segunda-feira, setembro 03, 2007

Manha e Falso Prestígio

«Há, sim senhor!
Há um Portugal sério, um Portugal que trabalha, que estuda; curioso, atento, honrado! Há um Portugal verdadeiro que não perde o seu tempo com inimigos fantásticos e cujo único desejo é apenas e grandemente ser Ele próprio! Há um Portugal, o único que deve haver e que afinal é o único que não anda por causa dos vários Portugais inventados de todos os lados de Portugal! Há um Portugal profissionalista, civil e insubornável! Há, sim senhores!
Mas entretanto...
Entretanto o nossa querida terra está cheia de manhosos, de manhosos e de manhosos, e de mais manhosos! E numa terra de manhosos não se pode chegar senão a falsos prestígios. É o que há mais agora por aí em Portugal: os falsos prestígios.
E vai-se ver de quem é a culpa de haver manhosos e falsos prestígios: a culpa é nossa, e só nossa! Não há nenhum português, nem o escolhido entre os melhores, que não tenha forte parte nessa culpa. Porque os portugueses, os bons, os melhores, os sérios, os inteiros, enfim os portugueses (se se entendesse bem esta palavra) não sabem, ou melhor, não desejam lutar contra a manha dos que chegam a ser ou favorecem os falsos prestígios. Ora, a maneira de lutar contra a manha não é a da manha e meia, antes pelo contrário, é a de detestá-la absolutamente, e mais, desmascarando-a publicamente e ali mesmo. Senão, ouvi:
É completamente impossível esmerar-se cada qual apenas no que produz de correcto dentro da sua profissão. Para que fosse possível seria necessário que o conjunto colectivo correspondesse de facto à qualidade de toda e qualquer profissão. Impossível aqui em Portugal. O momento tem a realidade imperativa do seu instante. Aqui não se distingue o correcto do impróprio. É necessário vir explicá-lo na praça pública.
Todo aquele que cuide que lhe bastará para progredir na sua profissão o ser probo nos seus estudos e produções, engana-se terrivelmente, pois que lhe falta ainda e sobretudo o seu dever cívico de encarreirar as gentes e livrá-las dos glosistas, pasticheurs e até mixordeiros de toda e qualquer profissão. É urgente e actualíssimo vir até ao público e denunciar-lhe como o comem por parvo com falcatruas, e lhe dão gato por lebre.
Efectivamente, o único complicado aqui é a maneira de liquidar os manhosos. É complicado porque eles escapariam até aos gases asfixiantes! É complicado porque eles conhecem a fundo e melhor do que ninguém como funciona a superstição sentimental das gentes e, confessamo-lo, servem-se dela admiravelmente. Tão admiravelmente que ganham sempre com as recansadas fórmulas que ainda são inéditas para tantos: oficiais do mesmo ofício, invejas, concorrências, etc, evitando simplesmente a polémica técnica e a discussão do mérito. E francamente, eles não deixam de ter carradas de razão, carradíssimas de razão ao confiar que isto de mérito em Portugal é questão de cara ou coroa. Pois apesar disso ainda fazem batota por cima. Por cima, não, por baixo: de cócoras, beijoqueiros, manteigueiros e por último descarados. Um autêntico e constante desfile de atropeladores à coca do lugar de falso prestígio. E chegam lá. Depois rebentam.
A culpa de ser a nossa querida terra tão propícia à vegetação dos manhosos e à arribação dos falsos prestígios, essa culpa é incomparavelmente menos misteriosa do que possa parecê-lo à simples vista. Ela não está na inocência dos simples e dos leigos que servem sem querer e sem o saberem de trampolim elástico para o salto mortal dos cabalhoteiros. A culpa, meus senhores, é de nós todos e sobretudo nossa. Nossa porque tivemos sempre muitíssima mais razão do que serenidade para dizermos com toda a claridade a razão que temos. Esta nossa falta de serenidade tem sido, oiçam-nos bem, meus senhores, a grande vantagem, a maior de todas, e da qual os manhosos melhor se servem para acabar de convencer o público lá pelos seus processos nada invejáveis. Este terreno é deles e são naturalmente des maîtres chez soi. Façamo-los vir para o nosso campo, donde eles fogem, já que andam a explorar por aí com o que é nosso. E não esqueçamos tão-pouco que eles sabem muito bem que o público se convence melhor com o sonoro do que com o mudo. Sejamos, pois, tão sonoros quanto eles mas nitidamente contrários.
Declaremos guerra ao empenho, à cunha, à apresentação, ao salamaleque, à porta travessa, à côterie, às amizades e às inimizades pessoais, e a toda essa gama de pechotice que medra e faz medrar a marmelada nacional. E, sobretudo, com toda a serenidade, lancemo-nos definitivamente ao ataque dos manhosos e dos prestígios, esta vergonha maior de Portugal, e que seja tão nítido o nosso ataque, tão clara a nossa razão e tão serena a nossa atitude, que, nunca mais aconteça o que até aqui, em que a nossa indignação e protesto eram movidos com tão justo calor português que nem se davam conta das falhas que arrasta consigo a sinceridade sem a companhia da serenidade, essas falhas legitimamente nossas e que as sabem tão bem pescar os manhosos, ou como diz o povo, os aldrabões!
A verdade é esta: o nosso combate aos manhosos até hoje teve o triste resultado de se poder confundir com o dos caluniadores e dos invejosos. Façamos grandemente atenção a isto mesmo e termos liquidado o último recurso dos manhosos. Evitemos a nós próprios um desaire a que estão sujeitos os caluniadores e os invejosos, os quais são, bem contrariamente, o único gás com que afinal sobe de verdade o aerostato do falso prestígio!
Conheceis certamente aquela história da Antiga Grécia onde um homem que tem de castigar um escravo é tomado de ira, de tal maneira que é forçado a suspender o castigo, dizendo-lhe: o que a ti te vale é eu estar tão irado, senão, se eu tivesse serenidade neste momento, não perdias nenhuma das que eu te queria dar.
Ora, meus senhores, nem toda a gente é susceptível de dispor de serenidade, e os menos susceptíveis de todos são francamente os manhosos.»
- José de Almada Negreiros, in Diário de Lisboa (de 03 de Novembro de 1933)

2 comentários:

  1. O Almada, um manhoso rendido aos salamaleques, não é um bom exemplo, pois não excelso Dragão?

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  2. Sarcasticamente a diferença entre os gajos porreiros e os sacanas é que, pelo menos aos sacanas, não temos de agradecer pelas coisas boas que fazem.

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