«O maquiavelismo que se define em 1516 n'O Príncipe, de Maquiavel, constitui antes de mais nada a afirmação da independência da Política relativamente à Teologia. O princípio estabelecido durante a Idade Média era da que os príncipes deveriam realizar na Terra a ordem definida pelos teólogos. Presumia-se que a autoridade vinda de Deus, e esta presunção exprimia-se na supremacia reconhecida ao Papa como pastor dos pastores, com a faculdade de destituir os chefes de Estado. Nem outra coisa era concebível, uma vez que na Idade Média é impensável uma vida laica a par da vida religiosa, e todos os valores decorriam da doutrina religiosa.
Maquiavel vem justamente laicizar a Política, retirando-lhe a sua base religiosa. O fim que o príncipe ideal tem em vista é puramente terreno, mundano: a unificação da Itália num Estado.
Ora, fora da religião não havia nesta época moral possível. A Política separada da Teologia ficava à margem da Moral.
Por isso é talvez errado dizer simplesmente que para Maquiavel os fins justificam os meios. O que acontece é que tanto os meios como os próprios fins deixam de ter base teológica, e portanto justificação moral. Mas o fim proposto por Maquiavel tinha uma justificação histórica, e já então intuitiva. E os meios, uma vez abolidos os valores tradicionais, só no fim podiam encontrar a sua justificação. O fim estava fora da moral teológica; os meios não podiam estar dentro dela. Em resumo, a moral de Maquiavel é, na sua própria substância, uma moral antimedieval, antiteológica; e parece-nos, por outro lado, uma moral anárquica, uma moral sem norma, porque não se refere a um sistema de coordenadas ligado a uma visão totalizante do mundo.
Mas depois de Maquiavel uma nova moral se definiu que nos pode orientar na crítica do maquiavelismo. Ela só foi possível mediante a derrocada do mundo feudal e a afirmação do direito igual de todos os homens à cultura e à riqueza. Depois disso toda a moral passou a ter como critério o considerar-se cada indivíduo como um fim, e não como um meio. Deixou de ser moralmente possível considerar certos homens como "sujeitos" e outros como "objectos" da vida política. Todos passam a ser sujeitos, participantes em plena consciência da transformação que tem por objecto eles mesmos. Assim, deixa de haver massas e indivíduos, rebanhos e pastores. Ninguém pode ser "utilizado", ninguém pode ser instrumento para fins de outrem. É cada um que se utiliza a si próprio para um fim que não pode ser outro senão a mais perfeita realização pessoal de todos e cada um.
É este o conteúdo profundo da palavra "liberdade", e o sentido verdadeiro da corrente ideológica que se chama "liberalismo".
(...)
O Maquiavelismo (em sentido depreciativo) consiste hoje em afirmar a prioridade da Autoridade sobre a Liberdade, em pretender que há outros fins sociais além da própria Liberdade (entendida em toda a extensão: jurídica, política, económica, biológica); em endeusar a razão de Estado; em exaltar o segredo como instrumento de governo. Mas este sentido depreciativo atraiçoa o significado histórico da palavra. Maquiavel deu no seu tempo um passo em frente, libertando a Política da Teologia; os pseudomaquiavelistas de hoje pretendem retroceder, procurando justificar os meios inumanos com fins teológicos.»
- António José Saraiva, "Dicionário Crítico"
Sendo eu, intrinsecamente, um tipo antiprogressista (considero a badalenga do "progresso" como a arte da sofisticação da mentira e da prepotência), estou à vontade para citar este texto, dum autor cuja inteligência considero indiscutível mas que se coloca aqui - à data de 1960 - duma perspectiva claramente diversa da minha, ou seja, dum miradouro optimista, progressista e "liberal". Todavia, no restante, isto é, no diagnóstico histórico, em larga medida concordamos. Há de facto uma antiga moral (a medieval e não só, sobremaneira aristocrática ou pseudo-aristocrática), uma nova moral (a moderna, democrática ou pseudo-democrática) e uma não-moral - ou amoral - que coincide com o, digamos assim, momento de crise maquiavélico.
Este momento de crise maquiavélico, ou de transição amoral entre a antiga e a nova moral, corresponde na História Universal a uma época: o Renascimento. O tal que faz de passadiço entre a Idade das Trevas e a Idade das Luzes.
António José Saraiva, imbuído da ingenuidade típica dos neófitos da nova moral - à data de 1960, repito e sublinho - acreditava então que, apesar de tudo, a amoralidade maquiavélica teria constituído um progresso em relação à velha moral. E isto é perfeitamente lógico, já que, à luz da nova-moral, a velha moral é uma imoralidade, uma moral perversa. Nesse sentido, não será difícil preferir a amoralidade à imoralidade.
Todavia, mais que preparar o terreno para a nova moral, o maquiavelismo -isto é, a amoralidade renascentista -, mina-o, armadilha-o, dissolve-lhe as fundações. Pior: transforma-se nelas. Ao refundar a moral com base na "luz da razão" contra a "treva da tradição", o Iluminismo apenas mistifica e embruma: na verdade, planta-se sobre o maquiavelismo, nele se enxerta e frutifica. Desde então, a razão mais não serve que de pódio e trampolim à vontade. E a ciência, em grande parte, conforma-se a assento para as alcatras e respectivas vazões do Poder. Exactamente na proporção em que o trono da regra se resume a mero penico da lei.
Da ausência de fundamento real germinarão todos os fundamentalismos inerentes aos sucessivos "renascimentos morais". A retórica política tentará sempre compensar o vazio ontológico. O Ter a Verdade eclipsará, metódica e perversamente, o Ser da Verdade. A busca cederá lugar à usura.
Se três séculos de exuberante comprovação empírica não chegam, venham mais três milénios!...
E tudo começa em Maquiavel, que, por incrível que pareça, não consta que fosse protestante nem tivesse andado a ler Kant?...
Deixemo-nos de descobertas da pólvora. Tudo vem de muito antes, até de antes dos medievais que, por sua vez, já vinham às cavalitas de outros. A fórmula, aliás, crismara-a Protágoras para a posteridade: "O Homem é a medida de todas as coisas". A "Nova-moral" é quase tão velha como a mais antiga das profissões.
Embrulhem.
eheh
ResponderEliminarQue maravilha. E que grande achado esse texto do AJS
eheh
ResponderEliminarQue linda flor do entulho.
podias arranjar umas gajas melhores para a montra
ResponderEliminarEu diria ainda mais: um grande achado.
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