quinta-feira, março 20, 2008

Palavras com raiz - 1. Entusiasmo

Com este postal, inicio aqui uma rubrica em redor de uma das minhas grandes paixões: as palavras.
Um dos grandes fascínios da Língua Portuguesa é que lá por trás está, muitas vezes, o grego. É o caso da palavra com que inicio esta viagem. "Entusiasmo", de facto, descende do grego "enthousiasmos", depois de passar pelo francês enthousiasme.
Mas vamos à raiz, ao subterrâneo profundo. Aí encontramos "Theos" (deus, divino) precedida do prefixo "en" (dentro; sob o poder de; conforme a; etc), ou seja, en-theos. Na origem grega, "en-theos" significa "inspirado pelos deuses", ou "ser transportado por furor divino". Actualmente, segundo o dicionário da Língua portuguesa, entusiasmo é definido como "estado de arrebatamento das faculdades da alma, que se manifesta na fala, na escrita ou nas obras"; ou admiração viva; ou inspiração.
Se atentarmos numa das obras mães da civilização grega - a Ilíada, de Homero -, verificaremos que, servindo de fio comum a todas as principais peripécias, animando invariavelmente as façanhas dos múltiplos heróis, há um mesmo fenómeno: entusiasmo. Todos aqueles homens extraordinários são "inspirados" e "transportados" pelos deuses. O mundo humano é, assim, um tabuleiro onde o divino se debruça... e intervém. Inspirando. Ou seja, transmitindo e insuflando "spiro" - sopro, ânimo, 'spírito. Certamente que os bravos da guerra de Tróia também transpiram, mas não é a transpiração que os transporta aos elevados feitos, nem é do suor que Homero nos quer legar a crónica. Isto é, nem a transpiração os inspira, aos personagens, nem, tão pouco, ao poeta relator. Naquele tempo ainda não confundiam os efeitos com as causas. Significa isto, entre outras coisas, que o entusiasmo, na sua origem, está nos antípodas do trabalho, do labor meramente humano, do esforço estritamente atlético. Resumindo: o entusiasmo não se treina, não se adquire, não se compra ou injecta: é espontâneo.

Suspeito seriamente que a odisseia do homem é também a viagem das suas palavras. Podemos surpreendê-lo plenamente nelas. São como que o seu espelho fiel e inseparável. Ora, o entusiasmo destes nossos dias não é, como podemos testemunhar a cada passo, o entusiasmo que nos relata Homero e serviu de matriz à civilização grega. Em vez dos deuses temos agora futebolistas, popstars, demagogos histéricos ou nababos exibicionistas. O entusiasmo hodierno é cada vez menos um arrebatamento de alma e cada vez mais um arrebatamento das vísceras, das hormonas, dos nervos e cabelos. Sobretudo, não é viril: é histérico. Mera agitação mecânica. Espasmo induzido. Estupefacção industrializada e colectiva. Pelo que, nem entusiasmo legitimamente se pode chamar. Geralmente, não excede o frenesim animista, a excitação símia, a ululância grupal mais ou menos pavlovizada e animalesca. Até porque o sentimento rei é agora, precisamente, o contrário do entusiasmo, ou seja, é a "coolness". Quer dizer, a frieza raciocinóide, a indiferença ética, o maquinalismo volitivo. Que tem corolários sublimes do calibre daquela morbidez rastejante supimpa, através da qual já conseguimos, na maior das calmas, fazer heróis de psicopatas serial-killers. É claro que podemos sempre - com aquele nosso cinismo estanhado (que tão confortavelmente amorfos nos faz sentir) - larachar que Aquiles, a seu modo, também já era um psicopata serial-killer, um empreiteiro da matança. Bem, mas o herói grego matava no campo de batalha, em duelo individual, contra um seu opositor simétrico, isto é, armado das mesmas armas. Entre isso e as chacinas de desgraçados avulsos por puro capricho egopático, vai uma certa - para não dizer abissal - distância. Portanto, se é ainda uma qualquer nostalgia do campo de batalha que nos visita e obsidia, o quão aviltada e pervertida ela foi!
Falta inspiração ao nosso tempo. Falta-lhe espírito. Grassa uma rarefacção terminante de entusiasmo. E bem abaixo duma putativa necrópole divina, o mundo assemelha-se cada vez mais a um deserto de homens, de seres dotados de alma que um deus possa insuflar. Ao leme de bandulhos defecantes, aos comandos de vegetais em trânsito para ferramenta, o que mais campeia é, no lugar de qualquer hipótese de mística ou genuíno mistério, a mistificação, a babel, o engano e a torpe ilusão. De que, por exemplo, matámos Deus, depois de termos exterminado os deuses. Não temos, nunca tivémos, nem jamais teremos esse poder - o de matar aquilo que nos transcende e metaflui. O que temos não se chama poder: chama-se desgraça. De termos sido pelo Céu abandonados. Por nos termos tornado indignos, inertes, estéreis à própria Vida. Por termos optado pelo tributo ao réptil, pela vassalagem ao verme, em vez da fidelidade ao Alto. Em suma, por termos perdido e vendido a alma com que o Extraordinário nos arrebatava.
Se algo eu, na minha enorme insignificância, gostaria de acreditar é que este blogue é, na medida da inspiração que mais ou menos me visita, fruto de entusiasmo. Pelo menos, o entusiasmo que eu sinto quando mergulho no abismo das minhas próprias raízes. Um abismo que é também um labirinto, para onde se desce e circula ligado ao fio - fino mas inquebrável - das palavras.
Porque não é apenas a vontade que nos ata ao leme (e ao lume): é também o fio da confiança.

4 comentários:

  1. Quando crescer, quero escrever igual ao Dragão. O Rembrandt da arte da escrita. :OP

    ResponderEliminar
  2. Magnífico texto, Dragão!
    Ana

    ResponderEliminar
  3. Porra, esse deus estava entusiasmado quando te inspirou!

    ResponderEliminar
  4. Mui bien , mui bien!!!!

    A.H.

    ResponderEliminar

Tire senha e aguarde. Os comentários estarão abertos em horário aleatório.