segunda-feira, junho 07, 2004

A APOLOGIA DA ESTUPIDEZ


O Almada Negreiros que, no tempo dele, chamou a Portugal a retrete da Europa, se cá vivesse agora chamar-lhe-ia o quê? -A ETAR?
Ocorre-me isto, como não podia deixar de ser, a propósito de Luís Delgado, esse portento. A criatura mete dó, eu sei. Mas há uma justiça que tem que lhe ser feita: ele infrascende-se (que é o contrário de transcender-se);isto é, quando já julgávamos impossível, ele consegue descer sempre mais baixo na escala da inteligência humana (ou mais alto, se pusermos a coisa de patas pró ar e premiarmos a estupidez).
Agora faz a Apologia de Reagan. Eu não sabia que o ex-actor tinha tantos admiradores em Portugal. Isto, quanto mais não seja, reflecte o estado mental da nação. O Delgado serve de porta-voz da classe. Diz, pois, este pródigo bastonário:«Ele ganhou a Guerra Fria, derrubou a URSS, acabou com o Bloco de Leste, acreditou no escudo espacial para defender os EUA e aliados, liderou o maior crescimento económico da União, aceitou o maior défice da história como natural e virtuoso, e criou as forças armadas mais poderosas do mundo
A novidade não é o facto da mente Delgadiana continuar refém da BD americana, sobretudo da Marvel Comics. Não, a grande notícia do dia é que, afinal, a identidade secreta do Super-Homem não é Clark Kent, mas Ronald Reagan. E se o escudo, ainda por cima espacial, tinha aquelas virtudes todas, porque raio o substituímos pelo Euro? Enigmas.
Mas a maior pérola do discurso, a grande acrobacia, prende-se com o défice. Preto no branco, informam-nos: o "maior défice da história é natural e virtuoso". Portanto, se o défice americano é virtuoso porque é que o nosso é vicioso? Ora, porque ao pé do colossal défice americano, o portugês é minúsculo, anão (quer em termos totais, quer percentuais). É uma vergonha dum défice. Até para nos endividarmos somos pequenotes e mesquinhos. Em vez da auto-estima, entregamo-nos à auto-somítica! O Delgado clama e com razão. É uma merda dum défice indigno de se apresentar a alguém, muito menos ao Mundo, à História!. Por outro lado, é a mitologia novo-rica a todo o vapor: grande é bom; pequeno é mau. O nosso défice é mau porque é ridículo, miudeza. O gigadéfice é excelente e o nanodéfice é péssimo, uma ordinarice das barracas. Sabendo disso, o actual governo envida esforços para engrandecê-lo. Bem haja! Oxalá ainda vá a tempo.
Porém, a saga Delgadiana não fica por aqui. Adiante reflecte, numa soberba prestidigitação:
«Ronald Reagan nunca se importou com as «gaffes» que cometia, as «sonecas» que dormia, e os erros que fazia. Tinha uma auto-estima invulgar, era um líder nato, consensual, motivador e sempre sorridente, mesmo quando brincavam com a sua idade e falta de conhecimento dos «dossiers»»
Cá está. Se o Jorge Sampaio fosse presidente dos Estados Unidos, seria um semi-deus, assim...
Já Reagan, ficamos a saber, dormia sonecas, cometia gaffes, errava em barda e desconhecia dossiers. Mas isso, prós apaixonados pelo estilo, é, além de louvável, irrelevante. Como é irrelevante, pelos vistos, o que um Presidente dos Estados Unidos faz. Afinal, é-nos revelado, o presidente dos Estados Unidos não difere muito duma espécie de rainha de Inglaterra, mas sem pedigree. Um puro espontâneo, como nas touradas; uma emanação basista, roberto simbólico. Distribui sorrisos, ressona depois do almoço, brinca com os jornalistas. Subentende-se que deve ter uma supervisão atenta, não vá dar-lhe para brincar com botões...
No fundo, tudo isto é compreensível. Os Estados Unidos tornaram-se uma espécie de baluarte, de país-bastião da imbecilidade e daquele autismo sórdido, despudorado e defecante na via pública de que só os tolinhos e imbecis são capazes. É natural que atraia e agremie todos os imbecis e débeis mentais na diáspora, dispersos pelo mundo. Convoca-os à prece, envia-lhes estrelas guias e reis magos. Eles, hebefrénicos, correspondem. Murmulham na distância, refrangem ao eco. Reconhecem ali a sua verdadeira pátria, a Terra Prometida, o fontanário das suas nostalgias. Qualquer imbecil errante se revê nesse Jerusalém e nesse Messias que agora os abandona para ascender ao Céu, à direita de Deus. Este sim, este é que é o genuíno, o puro, o autêntico. (Ou talvez não: porque presentemente já lá está um outro que promete suplantá-lo. Todavia, isso que importa, se naquele país cada anormal é um messias em potência!...).
Portanto, glória a Deus nas Alturas e à estupidez cá em baixo! Nesses Estados Unidos, terra de cornucópia e liberdade, todo o imbecil (néscio, mentecapto e equivalentes), sabe que não será descriminado, que não sofrerá perseguições, nem a clausura dos ghettos. Ninguém se rirá dele, mesmo quando se descuida pelos salões. Estão-lhe abertas todas as carreiras e, sobretudo, estão-lhe reservados os mais altos cargos da nação.
Não deixa de ser uma lógica inexorável: Se os elevados paradigmas não resultaram e só geraram tumultos sangrentos, a humanidade será salva pelo mais baixo e rastejante de todos eles. A imbecilização vai acabar com a fome e as guerras. Bem aventurados os imbecis, deles será o Reino cá de baixo! Em Portugal, pelo menos, vão bem lançados.
Era Sócrates que dizia que a maldade é a ignorância. Estavas enganado, ó filósofo: se cá andasses angora perceberias claramente que a ignorância é a virtude. Quanto mais estúpido, melhor!...
De resto, nem Rousseou, nem Kant tinham razão - o homem não é naturalmente bom nem naturalmente mau: é naturalmente estúpido. E contra a natureza não há argumentos.


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