavra gratuita, estão a dar, de barato e confisco, o sentido. A coisa descamba assim num recreio infantil em átrio de manicómio, onde a opinião e a pilinha já não se distinguem. Micro-napoleões do sitemeter, nano-profetas da economia, mini-lenines de chucha, churchils'r'us de plástico, escuteiros-mirins da disneylândia esbirra competem por púlpito, pedestal e megafone.
Para mim, basta.
PS: Um último reparo, tendo até em atenção o velho Simão, Estilita, na sua coluna ascética. Os homens regrediram muito desde esses baluartes da demanda vertical. O mundo processa-se agora às avessas. Assistimos, não raramente, a personagens invertidas destes promontórios. Hoje em dia, por exemplo, incapazes de subirem na coluna, os descetas afundam-se no blogue, isto é, escavam um buraco, do fundo do qual expelem os seus ruídos. Também congregam devotos. Só que estes, já não elevam os pescoços à coca das pingas redentoras: debruçam-se, acocoram-se, tão sòmente, na fossa, à espera do géiser. A ascese da coluna deu, pois, lugar ao chafariz de bidé. Outrora, como se fustigavam a aspergiam as cabeças, agora abluem-se, lambuzam-se e acariciam-se os cus. Afinal, nada de surpreendente, num tempo em que que estes cada vez menos se distinguem das caras. E não precisam que eu vos aponte casos reais, concretos e avulsos disto, pois não?... Afinal, não fiz outra coisa nestes últimos nove anos.
sexta-feira, dezembro 14, 2012
6...
«Recorde-se que é o título nacional do Pantaboxbol que vai estar em disputa. O Pantaboxbol, como é sabido, ten vindo a tornar-se nos últimos tempos, para além da arte marcial suprema, o desporto predilecto das massas. Isso deve-se muito provavelmente ao facto desse desporto reunir em si as regras e possibilidades de todos os desportos. Os atletas podem fazer uso de quaisquer equipamentos de quaisquer outras modalidades, o que confere um garrido e espectacularidade ímpares. Aliás, na escolha do equipamento adequado reside quase sempre o requisito para o bom ou mau sucesso no combate. Tradição, essa, reconheça-se, que já remonta à Ilíada.
Ora,o confronto desta noite não é excepção. Para o primeiro round, adivinham-se já as tácticas, a avaliar pelos arreios. Assim, Gonçalo Lapada, o Tio, parece apostar na estabilidade defensiva, envergando um par de esauis e empunhando um taco de golfe, tamanho 5; já o seu adversário, Tony Pimba, o Pato bravo, alardeia intençõesde maior mobiliade ofensiva, calçando um par de patins em linha e arvorando na mão direita um bastão de basebol. É claro que tudo rodopiará em paradas e contra-paradas, estocadas e contra-estocadas, ataques e defesas, à procura duma brecha para o golpe fatal. O público, adepto e conhecedor, sabe perfeitamente que, a limite, o Tio tudo fará para conseguir aplicar o seu golpe mais mortífero e decisivo, ou seja, o já lendário "estalo"; enquanto, por seu turno, o Pato Bravo manobrará no sentido de tentar uma aberta para desfechar com o seu famigerado e letal "cachucho".
Entretanto, o árbitro olha mais uma vez para a mesa do júri, enquanto os lutadores recebem as últimas instruções dos treinadores e são refrescados e afagados pelos massagistas. Gonçalo, o Tio, depois de complicado embrulho com o equipamento por causa de se ajoelhar, escuta com atenção beata as palavras do padre melífluo que, além de treiná-lo, também o abençoa, confessa, absolve de todos os pecados e entoa, a culminar, um Lhe Deum de vésperas de pancadaria; enquanto o massagista, jurista de profissão e momentanemente acólito, lhe faz chegar a hóstia galvanizante ás dentuças sôfregas. Enquanto, no canto oposto, Tony, o Pato Bravo, memoriza os planos maquiavélicos do seu deputado-treinador, ao mesmo tempo que vai emborcando copázios de tintol incentivante, que o carroceiro massagista (e historiador por conta) lhe atesta e despenha pela goela abaixo. Ambos, no entanto, vão adquirindo lampejos cada vez mais maníacos nos olhos e começam a mal disfarçar os tremores homicidas que lhe sacodem os membros. O Tio acaba mesmo, neste momento de proto-exaltação, por ter um ataque epiléptico dos tesos, o que, dados os esquis á mistura, não deixa de ser assombroso de se ver e também algo contundente para o seu próprio staf. O público, sempre atento, aplaude esta espécie convulsiva de Cata já tradicional neste atleta. O rival, por seu turno, não querendo ficar atrás, esmurra o peito peludo de cidadão atarracado e entoa roncos formidáveis de gorila maguila, aspergindo gafanhotos em todas as direcções e espuma esbranquiçada pelas comissuras ruidosos. A audiência, maravilhada, rompe em olés. Entusiasmado, o Pato Bravo, deriva para o fado vadio, numa variação de chimpanzé alarvemente nostálgico, o que, por osmose eniviesada, causa alguma comoção e lágrimas. E, logo de seguida, novo coro de olés, e "ah fadista!", por toda o pavilhão.
Entrementes, o Tio mordeu a língua à mistura com a hóstia e esperneou tanto que partiu um dos esquis nas costas do seu próprio treinador. Finalmente serenado, após várias cadeiradas na cabeça, recebe suturas e primeiros socorros, bem como uma excomunhão passageira que o presbítero ressentido (e opus dei famoso) não deixa de lhe aplicar, tem que, igualmente, trocar os esquis por uma prancha de surf. O clérigo, esse, fala-lhe agora de longe, com um megafone.
Mas eis que o árbitro convoca os dois lutadores ao centro, para se cumprimentarem e dar início ao combate. Isto acarreta algum embaraço. Por um lado, o Tio, em cima da prancha, não consegue mover-se por falta de ondulação; por outro, o Pato Bravo, desdestro na patinagem, desembesta em cima das rodas e sai estatelado pelo lado oeste, depois de quase atropelar o juís da contenda, Este, apelando à sensatez e ao pragmatismo, opta por dar incício á partida, sem mais protocolos nem anteparos.
A multidão ruge, satisfeita. As claques rompem em tonitruantes mensagens de apoio e estímulo incondicional aos seus meninos, bem como sugestões argutas e exemplos urgentes de ordem táctica e operacional.
O combate, no entanto, apesar de oficialmente iniciado, tarda a iniciar-se. É que se o Pato Bravo teve a felicidade de ver a sua queda amortecida por vários cidadãos embasbacados, teve também a infelicidade conjunta de acertar numa área ocupada pela claque inimiga. A viagem de regresso ao ringue não deixa, pois, de ser atribulada e custa-lhe um certo número de escoriações e saliva a pingar pela cara abaixo. Felizmente, durante todo o tempo, conseguiu manter-se na posse do providencial bastão de basebol, com que, qual pioneiro da selva amazónica, lá foi abrindo caminho pelo matagal agreste. Mal acaba de transpor, a salvo, as cordas, e, legitimameente enraivecido, atira com os patins ao magote perseguidor. Sem mais delongas, com a ajuda do treinador, monta na bicicleta e troca a moca rachada por uma raquete de ténis.
Cá estão portanto, e até que enfim, os dois colossos frente a frente. Usando de idênticas técnicas, um de cima da prancha, o outro do alto da ciclocoisa, começam por insultar-se obscenamente, recorrendo a um vernáculo cabeludo, entre o erudito e o chunga. A fase, claro está, é ainda de estudo recíproco e reconhecimento selvaginoso. Mas há um impropério expedido pelo Tio que parece ter um efeito devastador. O Pato Bravo fica bravíssimo. Desata a guitar apopleticamente: "Agarrem-me! segurem-me, que eu dou cabo dele! Eu mato-o! Eu bebo-lhe o sangue todo!!... Segurem-me, senão eu desgraço-me!" Porém, da outra banda, o outro insiste e reforça. Repete os terríveis vocábulos e acrescenta sardonicamente: "Sim, é melhor segurarem-no, senão ainda lhe dou um estalo!" Esta aparte cai que nem uma bomba. Apesar de já agarrado e acalmado pelo árbitro, pelo deputado, pelo massagista carroceiro e autarca municipal, e por vários espontâneos da assistência, Tony Pimba, o Pato Bravo, explode que nem um vulcão: "Ai, agora não há perdão! Vou massacrá-lo! Vou-lhe dar com este meu cachucho bem no alto dos cornos!! Larguem-me! Deixem-me ir a ele!!" Os outros assim fazem e se o gongo afortunado não soasse para o fim do primeiro assalto, não se sabe bem que hecatombe geral poderia sobrevir.
