segunda-feira, janeiro 10, 2005

O Inefável Fedor da Decadência ou Do Circus ao Tele-Circo

«Desocupada ou quase, esta população romana podia vir a ser perigosa, se bem trabalhada por um punhado de intriguistas. Distrai-la era, pois, uma necessidade política primordial: assim, a par das distribuições gratuitas, os “jogos” constituem um dos serviços públicos mais importantes do Estado. O número dos dias feriados não cessa de aumentar. É elevado de 65, sob a República, para 135, sob Marco Aurélio, e, mais tarde, para 175 dias. A partir desta época, pode dizer-se que a população passa a vida no teatro, no anfiteatro, no circo. ”O circo é o seu templo –diz Amiano Marcelino (...). O resto do tempo era unicamente vivido na recordação das festas passadas ou na esperança das próximas festas.” (...)
Os jogos, devido à sua multiplicação, mantinham as populações das cidades e até mesmo do campo, já que os teatros e anfiteatros são também para o pagus e não apenas para a cidade, numa incurável ociosidade. Mas a sua pior maleficência vinha-lhe talvez da própria natureza. Provocavam e desenvolviam o gosto pela crueldade e pela luxúria. (...)
O povo deleitava-se sobretudo com os combates sangrentos, não só entre animais, mas também de homens entre si (gladiadores), ou de homens contra animais. Nele eram usados os condenados de direito comum ou os prisioneiros bárbaros. Na falta de condenados, a populaça reclamava que se prendessem os cristãos para os lançar às feras, ao que os magistrados obedeciam tremendo. (...)
Os candidatos às “honras” procuram por todo o lado animais estranhos, gladiadores e prisioneiros. (...)
No próprio teatro, o público não fica satisfeito se, no âmbito de uma representação, a ficção não der lugar à sangrenta realidade. Só suporta assistir à tragédia de Hércules no Monte Oeta se, no final, o herói for realmente queimado vivo. O mimo Laureolus foi crucificado e não foi uma crucificação simulada, mas sim real, efectiva. Aos jogos sangrentos vieram a suceder-se as pantominas obscenas. A isso vêm ainda juntar-se as festas orgíacas da Maiuma, no mês de maio, festas estas que um imperador tentou inutilmente suprimir. (...)
Pode parecer extravagante que um Estado tenha cultivado durante tantos e tantos séculos uma nevrose de tal modo perniciosa. Mas sem dúvida que também há-de chegar um dia em que nos espantaremos por a nossa civilização tolerar o alcoolismo, sem falar já de inúmeros espectáculos e exibições não menos deletérios do que os jogos dos antigos

- Ferdinand Lot, «O Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média»

Como é bom de ver, qualquer semelhança entre a nossa época e o estertor do Império Romano, atrás descrito, é pura coincidência.
E quem insinuar que a Televisão dos nossos dias desempenha a função do circo daqueles, delira. É que fartámo-nos de progredir, caramba. Já temos satélites e naves espaciais, que diabo. E a populaça d’agora, benza-a Deus, já não se pela nem baba por sangrias, jogos e hecatombes, não senhor. Nem o Estado, mais uns quantos privados em quem este vai delegando as (dis)funções, lhos fornece de empreitada e ao domicílio. Jamais! De maneira nenhuma! isso é que era bom!...É uma diferença abissal, com um catano!...É uma evolução que só visto!...
Direi mais: quem disser uma barbaridade dessas, fala verdade com quantos dentes e, se lhe deitarem a unha, hão-de crucificá-lo com certeza!...

1 comentário:

  1. Se substituirmos os gladiadores pelos futebolistas, o texto de Lot bem que poderia ter saido no Público de ontem.

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