quarta-feira, agosto 08, 2007

A Outra Palavra

«Não acreditava, e no entanto admitia o sobrenatural; porque, se pensarmos bem, mesmo aqui, na terra que habitamos, como é possível negar o mistério que nos surge em casa, ao nosso lado na rua, em todos os lugares? Era, de facto, muito fácil rejeitar as relações invisíveis, extra-humanas, e deixar à conta do acaso, aliás ele próprio indecifrável, os acontecimentos imprevistos, os azares e as sortes. Não era frequente que encontros decidissem por completo a vida de um homem? O que eram o amor, as influências incompreensíveis e no entanto formais? O mais desconfortante dos enigmas não seria o dinheiro?
Sim, porque tudo isto nos põe perante uma lei primordial, uma lei orgânica atroz, editada e aplicada desde que o mundo existe.
Com regras permanentes e sempre claras. O dinheiro atrai-se a si próprio, procura aglomerar-se nos mesmos locais, vai de preferência parar aos celerados e aos medíocres; e depois, quando uma inescrutável excepção o leva a acumular-se num rico de alma não criminosa nem abjecta, permanece estéril, incapaz de se converter num bem inteligente, e entre mãos caridosas nem mesmo é apto a alcançar um fim elevado. Dir-se-ia que vinga assim o seu destino falso, se paralisa voluntariamente quando não pertence ao último dos trapaceiros nem ao mais repelente dos malandros.
E mais singular ele é ainda quando se extravia, por grande excepção, na casa de um pobre; de imediato fica sujo se estiver limpo; torna lúbrico o indigente mais casto, actua de umsa só pancada no corpo e na alma, e a quem o possui sugere um egoísmo baixo, um orgulho ignóbil, aconselha a gastá-lo apenas consigo próprio, do mais humilde faz um lacaio insolente, do mais generoso um larápio. Num segundo altera todos os hábitos, transtorna todas as ideias, num abrir e fechar de olhos transforma as paixões mais teimosas.
É o mais nutritivo alimento dos maiores pecados e, seja como for, também o seu vigilante contabilista. Consentindo que um seu detentor se distraia, dê uma esmola, faça um obséquio a um pobre, não tarda que a esse pobre suscite o ódio por essa boa acção; substitua a avareza pela ingratidão, restabeleça o equilíbrio, ao ponto de as contas ficarem saldadas, não haver défice quanto a pecados de amanuense.
Faz-se verdadeiramente monstruoso quando se intitula capital, escondendo o esplendor do seu nome sob o véu negro de uma outra palavra. A sua acção deixa de limitar-se a incitamentos individuais, ao conselho de roubos e crimes, para abarcar a humanidade inteira. Com uma palavra o capital decide os monopólios, edifica a banca, açambarca as matérias primas, dispõe da vida, e se quiser pode levar milhares de criaturas a morrer de fome!
E ao mesmo tempo ele alimenta-se, engorda, concebe de si próprio numa caixa de pagamentos; e os Dois Mundos adoram-no de joelhos, morrem de desejos à sua frente, como à frente de um Deus.
Pois bem! Sendo assim tão senhor das almas, o dinheiro ou é diabólico ou não tem explicação. E quantos outros mistérios existem, tão inteligíveis como este; quantas ocorrências deveriam pôr a tremer o homem capaz de reflectir!»

- J.-K. Huysmans, "Além". (trad. port. Aníbal Fernandes)

4 comentários:

  1. Com todo o respeito, vê lá se te deixas destas merdas e começas a fazer algo útil.

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  2. Comece por dar o exemplo: veja lá se trata de fazer algo útil em vez de andar a ler estas e outras merdas ainda piores.

    Dragão

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  3. Divergências de conceito de utilidade...
    Apesar de conhecer a realidade exposta devo acrescentar que é o vil dinheiro, acima e para além de qualquer outra coisa, o factor que mantém uma civilização. É, por assim dizer, a cola da sociedade. Acabasse e o dinheiro e a idade das trevas pareceria uma era "iluminada". O fogo, a escrita e o dinheiro são as principais conquistas desta vil, a única, humanidade. Nada é mau por si próprio e se for a coisa correcta no seu devido lugar então até se pode fazer amizades com tão vil metal...

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  4. Correcção: A escrita, o dinheiro e os impostos são parte agregada de um só desenvolvimento, a "civilização". Com estes fundamentos surpresa seria sair boa coisa dalí...ROFL

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