Novamente nos respectivos cantos, donde curiosamente ainda não saíram (excepto para deambulações marginais à refrega), os dois magníficos desmontam dos veículos e sentam-se nos banquinhos. O Tio recebe sermões e conselhos proficientes do seu treinador, via telemóvel; enquanto, no canto defronte, o Pato Bravo atenta nas arengas do dele, e ingere um whisky duplo. O som do gongo para o segundo assalto vem já encontrá-los prontos para façanhas inéditas e traumatismos múltiplos. Um, o Tio, depois de ponderar o trampolim de ginástica, deixou a prancha de surf - pouco dinãmica, reconheça-se -, e optou por uma sela de montar com a respectiva égua adstrita; na mão esgrime agora uma raquete de squash. O outro, o Pato Bravo, pôs de lado a bicicleta e trepou na moto de água, levando à tiracolo um remo.
O público recrudesce nos incitamentos e cantorias. Que apocalipses nos reservarão os próximos minutos? Guardando o telemóvel, e empunhando novamente o megafone, o prelado Melífluo guia o seu prosélito à carga: "Dá cabo da besta meu filho! Morte ao Satanás, ao herege, ao Judas! Usa o escudo da fé!..." e assim sucessivamente.
Da outra banda, ao volante ufano da sua moto-de-água, o Pato Bravo recorre à sua injúria preferida e, em altos berros, coloca publicamente em dúvida a masculnidade do oponente. Apanhado em cheio, o Tio vacila mas, recapitulando toda a catequese, riposta com o mais desabrido e alucinado dos seus vitupérios: "Socialista!!"
Ambos os gladiadores estão agora deveras maltratados. Não admira, dada a violência dos golpes, que raiaram mesmo a ilegalidade regulamentar. O combate é interrompido, como mandam as regras, embora ninguém saiba bem quais. O árbitro procede a uma contagem de protecção aos dois atletas claramente zonzos. O Tio caiu até do cavalo abaixo (passe o excesso de preciosismo) e o Pato Bravo chora que nem uma madalena prostrado sobre a viatura de recreio. Num auge visceral de fúria, por entre as lágrimas, o segundo dispara intempestivamente, à queima-roupa: "Ai é? Vou chamar o meu padrinho!!" O Tio não se quer ficar e ameaça com o tio dele. Das palavras aos actos é um instante.
Ante os clamores de grande regozijo por parte da turba apreciadora, eufórica com o resvalar da guerra convencional para o cataclismo nuclear, sobem ao ringue o Padrinho da Pato Bravo - o famigerado "Bimbo da Praça"; e o tio do Tio - o tristemente célebre "Filisteu das Berças".»
- in "Antropomaquia Lusitana, ou as Memoráveis Crónicas do Pantaboxbol"
quinta-feira, dezembro 13, 2012
7...
«As manadas existem, mas não existem só as manadas. Mais precisamente, o facto de existirem chusmas lemmings não significa necessariamente que toda a humanidade possa ser entendida, enfileirada e manobrada feita uma chusma lemming; como, de certa forma, o facto de existirem indivíduos não constitui prova suficiente de que todos os homens sejam indivíduos. A experiência tem demonstrado precisamente o contrário destas generalizações aberrantes, mas normatizadas e cíclicas. Por outro lado, sabe-se tanto da lógica ou da necessidade da existência do indivíduo, como da lógica ou razão de ser da manada. De resto, apenas se comprova a existência de indivíduos exactamente no fenómeno oposto de existirem manadas: é que, decerto. não é indivíduos aquilo que constitui as manadas. A ideia peregrina de acabar com os conflitos entre manadas, convertendo tudo na mesma e acéfala manada global esquece esse pormenor, aparentemente insignificante mas deveras incómodo, de existirem os indivíduos. Quanto mais opressiva for a escuridão, mais intenso resultará o brilho da vela solitária. Como a massa Blobglob reagirá, a limite, àquilo que não consiga digerir e fundir, é ainda uma incógnita superficial. Mas, no fundo, adivinha-se...
Além do mais, e voltando atrás, a homogeneização germina e viceja no Terror: torna-se possível, senão necessária e indubitável, a um homem-aterrado, que já não trepa aos olimpos nem mergulha nos abismos, que já não sonha nem pensa para lá da superfície, quer enquanto espaço, quer enquanto tempo. Um hominídeo pragmático, utilitarista, com os pés bem assentes na terra. Um homem aparentemente em correria perpétua, em transportes de libertação, mas, na verdade, ancorado, enjaulado, parqueado, com toda a liberdade para correr dentro dos limites do parque. Cada vez mais a correria humana é uma correria de hamster. Ou de Sísifo. Um correria circuitante, recorrente, erosiva; uma tournée aos quatro cantos do seu presídio. Um Tour, ou melhor, um turismo do seu próprio inferno. Talvez seja essa a forma de o climatizar: se antes se encontrava degredado nele, doravante está só de visita, de passagem, de férias. Ou não fosse a actualidade a exibição confrangedora dum homem que tirou férias da sua própria essência.»
in "O Tratado da Besta"
«A mesma força que empurra o homem para a Ordem, catapulta-o contra a Desordem! E, o diabo se roa todo!, não é uma questão numérica: milhares de abortos não fazem uma criança e, muito menos, um homem que seja! Por isso mesmo, este, não tem que estar à espera que milhões de bestas cavalgaduras e bestas cavaleiras se dignem conceder-lhe o benefício da sua simpatia ou assentimento; chegada a hora, aceso o fogo, irrompe, nasce, ergue-se acima da lama, cumpre a força que o determina, a coragem que o incendeia, sem olhar para trás e sem esperar jamais que a lama o acompanhe ou a baixeza o eleve e exalte! O Homem não se ergue da bestialidade para a conduzir: levanta-se contra ela, como a estrela se acende contra as trevas do céu. É só um pontinho minúsculo e longínquo no meio dum infinito negro e vazio, mas é esse pequeno nada que brilha e guia o ser! Essa é a prova de fogo, a têmpera vulcânica que forja o gume olímpico e o aço inquebrável. Poisai a máscara, ó fariseus melífluos: É a mesma bestialidade cega que ergue a cruz para Cristo e a forca para o pirata. No fim, ambos sabem que estão, como sempre estiveram, sozinhos; que ninguém os segue na ascensão que conta, no momento da verdade, porque a humanidade não se imita, nem se aprende, nem se ensina: é-se, vive-se, de pé, sem medo nem vaidade. Não, pelos tomates de Aquiles!, o homem não se subleva: ergue-se; mesmo sabendo, especialmente sabendo, que é para caminhar para o cadafalso, seja esta a cruz do Nazareno, seja a forca do pirata! Porque diante de Deus, aos olhos perscutantes do Cosmos que tudo vê e julga eternamente, vale mais uma morte de homem que uma vida inteira de réptil! A morte dum homem é o preço pela sua vida; a vida do réptil em figura de gente é uma vida tão desprezível e insignificante que nem preço tem!...»
- Retirado do "Sermão de Não-São Iceberg aos Tubarões" (Capítulo IV duma determinada obra que me compete acabar antes que este rilhafoles acabe comigo).
terça-feira, dezembro 11, 2012
Lisbon Sunset
O tempo de escrever para o boneco e falar para as paredes está a chegar ao fim. Outro tempo, um tempo mais antigo e demiúrgico prevalece: o tempo de voltar a escrever para o baú. Gastei nove anos da minha vida a falar aos presentes. Não me poderão acusar nunca de não ter pago tributo. De não ter descido à polis. Resta-me agora sacudir o pó das sandálias e, se voz alguma tenho ou pena me resta, ir falar aos vindouros. Eu e, mais do que eu, os antepassados que em mim reverberam.
"Esperos", no grego, significa isso mesmo: entardecer, poente, oeste. E, todavia, é nesse entardecer, nesse findar da luz que nasce a esperança - a espera pela manhã de um novo dia. Por isso se diz (digo-o eu, pelo menos) que a esperança, na etimologia tanto quanto na vida, é filha do crepúsculo. É assim, é cíclico, eterno. imune e inexorável. Desde o princípio dos tempos... Se é que no Tempo o princípio e o fim se destrinçam.
sábado, dezembro 01, 2012
O Mostrengo (r)
Escrevi-o aqui, em janeiro de 2005, e está mais actual que nunca.
