segunda-feira, novembro 15, 2004

Das entranhas e respectivos venenos

Eu também não levo isto do blogue muito a sério. Aliás, a vida inteira não a levo, nem nunca levei, muito a sério. Exceptuando quando tinha aquela fantasia de ser poeta, por alturas da idade do armário. Nessas ocasiões, pobre imbecil, punha-me a contemplar a existência toda com grandes olhos dramáticos e experimentava terríveis emoções trágicas diante da menor bagatela que passasse. Foi uma espécie de acne do espírito. Lá me curei, felizmente. Com duches gelados de realidade e mergulhos a pique na esterqueira a que chamam mundo. É infalível, devo dizer-vos. Um belo dia, larga-se a gabardine branca à Fernando Pessoa, poisa-se o monóculo e, durante uma temporada completa (no mínimo, cinco anos), toca de ir ser-se um perfeito bruto. Em vez de olharmos para a existência com grandes olhos dramáticos, vamos rebolar-nos nela. Patinhamos em bosta e refocilamos na lama até que a alma nos doa. Chama-se a isso endurance espiritual. Nada de miminho, de complacência, de auto-piedade. Nada de flirtes delicodoces com a porca da sensibilidade. A esta, pega-se-lhe pelos cabelos e arrasta-se pelo chão, à boa maneira troglodita, sem dó nem piedade; sem escrúpulo nem remorso. Não se pensa na mãezinha durante uns tempos. Nenhuma – rigorosamente nenhuma! – ternura nem colinho. Aliás, é como se nunca se tivesse tido mãezinha, como se em vez do ventre duma mulher, se tivesse sido cuspido, ígneo, solidificado, ortorrômbico, pela cratera selvagem dum vulcão, em jacto lá das entranhas da própria Terra. É preciso –permitam que vos elucide – devir um autêntico calhau, um pedregulho ambulante, um menir de si próprio. É fundamental que a alma se transforme em granito puro, em mármore se preferirem, mas em pedra, em pedra seja ela qual for. É crucial morrer-se em vida, devir matéria inerte, inanimada. Para que então, então sim, finalmente liberto de toda e qualquer baba ou liquefacção, expurgado de ranho e lágrimas, imunizado à virtude e ao vício, um homem fique pronto para nascer, para ser, para se oferecer em celebração ao cinzel do Tempo e da Vida. É essencial, garanto-vos, que um homem se esculpa, que empunhe e abata esse cinzel sobre a pedra em que se tornou. E é, mais que tudo, urgente, magnífico, sublime, que essa mão e esse cinzel, unidos, simbióticos, descubram, desenclaustrem -enfim, tragam à luz - o coração que jaz soterrado, mas palpitante, eternamente palpitante, sob a pedra. É assim que eu entendo a Arte. E não é um privilégio, muito menos uma prenda, mas uma maldição! A pior de todas. No fundo, não passa da pedra, mascarada de presente, com que os deuses mantêm ocupados e absortos certos homens proprietários de espíritos deveras perigosos. Tal qual Sísifo.
Quanto à moral da história é simples: há venenos de que um homem só se cura, ingerindo um veneno muito maior. Não há veneno maior que a Filosofia: tem o poder de curar-nos de todos os outros venenos. Mas, também por isso mesmo, é o único veneno que não tem cura.

Suponho que não se deveriam escrever coisas destas em blogues. É capaz de ser, isto sim, muito mais que todas as carvalhadas pipianas, obsceno. Corrijam-me se estou enganado.

2 comentários:

  1. Morte ao Pipi!
    Viva o Dragão!
    Destas obscenidades carece o país: Eça is alive!

    Hip hip Hurraaaaa!

    ("Correct me if I'm wrong"?
    Não há erro, não há correcção!

    Pim!)

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  2. "não se deveriam escrever coisas destas em blogues" ":O))))

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