A gangrena deste país chama-se superficialidade. Não é de agora, não é de trinta anos, nem de cem, é, pelo menos, de séculos. Perdida a face, corroi-nos agora os nervos, a alma, o esqueleto. Não admira pois que tudo -política, moral, gestão económica, pensamento, ideia -, se confunda com uma cosmética. Abandonada a vértebra, salvem-se as aparências. À falta de cara, retoque-se a máscara. Compense-se com a camuflagem, a tinta. Como os moluscos cefalópodes.
A superficialidade traduz-se num imediatismo seboso, hedonista, novo-rico. É toda uma gentinha encurralada no seu presente, amnésica e descrente; enfarpelada num pragmatismo coçado a tapar as cuecas sujas da impotência e as meias rotas do basismo; às voltas com a opinião e a notícia, sempre dispéptica e sempre faminta, num carrocel desarvorado, onde a vaidade floresce da cegueira e o roldão colectivo não deixa verticalidade incólume. Enquanto isso, em folia histriónica, vão assinando, de cruz, hipotecas do futuro, ou largando, de passagem, escarros sobre o passado incauto e os defuntos.
Redunda, tudo isto, num aparato bisonho: um país embalsamado, de esgar vítreo e póstumo, cheio por dentro de palha. Um povo frouxo, débil, a efeminar-se. Sem paixões, mas apenas vícios recorrentes. Que já não ama o seu próprio país, mas cada vez mais se entretém masturbando-se consigo mesmo. Sem qualquer auto-estima, porque entregue a excessos de auto-erotismo. Ou seja, fode-se e refode-se, e quanto mais se fode menos se aprecia.
Contudo, se é incapaz de amar, não o é menos de odiar. A superficialidade tem destas coisas. Resvala para ressentimentos sórdidos, pequeninos, mesquinhos. Exibe crueldadezinhas, birras, regateios e intrigas de cabeleireira. Escuma babas corrosivas e saliva menoscabante. Lembra um ancião sujo, velhaco e hipócrita, que trocou os olhos de criança por uns de basilisco. A decrepitude socorre-se do veneno; a mediocridade acumulada fermenta e liberta gases tóxicos. A infãmia fervilha e alastra.
No meio da estagnação e do deserto das ideias, vicejam, todavia, núcleos residuais de frenesim, minúsculos engenhos fabris, gerinçonças desengonçadas operando algures entre a confeitaria e o vespeiro...São as auto-proclamadas destilarias do ódio.
Segundo o príncipio sacrossanto da osmose, é suposto odiarem e verberarem quem não adere, quem inexplicavelmente escapa incólume à sua peganhentice.
Debalde se enfunam e segregam. A rã, por mais condecorado batráquio que seja, nunca chegará sequer a boi, quanto mais a anjo.
Convinha que entendessem, serenassem. Mais valia cuidarem de indústrias tradicionais, herdadas e cultivadas por gerações: o medronho e o zimbro, rico exemplo. Sempre dão excelentes aguardentes, néctares de aquecer a alma.
Porque no que concerne à destilação do ódio, em vão se esmifram e atiçam lumes e caldeiras: o mais que aquilo pinga é um rancor avinagrado, surrapa fétida e intragável, obra-prima de mixordeiros.
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