...//...
O MOSTRENGO
«O mostrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar;
à roda da nau voou três vezes
voou três vezes a chiar,
E disse:" quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo
mus tectos negros do fim do mundo?»
E o o homem do leme disse, tremendo:
»El-Rei D.João Segundo!"
E o o homem do leme disse, tremendo:
»El-Rei D.João Segundo!"
- Fernando Pessoa, "Mensagem"
A figura do mostrengo é eloquente. Ainda hoje brame, para quem o quiser ouvir. Ainda hoje apavora quem o escuta e, pelo zoar do seu estrugir desumano, o imagina envolto em fiapos de tormento e cortinas de pesadelo.
Em Quinhentos, nesse tempo de coragem, de Audácia, mais que de ganância, os mares ressumbravam, infestados. Ao longe, nos oceanos, que iam vomitar-se lugubremente no abismo tartárico, senão na goela insaciável do próprio inferno em chamas, uivavam abominações medonhas, habitavam pavores inomináveis. Sob o manto vertiginoso das águas, moravam braços descomunais, tentáculos mortíferos, mandíbulas escancaradas prontas a devorar, a varrer e a despedaçar, sem dó nem piedade, a casca de noz e o insecto que se atrevessem, que experimentassem a viagem, que ousassem sequer o pensamento. Enfim, emboscados, sempre à espreita, famintos de dor e carne humana, cardumes de horrores patrulhavam os mares ignotos. Para quem escondia os olhos –como hoje ainda esconde -, o mostrengo era tudo isso. Escutava-se e dava vontade de nunca ter nascido.
Mas, na verdade, o mostrengo não habitava os mares: rodopiava fantasmagórico na alma dos homens. Tolhia-lhes o ânimo e quebrantava-lhes a força. E chiava –oh, com que tenebror ele chiava! - a enregelar o coração e a liquefazer a espinha. Que até os dentes crepitavam, os cabelos encaneciam e o chão nos chamava, em refúgio, para o mais humilde e obscuro dos seus orifícios.
Só que havia uma semente - uma centelha de odisseia - que Ulisses deixara por estas bandas. E uma semente pode muito. Mais que todos os medos. Mais que todas as filosofias, literaturas e ciências! Mais que a treva e os abismos. Porque uma semente sabe o caminho do céu. Rompe a lama e as angústias, fende os ares e as neblinas e estende os braços, feita árvore, a abraçar a luz e o firmamento. A saudar o sol e as estrelas. A respirar o sopro divino que dá vida ao mundo.
As sementes são a lenha dos sonhos. Os portugueses de Quinhentos foram a carne dessa semente.
E do chão agreste, triste, sujo e escuro, onde o medo os agrilhoava e mantinha encarcerados, rasgaram horizontes e elevaram-se para uma luz que os guiava a sul de todos os crepúsculos, à procura de edens e fontes sagradas, em busca de tesouros, de aventuras, de terras exóticas, mas, acima de tudo, ou como estrela guia para tudo isso, do mais bem-aventurado e exótico de todos os tesouros: a verdade.
Foram banhar-se no sonho e no abismo. Foram para o mar enfrentar o mostrengo que levavam na alma.
Guardamos essa memória nas veias e sabemos que não foi fácil. Sabemos que não foi uma coreografia sonoplástica e narcótica, como os filmes de hollywood. Que não foi insípido e inodoro. Que o cheiro a merda e sangue, a escorbuto e malária, a desespero e desinteria se misturaram muitas vezes, quase sempre, com o perfume da maresia, que entra pelos pulmões e descongestiona a alma. Que as lágrimas das mulheres salgaram o cais e as maldições dos velhos crismaram o vento. Que isso toldou o horizonte e açulou o mostrengo que de dentro de nós –nós naquele tempo – assombrava o mar.
Mas nós –nós naquele tempo – nós sem automóveis, televisões, figoríficos, nós sem electricidade nem água canalizada, nós sem subsídios nem peritos de pintelhices a granel, nós sem doutores da mula russa a parirem reformas de empreitada, nós sem formação profissional nem confortos, sem sindicato nem segurança social, nós sem computadores nem cinemas, nós sem petróleo nem diamantes, fomos capazes de uma obra colossal, fomos capazes dum milagre, a semente fez-se árvore.
Nós –naquele tempo muito mais magros, destituídos, ainda mais indigentes e pequenos que hoje – fomos capazes. Porque é que hoje não somos? Não somos capazes porque nem sequer somos nós. Entre aquele tempo e este tempo interpôs-se um limbo onde vagamos quais sombras penadas. Sobra-nos a matéria, o esterco que nos amortalha; sobram-nos bugigangas em catadupa, adubos, pesticidas e cuidados de flores de estufa, mas falta-nos o essencial: a vontade, esse gume afiado do espírito. Falta-nos aquele que a vaca da Isabel Católica, ao saber da sua morte, disse: “Morreu o Homem”
Mas não apenas o homem-rei, símbolo de um povo, da união sagrada entre terra, mar e gente, e duma vontade colectiva; também, e sobretudo, o Homem dentro de todos nós, o homem que sonha, o homem que navega, o homem que acredita.
Porque em vez dele, a velar o seu sono forçado, soltando peçonha e susto, reina o mostrengo. Adeja, rodopia e chia sem parar. Entoa a sua umbrífera lengalenda, que cobre, como uma névoa tóxica, venenosa, o sol e as estrelas, e entranha-se nos ossos, nos músculos, nas mentes, a roubar-nos toda a coragem, a decantar-nos toda a esperança.
“Sois fracos!”, chia ele, escarninho. “Sois débeis! Sois poucos! Sois pobres! Sois atrasados! Sois obsoletos! Sois a escória da Europa! Sois vis! Sois preguiçosos! Sois desgovernados, desorganizados, viciados, dependentes, individados, mesquinhos, intriguistas, fala-baratos, quezilentos, alarves, pacóvios...sois o desespero de Cristo!...” As suas asas negras esvoaçam por cima de nós, sombrias e, à noite –nesta infinita noite em que se tornou a nossa vida-, pressentimos que ele poisa, de colmilhos afiados, para nos vampirizar os sonhos. Mas mesmo nessa pausa hedionda, a sua cantilena exasperante não cessa: repercute em ecos descarnados, lutuosos, nas abóbadas do nosso pavor.
Mas que pensáveis vós que ele, esse mesmo mostrengo chiante, uivava há quinhentos anos atrás? -A mesmíssima gosma paralizante, a gémea baba de aranha dissolvente. Sem tirar nem pôr.
E os homens - daquele tempo em que ainda havia homens - deixaram para trás as lágrimas das mulheres, as maldições dos velhos, o espanto maravilhado nos olhos das crianças e saíram mar a fora, levando todo o medo consigo, e foram enfrentar a ululante avantesma lá onde o mundo acaba e o abismo começa. Saíram as naus da barra e o mostrengo infame ia por cima delas, como uma sombra de Outro-Mundo.
Choraram as mulheres porque viam ambos, praguejaram os velhos porque viam a abominação, maravilharam-se as crianças porque eram seus os sonhos que iam dentro dos homens, com a forma de mastros e velas.
Os homens não voltaram. Só o mostrengo voltou.
A figura do mostrengo é eloquente. Ainda hoje brame, para quem o quiser ouvir. Ainda hoje apavora quem o escuta e, pelo zoar do seu estrugir desumano, o imagina envolto em fiapos de tormento e cortinas de pesadelo.
Em Quinhentos, nesse tempo de coragem, de Audácia, mais que de ganância, os mares ressumbravam, infestados. Ao longe, nos oceanos, que iam vomitar-se lugubremente no abismo tartárico, senão na goela insaciável do próprio inferno em chamas, uivavam abominações medonhas, habitavam pavores inomináveis. Sob o manto vertiginoso das águas, moravam braços descomunais, tentáculos mortíferos, mandíbulas escancaradas prontas a devorar, a varrer e a despedaçar, sem dó nem piedade, a casca de noz e o insecto que se atrevessem, que experimentassem a viagem, que ousassem sequer o pensamento. Enfim, emboscados, sempre à espreita, famintos de dor e carne humana, cardumes de horrores patrulhavam os mares ignotos. Para quem escondia os olhos –como hoje ainda esconde -, o mostrengo era tudo isso. Escutava-se e dava vontade de nunca ter nascido.
