sábado, dezembro 15, 2012

5...




«(...)Leobundo dirigiu-se para a Síria, direito a Antioquia.
Como sempre,ao longo do seu itinerário - virasse à esquerda, virasse à direita, subisse às montanhas, descesse aos rios -, não encontrava vivalma. Mesmo da criação, nas quintas, só os porcos, adultos e calejados, o recebiam, remirando-o então interessados, de dentro das suas pocilgas, ou fossando nas enxovias que bordejavam as casas, conforme ele passava célere, em ritmo de marcha acelerada e trompeta justa. Leobundo benzia-os e prosseguia em bom ritmo. Desde Jerusalém, adquirira o hábito de se ir arauteando, em jeito de anúncio: "A mim, os paralíticos, os leprosos, os cegos-tristes e os surdo-gagos!"
Também as populações e as regiões visitadas, aos poucos, começavam a adoptar curiosos costumes. Assim, consoante se apercebiam da  sua aproximação (o que não era difícil) e reuniam um cálculo abalizado sobre o seu presumível itinerário, iam abandonar todos os seus paralíticos e cegos-tristes bem no enfiamento da rota do santo. Nos dias em que o vento soprava de feição, ainda o beato peregrino vinha a quilómetros, e a cura milagrosa não se fazia esperar. Os paralíticos, arrebatadamente, levantavam-se, e desatavam, mais que a andar, numa correria louca; os cegos-tristes, sem sequer quererem saber nem ver onde raio punham os pés, largavam em tropel semelhante, doravante alegres e dando graças a Deus, já que para mirar a abominação correspondente a semelhante aroma, mais valia não ver, bendita a hora em que haviam perdido a visão, que os poupava a tais horrorers, etc, etc. E mesmo quando, mais tarde, os repescavam dos precipícios, poços ou rios onde se despistavam por via da desorientação, encontravam-nos sempre com um sorriso nos lábios, mesmo se mortos ou feridos. O poder do santo só não era eficiente junto dos surdo-gagos, pois estes, à primeira inalação, regrediam imediatamente para surdos-mudos. Quanto aos leprosos, como já sabemos, o panorama era misto, mas não deixava de ser animador: aqueles que já haviam perdido o nariz recebiam-no cortesmente, escutavam-no e tornavam-se mesmo seus discípulos; os que perseverassem com nariz fugiam apavorados; mas todos eles, à uma, perdiam a melancolia e o acabrunhamento que, até aí, os assombrava.
Foi numa manhã cinzenta de baixas neblinas que Leobundo regressou a Antioquia, ou melhor, aos arredores desta, junto da coluna onde Simão, o seu mestre-treinador, morava.
É claro ue se fizera preceder duma debandada miraculada de paralíticos-corredores e cegos-alegres. Esta revoada anunciadora começava a tornar-se, para bom entendedor, péssimo e indubitável augúrio.
Mas Simão, lá nas alturas onde vivia, pouco se apercebia das peripécias e folclores, sempre patéticos, do mundo. Nessa noite dormira particularmente feliz pois os seus adeptos e admiradores tinham-lhe acabado de elevar a mansão até aos 22 metros onde agora se encontrava. Mais próximo doravante do céu e, por conseguinte, de Deus, Simão afagava voluptuosamente as nuvens, sem reparar na revoada de entrevados-corredores e cegos-alegres que, mais abaixo, desarvoravam.
