Fruto dum materialismo balofo e grosseiro que, nos últimos séculos, tem avassalado as mentes, corrompido os corpos e viscerado as almas, vem-se caindo, mais até que na tendência, no vício de confundir essência com circunstância. A pobreza ou a riqueza não são essências humanas: são meros acidentes, puras circunstâncias da existência. Não é menos homem o homem apenas porque é pobre, nem é mais homem o homem só porque é rico. Bem pouco é ter muita coisa - ninharia, na verdade. Ter não acrescenta nada ao ser de cada qual. Apenas o nanifica, mutila e irrisa quando se arroga aleives de substituição. É melhor o inválido só porque tem uma cadeira de rodas? Vale mais o aleijadinho só porque possui um ror de próteses? Só num mundo em que todos se degradem a inválidos e aleijões. Só numa enfermaria de amputados e autofágicos.
"Ah, mas não é nada disso!" - proclama-me o junkie porta-coisas. "Os meus teres não diminuem o meu ser; pelo contrário, amplificam-no!" E, como prova eloquente dessa excelência, apresenta-me uns ouvidos descomunais, uma língua desmesurada, uns olhos ultra-devassantes e um naríz de enormíssimo alcance. Ouve, vê, fareja e palra cada vez mais longe, cada vez mais alto e, em suma, cada vez mais. No entanto, pensa, reflecte e compreende cada vez menos. Esta hipersensualidade exorbitante é só a máscara do seu raquitismo espiritual. O excesso de sensações, de sensacionalismos apenas promove, por arrasto, a ausência clamorosa de senso, o atrofiamento de toda e qualquer hipótese de sensatez. À medida que se inunda de mundanidades, esvazia-se de si; na proporção em que se embriaga e empanturra de sentidos, perde o sentido. A enxurrada, porém, não é só de fora para dentro, pelas comportas abertas da imbecilidade cultivada, premiada e campeã: de refluxo, é também despejo. O porta-coisas lava o cérebro no esgoto do mundo. E se é verdade que a função faz o órgão, não é menos verdade que a prótese apenas preenche o seu vazio, quando, como é avassaladoramente o caso, não o engendra e fabrica.
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