Mas, na verdade, o mostrengo não habitava os mares: rodopiava fantasmagórico na alma dos homens. Tolhia-lhes o ânimo e quebrantava-lhes a força. E chiava –oh, com que tenebror ele chiava! - a enregelar o coração e a liquefazer a espinha. Que até os dentes crepitavam, os cabelos encaneciam e o chão nos chamava, em refúgio, para o mais humilde e obscuro dos seus orifícios.
Só que havia uma semente - uma centelha de odisseia - que Ulisses deixara por estas bandas. E uma semente pode muito. Mais que todos os medos. Mais que todas as filosofias, literaturas e ciências! Mais que a treva e os abismos. Porque uma semente sabe o caminho do céu. Rompe a lama e as angústias, fende os ares e as neblinas e estende os braços, feita árvore, a abraçar a luz e o firmamento. A saudar o sol e as estrelas. A respirar o sopro divino que dá vida ao mundo.
As sementes são a lenha dos sonhos. Os portugueses de Quinhentos foram a carne dessa semente.
E do chão agreste, triste, sujo e escuro, onde o medo os agrilhoava e mantinha encarcerados, rasgaram horizontes e elevaram-se para uma luz que os guiava a sul de todos os crepúsculos, à procura de edens e fontes sagradas, em busca de tesouros, de aventuras, de terras exóticas, mas, acima de tudo, ou como estrela guia para tudo isso, do mais bem-aventurado e exótico de todos os tesouros: a verdade.
Foram banhar-se no sonho e no abismo. Foram para o mar enfrentar o mostrengo que levavam na alma.
Guardamos essa memória nas veias e sabemos que não foi fácil. Sabemos que não foi uma coreografia sonoplástica e narcótica, como os filmes de hollywood. Que não foi insípido e inodoro. Que o cheiro a merda e sangue, a escorbuto e malária, a desespero e desinteria se misturaram muitas vezes, quase sempre, com o perfume da maresia, que entra pelos pulmões e descongestiona a alma. Que as lágrimas das mulheres salgaram o cais e as maldições dos velhos crismaram o vento. Que isso toldou o horizonte e açulou o mostrengo que de dentro de nós –nós naquele tempo – assombrava o mar.
Mas nós –nós naquele tempo – nós sem automóveis, televisões, figoríficos, nós sem electricidade nem água canalizada, nós sem subsídios nem peritos de pintelhices a granel, nós sem doutores da mula russa a parirem reformas de empreitada, nós sem formação profissional nem confortos, sem sindicato nem segurança social, nós sem computadores nem cinemas, nós sem petróleo nem diamantes, fomos capazes de uma obra colossal, fomos capazes dum milagre, a semente fez-se árvore.
Nós –naquele tempo muito mais magros, destituídos, ainda mais indigentes e pequenos que hoje – fomos capazes. Porque é que hoje não somos? Não somos capazes porque nem sequer somos nós. Entre aquele tempo e este tempo interpôs-se um limbo onde vagamos quais sombras penadas. Sobra-nos a matéria, o esterco que nos amortalha; sobram-nos bugigangas em catadupa, adubos, pesticidas e cuidados de flores de estufa, mas falta-nos o essencial: a vontade, esse gume afiado do espírito. Falta-nos aquele que a vaca da Isabel Católica, ao saber da sua morte, disse: “Morreu o Homem”
Mas não apenas o homem-rei, símbolo de um povo, da união sagrada entre terra, mar e gente, e duma vontade colectiva; também, e sobretudo, o Homem dentro de todos nós, o homem que sonha, o homem que navega, o homem que acredita.
Porque em vez dele, a velar o seu sono forçado, soltando peçonha e susto, reina o mostrengo. Adeja, rodopia e chia sem parar. Entoa a sua umbrífera lengalenda, que cobre, como uma névoa tóxica, venenosa, o sol e as estrelas, e entranha-se nos ossos, nos músculos, nas mentes, a roubar-nos toda a coragem, a decantar-nos toda a esperança.
“Sois fracos!”, chia ele, escarninho. “Sois débeis! Sois poucos! Sois pobres! Sois atrasados! Sois obsoletos! Sois a escória da Europa! Sois vis! Sois preguiçosos! Sois desgovernados, desorganizados, viciados, dependentes, individados, mesquinhos, intriguistas, fala-baratos, quezilentos, alarves, pacóvios...sois o desespero de Cristo!...” As suas asas negras esvoaçam por cima de nós, sombrias e, à noite –nesta infinita noite em que se tornou a nossa vida-, pressentimos que ele poisa, de colmilhos afiados, para nos vampirizar os sonhos. Mas mesmo nessa pausa hedionda, a sua cantilena exasperante não cessa: repercute em ecos descarnados, lutuosos, nas abóbadas do nosso pavor.
Mas que pensáveis vós que ele, esse mesmo mostrengo chiante, uivava há quinhentos anos atrás? -A mesmíssima gosma paralizante, a gémea baba de aranha dissolvente. Sem tirar nem pôr.
E os homens - daquele tempo em que ainda havia homens - deixaram para trás as lágrimas das mulheres, as maldições dos velhos, o espanto maravilhado nos olhos das crianças e saíram mar a fora, levando todo o medo consigo, e foram enfrentar a ululante avantesma lá onde o mundo acaba e o abismo começa. Saíram as naus da barra e o mostrengo infame ia por cima delas, como uma sombra de Outro-Mundo.
Choraram as mulheres porque viam ambos, praguejaram os velhos porque viam a abominação, maravilharam-se as crianças porque eram seus os sonhos que iam dentro dos homens, com a forma de mastros e velas.
Os homens não voltaram. Só o mostrengo voltou.
«O mostrengo que está pra cá do mar
Na noite de breu continu’a voar;
Por dentro da alma voa mil vezes
Voa mil vezes a agoirar,
E diz: “quem persiste ainda a sonhar
Com algo que não meu trono execrando
com céus acima deste pó imundo?
E a nau sem leme geme, sangrando :
Na noite de breu continu’a voar;
Por dentro da alma voa mil vezes
Voa mil vezes a agoirar,
E diz: “quem persiste ainda a sonhar
Com algo que não meu trono execrando
com céus acima deste pó imundo?
E a nau sem leme geme, sangrando :
”Quem há-de vingar D. João Segundo?...”
sexta-feira, novembro 30, 2012
Fórum Descolhonização - 5. Autópsia duma Golpada
«Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.
Na perspectiva de então havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime.
Quanto à descolonização havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o exército português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas. Uma foi que o PCP, infiltrado no exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar. Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários». E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas dos que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram puramente criminosas.
Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve. O outro problema era da liquidação do regime deposto. Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo, que segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.
Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outras talvez piores os vieram desculpar.
Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente; as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril.
Havia, também, um malefício imputado ao antigo regímen, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados. Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regímen, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os homens não substituíram os mesmos; a um regímen onopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista». Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior; mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquos, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão, pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio honesto de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.
Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encubria uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.»
- António José Saraiva
Nós não temos resgate económico que nos salve enquanto não nos resgatarmos moralmente. O resto nem sequer é conversa: é grunhido.
quinta-feira, novembro 29, 2012
Fórum Descolhonização - 4. As Estrepitosas Ventosidades Históricas
Abril de 1961
«Todo o país está vergastado por um temporalpolítico que deve ser raro na sua história. Compreendem-se agora melhor os tumultos, os morticínios, o terrorismo que lavram no Norte de Angola desde há um mês. Há um propósito internacional claro, delioberado, de fazer ajoelhar o governo de Lisboa e de vergar, pelo medo e pelo desvairo, o povo português. Se esta pressão se mantém, e apesar do gesto de Oliveira Salazar, por quanto tempo será suportável esta atmosfera? firmeza, tenacidade, espírito de sacrifício e luta são coisas que desconhecemos entre nós.»
Fevereiro de 1963.
«Registo palavras de Salazar, conversando hoje sobre políticaexterna: "Os americanos, ou conseguem matar-me, oueu morro, Caso contrário, terão de lutar anos parac conseguirem deitar-me abaixo.»
Junho de 1963.
«De manhã, soube-se a notícia da eleição do novo Papa: é o Cardeal Montini, que toma o nome de Paulo VI. (...) José Nosolini veio célere com informações: conheceu Monsehor Montini em Roma, é homem muito inteligente, considera-o um progressista com a obsessão das reformas, pode tentar conduzir o Concílio num pendor esquerdista. Que mais teremos de enfrentar?»