Estas revoadas, convém referi-lo, faziam-se acompanhar de gritarias e alaridos  onde predominavam "Deus nos acuda!", "Ó da guarda!", "salve-se quem puder!", "Ai minha mãe!, "Nossa Senhora nos valha!, "vade retro e abrenuncio!", e por aí fora. Essa manhã não foi excepção: os adeptos e fiéis de Simão, acampados à volta da coluna, puideram, com grande estupefacção, vê-los passar em correria desautinada, como se a própria peste os perseguisse. Um dos dos cegos-alegresq ue, entre sprintes e tombos, se distinguia pelo vigor com que accionava os joelhos, veio mesmo esbarrar estrondosamente no poste magnífico onde o asceta apontava ao céu. Correndo a socorrê-lo e ampará-lo - ao cego desgovernado, já que o asceta continuava firme lá no alto -, os fiéis, perplexos, interrogavam-no sobre os motivos para tanta pressa e as razões de tão ébria condução. Mas logo que recobrou os sentidos, o frenético invisual esbracejou que nem um endemoinhado, cuspiu vários dentes e, apesar do nariz a golfar sangue, arrancou num galope ainda mais desaurido do que antes. Enquanto ele se ia despenhar por uma ribanceira deveras íngreme que ficava logo adiante, os adeptos de Simão entreolhavam-se, entre aturdidos e preocupados. Que raio se passava, afinal?
É preciso recordar que muitos deles eram peregrinos oriundos de longínquas paragens, pouco eruditos nos costumes e perigos da região. Chegavam, após árduas jornadas, na expectativa de algum milagre, relíquia ou sermão iluminante. Madrugavam e congregavam-se ali, ainda mal o sol raiava, porque era todos os dias àquela hora que o santo, lá de cima, procedia à vazão diária. Uma multidão ansiosa montava sentinela atenta à liquefacção inspirada. Ao princípio, quando a coluna pouco mais tinha que três metros de altura, era simples: o jorro descia coeso e bem defenido. dada a boa visibilidade, conseguia prever-se com eficaz antecipação para que lado o asceta visaria. A turba convergia então, não sem alguns precalços e atropelos, estendendo potes e vasilhames. Mas depois que o torreão se elevara para lá da dezena de metros, o vento e o prognóstico começaram a interferir. O jorro derivava, a maior parte das vezes, para chuveiro. Nunca se sabia exactamente que ponto cardeal o anacoreta aéreo privilegiaria para a sua devota rega. O cálculo das probabilidades implantou-se. Complexos processos de adivinhação e vaticínio antecediam a madrugada. Áugures profissionais passaram a montar consultório nas redondezas e a cobrar tarifa aos crentes. Postos de observação artificiais terão sido levantados, com o intuito de espreitar o eremita e transmitir as suas tendências. "É leste!", gritavam os vigias; ou "é sudoeste!", avisavam os logradores.  E a maralha comprimia-se, atropelava-see contundia-se por um lugar vantajoso, à bica do santo.»

