segunda-feira, junho 07, 2004
O DIA D
Não me recordo que Portugal tenha estado em guerra com a Alemanha entre 1939 e 1945. Também não me lembra de termos sido selvaticamente bombardeados nem invadidos pela rapaziada do Adolfo. Mas deve ser lapso da minha parte, porque anda para aí tudo a celebrar a grande invasão que deu início à grande vitória. Ontem, então, eram foguetes por todo o lado; arraiais e sardinha assada; bailaricos e forrobodós. Até ergueram santuários e desataram a lambuzar os santos, alguns, porque outros, de tal forma já grossos, foi mais vomitar-lhes pra cima, mal se inclinavam. Andaram a ensaiar para o Santo António. E a relembrar o Major Alvega, por certo.
Entretanto, ia eu hoje a passar ali para as bandas do "Arcabuz", quando se me depara uma coisa em que vale realmente a pena deparar: o Desembarque da Normandia, na descrição do Boris Vian. Melhor reportagem sobre o evento, garanto-vos, não existe. Ide lá depressa ler, que eu, com uma grande vénia ao "arcabuz", por tão soberba ideia, vou postar -na continuação do texto-, mais uma deliciosa fatia do pitéu. Se não lerdes lá primeiro, e só depois aqui, perde boa parte da graça.
«(...)Dez metros adiante juntei-me a três outros tipos que estavam atrás de um bloco de betão a dar tiros à esquina de um muro que havia mais acima. Suavam muito, estavam num pinto e eu devia estar na mesma, ajoelhei-me e também desatei aos tiros. O tenente apareceu agarrado à cabeça e a escorrer encarnado da boca. Vinha com cara de poucos amigos e estendeu-se logo na areia, de boca aberta e braços para a frente. Boa porcaria a areia deve ter ficado. Era dos poucos lugares que ainda se mantinha limpo.
Dali, o nosso barco encalhado começou por ter ar de uma coisa muito estúpida, e depois, quando lhe acertaram duas granadas, nem ar de barco já tinha. Não foi coisa que me caísse bem porque dentro dele ainda havia dois amigos a tentarem levantar-se, para saltarem mais as balas que lhes tinham acertado. Bati no ombro dos três que andavam aos tiros comigo, e disse:"venham daí, vamos lá." Claro que os mandei à frente, e foi coisa bem topada porque ao primeiro e ao segundo nem alma se lhes aproveitou com os fogachos que os outros dois nos mandavam, e à minha frente só restava um, pobre rapaz sem sorte nenhuma, pois mal dera cabo do mais bera já o outro arranjava maneira de o matar, antes de eu poder tratar-lhe da saúde.
Aquele par de sacanas tinha uma metrelhadora e cartuchos em barda, atrás da esquina do muro. Apontei a metrelhadora para o lado oposto, carreguei a fundo naquilo mas tive que parar logo porque me dava cabo dos ouvidos e encravou. Devem-nas regular para não dispararem na direcção errada.(...)»
- Boris Vian, "As Formigas"
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