Setembro de 1965
«Uma última noite em Bona antes do avião para Frankfurt e Lisboa. Encontro de novo num jantar privado o homem da indústria alemã, Fritz berg: "Em África, vocês, a Rodésia e a África do Sul já ganharam a partida. Sobretudo vocês, portugueses. Agora é uma questão de jeito e paciência". Pergunto aos meus botões: acaso temos nós paciência? Por outras palavras: temos nós visão e vontade?»
Novembro de 1966.
«Marcelo Caetano terá dito ao Rebelo de Sousa, que o relatou a Salazar, que se considerava um salazarista aposentado, e que, embora salazarista, discordava de quase tudo o que se tem feito. Comenta Salazar: "Estou farto de críticas e discordâncias que não apresentem ao mesmo tempo sugestões concretas sobre o que se deveria fazer para substituir o que está mal. Dizem por aí que os ministros são umas bestas, que eu não compreendo já nada e estou velho, que só faço disparates, que sou tonto em pensar que nos deixam ficar em África; mas ninguém me diz o que se deve fazer em vez do que se tem feito. Estou pronto a seguir outra ideia se me disserem qual, e se me provarem que é melhor para os interesses nacionais do que aquela que temos seguindo". havia amargura clara no tom de Salazar, e como que resignação perente um destino; e muita calma e tranquilidade. "E acredite", continuou, "que há pessoas, altamente colocadas e que são pessoas nossas, que defendem o ponto de vista de que o melhor é entregar o Ultramar, não acreditando que isso equivale a entregar Angola e Moçambique às forças imperiais»:
É um dos mitos mentirológicos mais roncantes: Que Portugal tinha que sair de África porque os ventos da história o obrigavam. Porque os outros já tinham saído. Porque as potências frito cozido e coiso e tal.
Bem, se os países andam ao sabor das ventosidades históricas (que significam algo entre nada e coisa nenhuma), então Portugal nunca teria, em primeiro lugar, saído da Europa, nem ido a lado nenhum. Os outros também não teriam ido, atrás de Portugal. pelo que todos estariam dispensados, mais tarde, dos cuidados e trabalheiras do retorno.
Ora, se Portugal não foi para lá atrás dos outros porque haveria agora de regressar de lá atrás deles? Hoje, temos condições para aquilatar do resultado das políticas "maria vai com as outras ou maria quer ser com as outras", e do buraco descomunal onde conduzem. Aqueles que não querem ver, a realidade, cada vez mais atroz, há-de acabar por obrigá-los. E depois, aquilo que não fazemos em liberdade e na defesa dela, acabamos por ter que fazer forçados - pela necessidade.
Quando fomos grandes na história foi precisamente quando não andámos atrás dos outros, mas à frente. E se algo sempre nos distinguiu, no auge da nossa epopeia marítima, foi o ser capaz de navegar à bolina, ou seja, de singrar contra o vento. O vento da realidade e dos mares, o vento concreto e imenso, e não apenas as ventosidades estrepitosas dos títeres do instante a ferver. Mas claro, para qualquer liliputo embasbacado, um peido de gigante faz as vezes dum ciclone devastador.
terça-feira, novembro 27, 2012
Descolhonização - 3. A Pesada herança
«A cana sacarina e o açúcar foram, afinal, a grande fonte de financiamento dos Descobrimentos, pelo menos até se dobrar o Cabo da Boa Esperança.»
- José Mendes Ferrão, "A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses"
Antes de falar do mosaico étnico vastíssimo que constitui o Ultramar Português, falemos da alimentação desses povos, à altura da Guerra do Ultramar (ou Colonial, para os amigos do alheio); e a mesma, que, de resto, se mantém até hoje. É essencial para confrontar com o mito que andámos lá quinhentos anos a pilhar e a molestar os bons selvagens deste mundo.
Em Angola, as duas bases da alimentação são, a centro/sul, o milho; a centro/norte, a mandioca. Quem já não ouviu falar no fungi ou no pirão? Coisas indígenas? Negativo. O cultivo de ambos, mandioca e milho, foi introduzido pelos portugueses, que para lá levaram as plantas, nas suas naus, vindas da América do Sul (Brasil, pois). O café? Foram os portugueses. A cana-do-açúcar. idem. A manga, o ananás, o tomateiro, a batata doce, a batata, os citrinos, o feijão, o coqueiro, o caju, o abacate, o cacau, a papaia/mamão, a fruta-pinha, a bananeira, o tabaco, o amendoim, também, imagine-se. Foram os portugueses. Que gente malfazeja! A famosa rainha Ginga, símbolo da história africana da actual Angola de pechisbeque e heroína nacional dum país da tanga era a feroz rainha dos Jagos. Uns tipos bestialmente autênticos, que grassavam ali pelas áreas de Malange e abominavam saladas: eram canibais. E os maiores caçadores e traficantes de escravos da região. Mais um caso típico da opressão hedionda dos portugueses: obrigarem aqueles bons selvagens ao vegetarianismo! As criancinhas da escola rainha Ginga em Luanda, ou os transeuntes da Avenida Rainha Ginga na mesma urbe, regozijam-se hoje com a redenção fetiche do seu heróico passado, em estado puro, não poluído nem contaminado pelos tugas abomináveis.
Mas mesmo as galinhas, os porcos e as cabras, enfim, os chamados animais domésticos, suspeito que não apareceram lá por geração espontãnea... Hum, até os cavalos dos Cuanhamas, não sei não.
Na Guiné, refiro apenas as duas principais fontes de alimentação e comércio: o arroz e o caju. Imaginem quem quem lhes forneceu a droguinha...
Em Moçambique... O chá, calculem, o chá! Até o chá!... Miseráveis traficantes. Mais toda aquela panóplia comum a Angola e à Guiné!... Que infâmia!...
Afinal, diz-me o que comes, dir-te-ei donde vens. Ainda hoje, nas capitais das nossas ex-províncias ultramarinas, as elites locais, se as quereis ver felizes e contentes, é apresentar-lhes bacalhau e sardinha assada. Imaginem quais são os restaurantes (e ementas) mais requisitados lá nas neo-nacinhas efémeras: portugueses, calculem.
Independentes? Sim, sim... Continuam colonizados pela barriga..
Fórum Descolhonização - 2. Resistência
A trecho que se segue, como outros subsequentes, pertence a um escrito dum jornalista americano, em visita a Angola em 1966. Antes tinha estado no Katanga (leste do Zaire) e conhecia bem África.
«Primeiramente, penso que o português, ao contráiro de todos os outros Europeus, vive em África da mesma maneira como vivia em Portugal. Se veio a Angola, com a ideia de uma vida melhor, o seu carácter modesto, a sua frugalidade, impediram-no de fazer fortuna. O plantador inglês não se contenta com uma vida medíocre e nunca lhe passaria pela cabeça trabalhar a terra com as suas próprias mãos, como o fazem muitas vezes os Portugueses. Os Belgas, os Franceses, os Ingleses, se não enriquecem todos adquirem pelo menos um certo bem-estar e mesmo economias suficientes para alguns meses de férias luxuosas naEuropa. O Português, em África, desempenha todos os ofícios; é pedreiro, trabalhador agrícola, criado de café, motorista de táxi. vendedor de lotaria até. Nas ruas, crianças portuguesas, ao lado de negros, engraxam os sapatos dos transeuntes ou vendem sorvetes, jornais e artigos de retrosaria. Percorri a África em todos os sentidos mas nunca, em parte alguma, encontrei espectáculo igual. Os Portugueses não têm nada da atitude de grande senhor dos Britãnicos; sem qualquer arrogãncia, contemtam-se com modesto salário que lhes permite viver. (...)
(...)penso também que os Portugueses, quando da revolta de 1961, pegaram em armas não só para defender essa vida modesta mas também por não saberem para onde ir. Deixar Angola, de barco ou de avião, voltar para Portugal, custa dinheiro e este dinheiro, a maioria não o possuía. A explicação não agradará certamente ao amor próprio dos Portugueses, mas continuo porém a acreditar que o seu melhor trunfo é justamente essa modéstia, que os impede de explorar para enriquecer. Em geral, vieram para a África na esperança de uma vida melhor, mas que, na realidade, acaba por ser sempre sem pretensões, simples e frugal.
