«Quando, porém, o vinho tinha subido à cabeça do Ciclope, disse-lhe então com brandura:
- Ciclope, tu perguntas-me o meu ilustre nome. Vou dizer-to; mas dá-me o prometido dom de hospitalidade. Ninguém, é o meu nome. Minha mãe, meu pai e todos os companheiros costumam chamar-me Ninguém.»
- Homero, "Odisseia"
«Na odisseia, o caminho de partida é também o caminho de regresso. Aquele que rompe, que rasga e fere horizontes, é também aquele que, necessariamente, haverá de curá-los. Ulisses - de "oulhe", cicatriz - é o que faz o caminho, mas é igualmente o portador da cicatriz, pela qual o pai o reconhece e o "fio" (filos), que este representa, o recupera. A odisseia, nesse sentido, é também a ulisseia: o caminhar devém cicatrizar. Depois da ferida aberta pela senda da guerra (a "Ilíada", ou o "patos" do afastamento e do fratricídio) segue-se o caminho de regresso, da cura e do apaziguamento (a Odisseia). Recuperar o "filos" é recuperar o seu lugar cósmico, o triunfo da unidade sobre a dispersão, da plenitude sobre a decadência, da necessidade sobre o acaso. O homem que partiu para se engrandecer, cevando-se no morticínio, na devastação e no espólio, paga essa desmesura aprendendo, a duras expensas, que, afinal, tudo isso é insignificante, fumo que se dissipa num segundo, e ele próprio é "outis" - ninguém -, estrangeiro na sua própria terra, mendigo na sua própria casa, estranho à sua própria mulher, desconhecido do seu próprio pai. A viagem é catarse - purificação. O homem do mundo que parte para despojar cidades, acaba, afinal, por despojar-se: daquilo que nunca lhe pertencera, como daquilo que lhe era supérfluo. Purificação, saliente-se, quer dizer "libertação". Descobrir o que genuinamente lhe convém, o que essencialmente carece, é libertar-se de tudo o que o arrasta e afasta do seu destino, da sua realização; de tudo o que o dispersa e distrai, de tudo o que o encobre e confunde; em suma, de tudo o que o que o separa do seu próprio lugar. Nessa libertação arde a suprema necessidade humana. É o fogo dessa Necessidade, como no Homem que Ulisses representa, que, apesar do acaso aparente, guia através dos confins do Asco até à recuperação no leito da Harmonia. Esse, é um ímpeto vital, uma força cósmica de ser, não gana ou empurrão, mas convocatória perene à transparência e ao convívio. Como o regato que, após a enxurrada, recupera o seu curso risonho e morulhante. Como Ulisses, que, depois de tantas maquinações, artimanhas, lutas, dissenções e guerras aos deuses e à natureza, alhures, por mares e terras ignotos, volta à sua fundação ctónica, ao seu leito construído em aliança e simbiose à Fysis, ao Cosmos, à terra que o viu nascer. É nesse leito que Ulisses e "ninguém" se reencontram, que aquele que um dia se apartou, finalmente, se reúne. Mas, também, para nunca mais se separar: Ulisses será sempre "todos os homens" e, nesse convénio, será igualmente Ulisses, filho de Laertes, pai de Telémaco, esposo de Penélope, rei de Ítaca e navegante do Cosmos. Ulisses sozinho nunca existiu. Como "cada qual" não existe.
A moral da história de Ulisses e da lição de Homero dá-la-á Platão, mais tarde, ao descrever a eterna lotaria do Destino, onde cada qual escolhe o seu. Chamado a reencarnar, após a morte correspondente à sua vida aventurosa, Ulisses, o mais prudente e astuto dos homens, manteve-se placidamente arredado de corridas e disputas. Mordomias e principados não o seduziram: escolheu, discretamente, uma simples vida de humilde anónimo.»
- Passagem quase final do tal "Livro" que alguns leitores amigos me vêm recomendando que escreva. E, quase apetece dizer, um excelente mote para encerrar esta labiríntica viagem.
Sublime.
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