segunda-feira, junho 16, 2008

O Todo que pulsa em cada qual

Em 10 de Fevereiro de 1969, numa das suas conversas em Família, Marcelo Caetano, dizia:
«Andam hoje outra vez muito em voga os termos "direita" e "esquerda" para significar posições políticas em relação às quais se procura situar o governo. Trata-se de palavras de sentido muito equívoco. Todavia, se a essência da "esquerda" está no movimento, se o espírito da "esquerda" é o da reforma social, não me esquivo à qualificação que dessa tendência possa resultar. Mas na medida em que a "direita" signifique a manutenção da autoridade do Poder para permitir a normalidade da vida dos indivíduos, o respeito das esferas da legítima actividade de cada um e o funcionamento das instituições que asseguram a ordem - então, e sobretudo nos tempos que correm, creio que nenhum governo, em qualquer regime que seja, pode deixar de ser dessa "direita". A luta contra a subversão que lavra com intensidade pelo Mundo, obriga por vezes a medidas que despertam os protestos daqueles que, consciente ou inconscientemente, fazem o jogo revolucionário, mas que traduzem a defesa natural de uma sociedade não disposta a perecer às mãos dos seus inimigos.»

Propunha, portanto, Marcelo Caetano que o governo praticasse um certo sincretismo operativo, sendo simultaneamente de esquerda e de direita. Como projecto a apresentar a portugueses, poderia até ostentar alguns méritos, uma tal receita. Sabendo-se de antemão como o luso aborígene consegue conciliar os opostos na maior das desportivas e descontrações - ao domingo vai à missa e ao sábado vai à bruxa -, as perspectivas até seriam, à partida, animadoras. Mas, se reunia potencialidades para cair no goto aos portugueses, congregava, ainda mais garantidamente, condões de desagradar a gregos e troianos, isto é, a todos aqueles saloios com pretensões a estrangeiros que sempre, à mama de novidade, por aqui infestam. Uns, belos trastes, porque exigiam que o governo fosse apenas de direita; outros, superlativos biltres, porque sonhavam que o governo fosse apenas de esquerda. Tudo trocado por miúdos, porque de facto era de charilices que se tratava, morto o pai, os filhos e os enteados disputavam e preparavam a zaragata em redor da herança. O eclético Marcelo queria que se sentassem todos à mesa, em perfeita harmonia, embalados ao som das suas paternais perlendas. A família devinha assim classe, trocando o pai austero pelo professor amigo. A progenitura, porém - entre mimosos, birrinhas, bastardos e ressabiados (todos eles édipos ávidos de matarem o pai tirano e largarem às fornicadelas na mãe Pátria), não estava exactamente pelos ajustes. Não estava mesmo nada. O desenrolar das peripécias havia de comprová-lo. E o resultado da romaria já todos conhecemos, se bem que contado das mais diversas maneiras, ao gosto do freguês e, sobretudo, do alfaiate. Noutras núpcias, alongar-me-ei sobre o assunto. Por agora, interessa-me apenas recordar a radiografia exacta – e profética – que Oliveira Salazar deixou do seu sucessor. Aconteceu no dia 1 de Junho de 1966, numa conversa com Franco Nogueira, à época Ministro dos Negócios Estrangeiros:
«- Marcelo Caetano é um belo espírito, tem grandes faculdades de trabalho, é muito culto e sabedor; mas não é flexível, não suporta a contradição mesmo em privado, não aguenta uma ideia oposta, e perde facilmente o moral, apossando-se de pânico e tendo então a tendência para seguir a corrente geral
Salazar não estava apenas a ser lúcido no diagnóstico: estava a gravar o epitáfio exacto do seu regime.

É, de facto, um dos erros metódicos – e elitoscos – deste país: acreditar que um excelente académico faz um excelente político, ou que uma resma de diplomas e bibliofagias é garante de esplendor cratosófico. A verdade que a vida e a experiência ensinam é, contudo, bem diversa: não basta apenas a pródiga faculdade de produzir belas e prendadas ideias, bem calafetadas a virtude e estofadas a doutrina: é essencial a força de vontade, a resistência moral e a perseverança titânica de as impor, muitas vezes, senão quase sempre, contra as modas do tempo, os torvelinhos cegos e geralmente turvos da correnteza, o eucaliptal das pseudo-elites invariavelmente amesendadas e, em síntese geral, o vórtice sempiterno que induz os estreitos e captos de vista a deduzirem o umbigo do universo no simples ralo de esgoto da História.
Com a agravante de que o paralaxe é duplo: tanto a multidão acredita nestes poços de sabedoria enchida à bomba nos ginásios e aviários da universidade (que é, por seu turno, cada vez mais monomania e monoversão), como cada novo diplomado, mal recebe o canudo, logo se imagina e fantasia investido de todos os super-poderes e brevês legisladeiros deste mundo.
Todavia, os políticos não deviam ser homens como os outros; como os padres, os médicos, os militares, os juízes, os professores, os escritores, os artistas, os artesãos, os pedreiros, os carpinteiros, os lavradores, os pescadores e todos os homens não deviam ser “homens como os outros” – homens ordinários, homens indistintos, amálgama de homens. Nenhum homem devia contentar-se em “ser como os outros”. Todos os homens deviam procurar ser também “cada homem”, ou seja, a realização viva desse extraordinário que em cada qual palpita e aspira, tanto quanto respira e vegeta. Todo o homem, que é kata-holos –conforme o Todo (e daí, por exemplo, o kat-ólico, o universal), não pode abdicar do seu ser kata-ekaston – conforme a cada qual ( e daí o individual, o particular). Pois tanto quanto pertencente e orbital do Mundo imediato, ordinário e próximo, o homem pertence também a algo longínquo, a esse fora do mundo, a esse extraordinário que exorbita de todas as classes, categorias e mesuras. E a que tanto pode chamar-se Deus, como Ser, como “eu mesmo”. Um “eu mesmo”, um “eu próprio” que está nos antípodas da egomania plástica hodierna e cujo conhecimento constituía um dos mandamentos da idade de ouro da civilização. "Conhece-te a ti mesmo", que é como quem diz: Procura-te lá bem no fundo...e encontrarás Deus. Ou seja, encontrarás o Outro. O autêntico.

Pois o Homem é essa tensão entre o imediato e o longínquo – esse equilíbrio afinado em que o Todo e a parte coincidem porque se reflectem, donde resulta a harmonia –; ou essa alienação destrambelhada em que se digladiam e se abominam, donde frutifica o ruído. E a ruína.

Não se foge ao Destino. Como não se foge de si próprio. Tornamo-nos no assassino que segue, sombriamente, atrás de nós. Quem foge porque pensa que ninguém vê nem ninguém tece e vai encontrar abrigo ao virar da esquina da ciência ou do mercado, engana-se redondamente. Não vai encontrar a salvação: vai descobrir a desgraça. Melhor dizendo, vai encontrar o Destino, mas à força de catástrofe.

E tanto acontece às pessoas como aos povos. Aconteceu-me a mim e, por isso, sei bem do que falo. E aconteceu-me a mim, notem bem, duplamente: quer enquanto homem, quer enquanto português.

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