Enfim, se eles se bateram em Angola, antes mesmo que a Metrópole tivesse tomado uma decisão, é também porque a maioria ignorava muitas coisas, tanto no plano internacional como no plano local. Por falta de informação, não viram provavelmente que estavam a dois passos da catástrofe, que a pressão exterior era considerável e que os negros os haviam surpreendido desarmados. (...)
Julgo que a resistência teimosa no Norte, esse combate desesperado e quase anacrónico, desconcertou os terroristas, revelando-lhes ao mesmo tempo o carácter português. Entre os Negros, encontravam-se muitos exilados que, no Congo belga, haviam assistido ao fácil despegar dos Brancos, à sua resignação. Tinham visto os Belgas abandonar os seus estabelecimentos e lares, senão ao primeiro tiro, pelo menos após alguns assassinatos e violações. Quando, em Angola, defrontaram estes Brancos que, como espingardas de caça ou catanas, defendiam uma cubata como se fosse a sua própria casa, perderam a coragem. Os terroristas tiveram que resignar-se a admitir que os Poprtugueses não eram iguais aos outros Brancos, visto que, mortos ou vivos, queriam permanecer em África.»
- in "Angola, Chave de África", de Mugur Valahu
«Durante um mês, Portugal e Angola pareceram paralisados e incapazes de agir. Do mesmo modo, os insurrectos foram incapazes de sustentar o compromisso militar. Formaram-se milícias civis e armaram-se africanos leais. Foi esta miscelânea de defesa civil-militar e a sua actividade frenática que refreou o ímpeto da UPA.»
- Jonh P. Cann , "Contra-Insurreição em África"
Salazar esperou um mês, prudentemente, para ver o que os portugueses no terreno decidiam. Como eles decidiram resistir e ficar, nas circunstâncias horríveis em que outros povos haviam desistido, Salazar fez o que lhe competia: decidiu apoiá-los com tudo o que tinha. Militar e diplomaticamente. Em linguagem simples e militar: não borregou.
segunda-feira, novembro 26, 2012
Narcisocracia (r)
Somos uma nacinha em banho-maria. A derreter em lume brando. Mergulhados numa democracia a todos os títulos engenhosa e notável: temos governos que desgovernam e oposições que se desopõem. Que regime, afinal, será este? Se é democracia, escapa a todos os paradigmas conhecidos: não é popular, nem liberal. Muito menos grega. A chamar-lhe alguma coisa, fora o palavrão que geralmente merece, teremos, por simples amor à realidade, que chamar-lhe democracia autista ou narcisocracia. Um regime em que os governantes se governam e os opositores não se opõem ao governo porque estão muito ocupados a oporem-se uns aos outros. Quer dizer, o governo governa-se a si mesmo e as oposições opõem-se a si próprias.
E o mais espantoso é que em redor deste colossal vulcão de coisa nenhuma, alucinados com a mais diversa ordem de micro-roedores enfezados que a montanha, a cada minuto - pelos interstícios do vácuo - ameaça parir, zumbem e abivacam, todos os dias, sem pausa nem fastio, enxames de jornalistas, comentaristas e blogadeiros, cardumes de politólogos, sociólogos, psicanalhistas e outras excelsas tricotadeiras da palha, cada qual mais buliçosa e compenetrada, na análise convulsiva do Chico, do Manel (agora também Manela) e do Francisco, traduzidos directamente do angolinglês das respectivas eructações, babas e demais decantações, estalactites e alambicagens do momento. Mais que espantoso, é fantástico!
Dir-me-ão que gastar o dia de roda de futebóis é estúpido. Sem dúvida. Se bem que gastá-lo de volta deste circo de abortos, toucinhos e carcaças não é apenas estúpido: é macabro, imundo, necrófago... e grotesco.
domingo, novembro 25, 2012
O 25 de Nevoembro
«O Thermidor de Novembro trouxe de volta os brandos costumes; a extrema-esquerda pagou algumas das contas; o PC ficou, mais discreto, mas onde estava; Ramalho eanes foi o Bonaparte de um Mário Soares girondino, que simbolizaria mais que ninguém, a transição e a III República; Cavaco Silva veio depois desta história (a que já não pertence), para arrumar as contas e os cantos à casa. E foi ficando até Janeiro de 1995...»
- Jaime Nogueira Pinto, "O Fim do Estado Novo e as Origens do 25 de Abril" (Prefácio à 2ª edição)
O PREC durou enquanto tinha que durar. E o 25 de Novembro aconteceu, tarde, mas quando tinha que acontecer. O PC, a troco da impunidade negociada pelo não obstaculizar os acontecimentos, pode retirar-se para uma plácida aposentação parlamentar. Afinal, a sua missão estava concluída. Desde 11 de Novembro que já não havia mais motivo para agitação, efervescência, nem tumultos. Pois; fora declarada a independência de Angola.
Os "brandos costumes", como diz, e bem, Jaime Nogueira Pinto, regressaram de facto. A extrema-esquerda desmobilizou e aderiu à pastagem nos partidos do "arco do poder". O PPD pôde largar o marxismo. O PS tratou de meter sossegadamente o socialismo na gaveta. E o intrépido Eanes tratou de montar plantão a qualquer recaída, digamos assim, menos branda. Sá Carneiro e a espinha dorsal da AD foram pelos ares, curiosamente, no auge duma campanha em que apoiavam um candidato descentrado. Contra Eanes.
Chegou pois tarde demais, o 25 de Novembro, e terminou cedo demais. A ideia entre os "Comandos" não era exactamente assim tão branda. Pouco tempo depois, Jaime Neves teve a recompensa pelo resgate nacinhal: a título de lhe imporem o curso de generais (subida honra que ele mandou enfiar num certo sítio ao então Garcia dos Santos, CEMGFA (e outra das figurinhas do brando presépio subsequente), foi afastado do comando do regimento perigoso e mandado para a prateleira, digo, reforma. O próprio Regimento de Comandos, antro suspeito e reaccionário, foi também ele sendo vilipendiado e denegrido por toda a espécie de imprensa gaiteira, até à sua extinção nos anos 90.
E assim, todos, com a diluição europédica pelo meio, vivemos muito felizes e contentes até à bancarrota actual. A parede no fim do beco. Ou a luz do comboio ao fundo do túnel. É só escolher consoante a preferência for de índole mais estática ou dinâmica.Ou pensavam que da árvore da traição frutificava o quê, cornucópias? Bem, frutificar, até frutificam, mas não são para todos. É só para quem tem a agilidade e afoiteza de trepar.
Fórum Descolhonização - 1. A antestória
Recordo um postal, intitulado a "peste Vermelha". que reflecte uma das pragas que alastrou pelo mundo e influiu fortemente em determinados fenómenos. A nossa descolhonização foi um deles.
«No rescaldo amargo da Primeira Grande Guerra, Max Hoffmann, para alguns o mais brilhante general alemão da época, carpia significativamente nas suas memórias :
«Transportando Lenine para a Rússia, animava-nos o firme propósito de inocular a peste no exército russo; mas não pensámos em como esta praga contaminaria também as nossas tropas, arruinando-as.»
Isto vem de encontro à ideia que, pessoalmente, mantenho do comunismo: uma espécie de sida mental. Uma sida, aliás, em múltiplos sentidos: homicida, genocida, logocida, patricida, historicida, mnemocida, democida e infanticida, especialmente. Foi coisa peganhenta que sempre me causou uma natural e visceral repugnância, o comunismo. Aquilo tresanda a milhas a seita religiosa, daquelas particularmente fanáticas. Eu diria até que o comunismo me lembra invariavelmente aquele filme macabro (não me recordo se do Capra, se de quem) em que um cangalheiro à beira da falência tratava de ir pessoalmente, durante a noite, angariar clientela. Que é como quem diz, ia dar uma mãozinha à mão invisível. Em analogia, o comunismo afigura-se-me como a agência nocturna e tenebrosa do capitalismo. É o seu golem, não duvidem. A sua máquina sinistra, terraplenante. A patorra colectivista que prepara e surriba o terreno para a mão colectora. E um raio me caia já aqui em cima se me equivoco por um milímetro que seja neste diagnóstico... Estão a ver? Não caiu. Ergo...
O caso de Lenine, ademais, é flagrante e paradigmático. Reflecte o método da aranha-lobo: o envenamento corolado de liquefacção como método de conquista. Ou, melhor dizendo, de absorção.
O capitalismo de estado é só o país em anteparo e pousio para o capitalismo da seita.»