- in "Leobundo, o Mártir"


Duas ou três notas complementares, se me permitem abusar da vossa condescendência.  É evidente que estamos perante um exercício cruel de humor negro. O único, aliás, que verdadeiramente me interessa e apaixona. Mas também uma espécie que em Portugal gera invariavelmente um dose monumental de incompreensão, para não dizer mesmo desconforto. Até à ironia, em porções suaves e descaroçadas, a malta ainda vai. Todavia,  dum modo geral, mesmo essa é olhada de esguelha, com desconfiança, melindre bacoco ou desdém alarve. Será consequência dum défice endémico de inteligência - isto é, serão os portugueses, intrinsecamente, um povo troncho e estúpido, em que a nata e a borra se confundem no mesmo paúl de indigência mental? Bem, nisso, e no tempo actual, o povo português não se distinguiria da generalidade dos povos, sobretudo ocidentais. Pelo que não vou por aí: Se isso, em parte é verdade, não o é absolutamente. Portanto, não define a coisa nem o fenómeno envolvente da coisa. Eu diria antes que o que cada vez mais atravanca e menoriza o pensamento das pessoas é a pressa, a vertigem aquisitiva, de bugiigangas tanto quanto de notícias, de sinais exteriores de sucesso tanto quanto de (pseudo)conhecimentos - sendo que, para cúmulo, a cultura do conhecimento refina-se e resume-se sobremaneira no "conhecimento de pessoas úteis", e nas mil e uma formas, sortilégios e expedientes para seduzi-las e atrai-las ao nosso proveito, nem que seja,  à falta de melhores trunfos ou armamentos, pela bajulice, o rapapé e a tele-osmose pública, estrepitosa e repenicada. Dessa vertigem resulta a fatal superficialidade do crivo: sempre a encher-se e sempre a sentir-se vazio. Quanto mais perpassa menos retém. E essa, infelizmente, é a cultura da internet, do google, da wikimérdia, do palramento que alastra da acrópole ao necrotério. Ingurgita-se cada vez mais, mas digere-se cada vez menos. Tudo é uma papa. E não tarda, nem isso: pílulas e soro directo na veia, o que dispensará gastos supérfluos, como actualmente, com o funil. Diz-se que os capitalistas promoveram a alfabetização para pôr as massas a ler jornais. Já passaram à segunda fase: agora já as colocaram a escrevê-los. Bem como a best-sellers literários E aí o fenómeno adquire contornos tenebrosos, que se traduzem numa constatação tão gritante quão eloquente: o segredo não está em limitar e, muito menos, reprimir, a liberdade de expressão; o truque, através do despejo ininterrupto de "informação" e expressão à pendura, consiste, ao invés, em, atrofiar, até à erradicação funcional, mais que a liberdade, a própria possibilidade de pensamento.  Desde que não penseis, podeis dizer tudo o que vos der na real gana. Aliás, quanto mais tempo gastardes a debitar esses chorrilhos imarcescíveis entre a lamúria e a aleivosia, esse perpétuo diz-que-diz-do-que-o-outro-disse, menos perigo - e sobretudo tempo! - há de pensares efectivamente no que quer que seja. As pessoas ainda não perceberam que a troco da palavra gratuita, estão a dar, de barato e confisco, o sentido. A coisa descamba assim num recreio infantil em átrio de manicómio, onde a opinião e a pilinha já não se distinguem. Micro-napoleões do sitemeter, nano-profetas da economia, mini-lenines de chucha, churchils'r'us de plástico, escuteiros-mirins da disneylândia esbirra competem por púlpito, pedestal e megafone.
Para mim, basta.

PS: Um último reparo, tendo até em atenção o velho Simão, Estilita, na sua coluna ascética. Os homens regrediram muito desde esses baluartes da demanda vertical. O mundo processa-se agora às avessas.   Assistimos, não raramente, a personagens invertidas destes promontórios. Hoje em dia, por exemplo,  incapazes de subirem na coluna, os descetas afundam-se no blogue, isto é, escavam um buraco, do fundo do qual expelem os seus ruídos. Também congregam devotos. Só que estes, já não elevam os pescoços à coca das pingas redentoras: debruçam-se, acocoram-se, tão sòmente, na fossa, à espera do géiser. A ascese da coluna deu, pois, lugar ao chafariz de bidé. Outrora, como se fustigavam a aspergiam as cabeças, agora abluem-se, lambuzam-se e acariciam-se os cus. Afinal,  nada de surpreendente, num tempo em que que estes cada vez menos se distinguem das caras. E  não precisam que eu vos aponte casos reais, concretos e avulsos disto, pois não?... Afinal, não fiz outra coisa nestes últimos nove anos.


5 comentários:

  1. Só o Dragão é exemplar.

    ResponderEliminar
  2. Ainda há quem pensa que só o Salazar é que mantinha o povo ignorante.

    ResponderEliminar
  3. chico da glória8:26 da tarde

    Não não e não. Não me resigno. Não mensiono sequer, porque valoriza, a nódoa. Não generalizo. Chega de diagnósticos, os nossos maiores têm-os feito e refeito, assumam-se. Foquemo-nos somente nos bons e correctos exemplos, apopemos-os descaradamente. Não bato na cegueira e já não a dou como adquirida e generalizada! Apoio, divulgo e dou reconhecimento a quem vê e avança!
    Os diagnósticos, que pesca em posts antigos, que cita dos nossos maiores, continuam actuais!? O método não educou. Mostre-se o que educa. É como a vacinação contra um mal, espalhe-se a vaçina.

    ps.uma grande quantidade d palavras que utiliza não faço puta ideia do que significam. Tá mal!

    ResponderEliminar
  4. vem aqui aterrar cada maluco...

    ResponderEliminar

Tire senha e aguarde. Os comentários estarão abertos em horário aleatório.