Agora reparem, a guerra de subversão que foi instrumental nas diversas "descolhonizações " europeias por esse mundo fora, cumpria uma estratégia. Que pode ser sintetizada em três momentos:
a) A declarada intenção de Lenine de "contornar, isolar e arruinar a Europa pela perda de África";
b) A garantia de Stalin (1947) de existirem "as esperanças e condições para se aproveitarem as possibilidades que as lutas e movimentos nacionais oferecem para a sua libertação do jugo colonial, de tal modo que este smovimentos transformem os países colonizados e dependentes, em reserva da revolução proletária em vez de reservas do imperialismo burguês";
c) A previsão de Mao Tse Tung (1953) "de uma vaga de revoluções varrerá todo o continente africano e os imperialistas e colonialistas serão rapidamente lançados ao mar... uma vez a Ásia e a África separados dos países capitalistas, o continente europeu desmoronar-se-á por completo do ponto de vista económico".
Posto isto, recomendo um exercíciozinho muito simples e nada retórico: constatem em que estado está África e em que estado anuncia estar muito brevemente a Europa.
sábado, novembro 24, 2012
Frases Assassinas - XVI
«Já lá vai o tempo em que estes tipos vendiam rapidamente a alma. Agora, catecúmenos da economia, descobriram que prostituí-la é mais rentável. Devotam-se ao psicoproxenetismo.»
In camera caritatis
Num qualquer parque jurássimo, na realidade pré-história ou meramente blogosférica (passe a redundância analógica), o Tiranossauro Rex é um sujeito, não direi benfazejo nem o contrário, mas seguramente saudável da cabeça. Mais satisfeito e descontraído, será seguramente difícil de encontrar. Em primeiro lugar, porque não guarda ressentimentos contra qualquer outro fulano, herbívoro, carnívoro, omnívoro ou mesmo egovoro.. Afinal, não tem razões para isso. Nem ressentimentos, nem invejas, nem raivinhas impotentes ou quaisquer outros ranços neurasténicos. Nenhuns. Como poderia experimentá-los? Está permanentemente absorvido a recrear-se com a vida e a fauna abundante. Infelizmente, esta nobreza cristalina, álacre e tranquila do T. Rex não é retribuída pelos outros, com especial destaque para aqueles em que tropeça, pisa ou a quem, ocasionalmente, brinda com a surpresa, sempre jovial, das suas epifanias. Isso, essa não reciprocidade oblíqua tem um nome. Mas não pensem que se chama ingratidão, mau perder, cagufa, ofensa, ronha, ranho, trauma, rancor, ódio mesquinho, ou, enfim, qualquer um desses conceitos e propriedades de carácter menos elevados, tão típicos das reses ultrajadas. Não; chama-se Natureza.
E não é democrática... Graças a Deus.
É verdade, meus amigos. Estou de bem com todos. Ninguém me fez mal e não tenho razão de queixa nem doesto de quem quer que seja. E todos os dias louvo a Deus pela variedade, prodigalidade e exuberância da sua Criação. Mesmo as larvas e os insectos, que já mal diviso nem distingo, mas ainda recordo: que cores, que ruídos, que azáfama buliçosa e agenciadeira!... Peguem vossemecês num detonador, umas quantas toneladas de trotil, e tentem fazer melhor!...
Mijar-nos-Finados
Caro Ricciardi,
A sua malevolência capciosa em relação ao Ultramar português é directamente proporcional à sua benevolência ululante e fanzine com o Rinoparaíso da palestina. Às tantas, até parece uma tentativa desesperada de limpar o presente imundo do seu país de afeição ao passado indefeso do seu país de natureza.
Não chega a chutzpah: é mais chuto-no-puto. (o "puto" é como chamam em Angola, desde antes da descolonização, a "Portugal continental")
Mas eu compreendo-o. Como bom contentorista, sente-se no dever de passar manteiga aos hospedeiros. É um expediente proveitoso que os homens aprendem com alguns insectos hemofagos.
Ninguém aqui se surpreende. Nem leva a mal. Todos sabemos que o "a bem do negócio" pairará sempre nos antípodas do "a bem da nação".
Só coloco uma condição:
os contentores de banha venda-lhos a eles, não nos venha impingi-los a nós.
PS: Já de seguida, e em prelúdio à efeméride do 25 de Novembro, vamos lá então iniciar aqui o Fórum Descolhonização. Começo a estar cansado dum certo Boletim Mentirológico, onde mais que o tempo presente ou futuro, se pretende nebular e deprimir o tempo passado. Já basta de Mentirologia Retroactiva.
E para quem não admite que belisquem ou revisem o passado deles, sob pena legal, é muita a prontidão e desfaçatez em largar bosta e lápis azul no passado alheio. "Mija-nos-Finados", definia lapidarmente mestre Gil Vicente.
sexta-feira, novembro 23, 2012
Frases Assassinas - XIV
Os mesmos que se contentam em ter por nação uma nacinha, também aceitam por explicação qualquer explicacinha.
quinta-feira, novembro 22, 2012
Explicação sucinta do regime
Um tipo que tem vários cargos ou empregos, necessariamente tende a ter também igual número de carros, de amantes para passear nos carros, de viagens e mariscadas onde se refastelar com as/os amantes. É uma reacção em cadeia, pois é; ou efeito dominó, se preferirem.
Concomitantemente, as férias, período essencial para tais folguedos, obedecem a matemáticas similares: se um gajo com um emprego, em regra, tem direito a vinte dias úteis de férias por ano, ou coisa que o valha, um outro mamífero que aufira de dois empregos tem direito a quarenta; e um papa-tachos de grande envergadura, com dez cargos/empregos em simultâneo e outros em stand-by, goza, pelo menos, duzentos dias em cada ano, fora os feriados, domingos e baixas por doença fictícia. Quer dizer, um tipo com dez empregos, pura e simplesmente não trabalha nem produz. Ou seja, quanto mais cargos/empregos tem, menos faz. Sendo certo que quanto menos faz, melhor vive, mais considerado, condecorado e invejado é O que nos recambia ao primado necessário e suficiente da nossa economia: Entre nós só trabalha e produz alguma coisa quem não tem nada de inútil ou supérfluo para fazer.
quarta-feira, novembro 21, 2012
Mutualismos (ex)terminantes
Em zaragatas entre tribos árabes, como aquela que decorre sempreviçosa ali para as bandas da Palestina, decidi adoptar rigorosa neutralidade. Como é universalmente sabido, aquela gente - entenda-se os Autóctones (assim denominados porque acusam os outros de alienígenas) e os Autoclismos (assim denominados porque pretendem limpar nódoas no seu mapa) não diferem nem na qualidade, nem na vontade, nem na finalidade - diferem apenas nos meios. Matam-se uns aos outros, recorrendo a todo o ódio, brutalidade e terrorismo de que são capazes. Simplesmente, aqueles que têm mais meios, matam mais. Como a desproporção é gigantesca, o balanço final é invariavelmente desiquilibrado. Se por algum acaso do destino, houvesse equivalência de meios, não tenho dúvidas que se entregariam de corpo e alma ao extermínio mútuo. Empreendimento que consumariam em três tempos, caso ninguém os detivesse. Da forma como as coisas estão, só os Autoclismos pensam seriamente em formas sofisticadas e engenhosas de exterminar os outros; estes, por enquanto, estão numa fase bastante mais atrasada: envidam ainda denodados esforços para conseguirem meios e engenhos que, por seu lado, lhes permitam começar também a pensar seriamente no extermínio alheio.
Atá chegaram ao olho por olho ainda vai demorar. Por enquanto ainda vão no olho por família inteira, habitação e quintal..
Isto, ao contrário do que a superficialidade julga, favorece os Autóctones. Vão endurecendo cada vez mais. Ao contrário dos Autoclismos: viciam-se a bater em desgraçadinhos, isto é, a degradar meios militares em acções de polícia interna, pelo que um dia destes (como, aliás, já se viu da última vez contra o Hezbollah) quando tiverem que enfrentar exércitos a sério correm o sério risco de estar minados e amolecidos pela facilidade, a arrogância e a poltranice.
Mas como entre aquela gente parece que a hubris, vulgo chutzpah, é entendida como uma virtude, só hão-de parar dentro do abismo.
terça-feira, novembro 20, 2012
A Odisseia da Demagogia
Falemos agora de demagogia. Actualmente, a palavra tem uma cotação extremamente negativa. Taxar um adversário de demagogo" é desqualificá-lo perante a "academia" (entendendo-se aqui "academia"como o círculo de fazedores profissionais da opinião publicada). Os dicionários também não são meigos. O de sinónimos, por exemplo, nem vai de modas e a demagogia justapõe anarquia. Dum modo geral, a demagogia, conforme nos dias de hoje é arremessada, subentende "facilitismo", "embuste" ou"bajulação do povo".
Todavia, na origem, que é a mesma de democracia, ou seja, na grécia antiga, demagogia significa "condução do povo"; tal qual democracia corresponde a "poder ou decisão" do mesmo sujeito. Demagogos famosos foram Péricles, o seu rival Tucídides, e Demóstenes, entre outros. A descrição da fórmula de governo de Péricles por Tucídides, segundo Plutarco, é sugestiva: "uma espécie de aristocracia, à qual se dava o nome de governo democrático, mas que, de facto, era uma verdadeira monarquia na qual só o primeiro dos cidadãos exercia a autoridade". É mais que evidente, mesmo para o leitor mais distraído, que qualquer semelhança disto com os nossos actuais primeiros-ministros não é pura coincidência: estamos de facto perante pseudo-monarquiazinhas a prazo.
Ora, os atenienses, sobretodas as paixões, estimavam a oratória (cuja ciência, a retórica, já que falamos nisto, anda tão mal vista nos dias de hoje quanto a demagogiia; não raras vezes, circulam mesmo geminadas). Daí a seu gosto colectiva pelos tribunais e pelo teatro, locais, por excelência, do rhetwr - o orador público, o homem de estado, o esgrimista da eloquência. Antes da sua capacidade comprovada de administrador dos negócios da polis, a Péricles, foi a sua eloquência que lhe permitiu conquistar a primazia política e as prerrogativas do demagogo. Claro que a eloquência sem posterior, prévia ou acompanhante solércia prática não bastava. Diz o mesmo Plutarco que de modo a restringir o poder do Areópago, Péricles terá conquistado os favores do povo "distribuindo dinheiro aos cidadãos pobres para assistirem aos espectáculos e aos tribunais, fazendo-lhes muitas outras concessões à custa do tesouro público". É evidente que também nada disto é estranho aos dias de hoje. Pelas categorias actuais, Péricles teria sido mesmo, neste particular, uma espécie de demagogo proto-socialista. Mas quem nos dera que todos os nossos demagogos eleitos, juntos e por atado, chegassem aos calcanhares de Péricles.
Em todo o caso, tudo isto para apenas expor como mesmo naquele tempo a demagogia não consistia própriamente numa virtude angélica. O que não havia era a sonsice, a hipocrisia e (como adiante veremos) a manhosice retórica que há hoje. Os vícios já existiam, salvas as devidas proporções - ao acto de distribuição de dinheiro do tesouro público pelos cidadãos chama Plutarco de "corrupção da multidão";. Platão e Aristóteles perdurarão pelos tempos em denúncia desta perversão oclocrática da democracia, ou seja, desta oportunidade de manipulação das multidões como um dos perigos inerentes ao governo democrático ( e donde o próprio Platão extrairá até o famoso aforismo: "A tirania é filha da democracia" -, mas a demagogia não era propriamente um kit descartável conforme a conveniência, que se usa e abusa, durante a época eleitoral, como trampolim desenfreado e, uma vez no poder, como tabu hermético às negociatas de estado, labéu inibidor à critica externa e, em geral, estratagema 32 para todos os efeitos. Quer dizer, Péricles foi sempre um demagogo. Antes do Poder e durante o seu exercício. Era ele o condutor do demos e nem por sombra, ou chicana, abdicar dessa responsabilidade, dessa fama e honra. Tal qual Demóstenes, que, depois dele, personificará o demagogo em combate pela independência e dignidade de Atenas contra Filipe da Macedónia. Mais que vícios e virtudes, há, assim, uma dignidade superior e simbólica no demagogo antigo: ele é o porta-estandarte da polis, sendo que a bandeira maior desta é a palavra. Por isso ele é o porta-palavra, o primeiro e o mais proeminente nas fileiras da língua grega e, por inerência, da Civilização (esta, em contraposição à barbárie - por essência, tudo o que não pertence à Hélade, isto é, tudo o que não enfileira sob o estandarte da língua grega). Tanto que Filipe receava mais a palavra de Demóstenes do que o exército ateniense própriamente dito - afinal, é a palavra que acende a alma de um povo e é a alma deste que o transporta ou não à superação na batalha. Ou à resistência contra o invasor. É a palavra que conduz. Que congrega, Que inflama e encoraja.
Ora, a nossa sórdida actualidade rasteja nos antípodas disto. A eloquência do demagogo, além de sórdida, raquítica e invariavelmente de aluguer, obedece a épocas de abertura e fecho, como a caça. Em período eleitoral, vale toda a demagogia possível e imaginária. Os candidatos ostentam-se e proclamam-se como os ecos vivos, os pimpolhos dilectos, os enfermeiros de serviço, os condutores pressurosos, encartados e diplomados da multidão, do demos em apuros. Ei-los que prometem, assumem, contratam, juram, afagam, bajulam, adivinham, radiografam, anestesiam, profetizam e lambuzam. Mas logo que trepam ao poder, à assembleia, ao cargo, eis que renegam, esquecem, sacodem, ignoram, desprezam e repudiam para longe de si, para imensamente abaixo de si, essa turba suja, acéfala e desqualificada que é o povo, a plebe doravante destituída, com severidade, de todas as sumptuosas dignidades do eleitorado. Pouco confiança nessa turba! Vade retro, porca res! Completamente incapaz para decisões importantes acerca do seu destino. A demagogia serve apenas de rampa de saltos; uma vez no pseudo-troninho a prazo, os eleitos não são mais demagogos: são semideuses. Nenhuma responsabilidade os liga mais aos governados, nenhuma solidariedade, nenhuma comunidade, nenhuma honra especial e, sobretudo, nenhuma espécie de simpatia. Agora, não lhes compete conduzí-los, mas mandá-los (às urtigas, especialmente). Representá-los? Nem a brincar!... Sobrevoá-los, isso sim. Sobrevoá-los, descartá-los, desconhecê-los e, quando muito, borrifá-los a partir dos céus olímpicos, com raios fiscais e decretos trovejantes.
Referendo sobre a entrada para a CEE? Demagogia!... Referendo sobre a assumpção do Euro e abandono do escudo? Demagogia barata!... Referendo sobre os tratados da União europeia? Demagogia imunda!... Referendo para o pedido de resgate externo, vulgo Troika? Aqui d'el rei, demagogia!...
Toda a clarividência, excelência e quintessência legítima do povo termina na hora da contagem dos votos. No minuto seguinte, olhai o milagre, mirai a relampejante magia: toda ela se transfere, inefavel, para os demagogos eleitos. Por troca, e descompensação, estes, ao assumirem a soberania semidivina, abandonam às massas incautas toda sua precária humanidade e, de brinde junto com ela, toda a sua prévia e excitante demagogia proomotora. De tal ordem, que qualquer expectativa de condução da coisa pública fica confinada aos governados, enquanto nenhuma perspectiva, vontade efectiva ou responsabilidade disso cabe os governantes. Pelo que qualquer reclamação daquele pressuposto perante estes é descartada através de que fórmula universal? Demagogia, evidentemente. Por exemplo, actualmente, o povo português reclamar pela sua soberania, independência ou futuro extra-hades é demagogia. Como antes reclamar contra os fenómenos , decisões e estratégias que conduziram situação actual, também era, calculem, demagogia.
Notem pois o requinte: Péricles foi demagogo toda a vida. Com erros e glórias, foi sempre ele o indubitável condutor do seu povo. Estes nossos demagogos de ocasião e campanha, só conduzem o povo até às urnas. Depois, a condução do povo (a demagogia) fica toda com o povo - ele que se conduza sozinho e assuma as responsabilidades e sobretudo os défices até às vésperas do próximo sufrágio. Os eleitos, esses, mal ascendem, passam de imediato à autogogia... Que é como quem diz, à condução, estrita e exclusiva, deles próprios através do néctar e da ambrósia que constitui o dinheiro dos outros e a propriedade de todos. Autogogia, aliás, tanto mais urgente quanto menos vitalícia. Precários possidónimos, enfim.
Quanto à eloquência, nestes nossos vis e apagados tempos, quem pode surpreender-se ainda que descompareça das palavras e da própria língua, e transpareça cada vez mais, embora perversamente, nos actos? Eloquentes, mesmo, só já a miséria, a vacuidade e a traição!...