O erro, como diz o adágio, é, por essência, humano. Poderíamos até definir o homem como, mais até que racional (o que, cada vez mais, ou é duvidoso ou não é universal), o animal que erra. E erra, sobretudo, porque duvida, nega e inventa. Poderíamos ponderar, a limite, que o homem é um erro da natureza, ou, mais abissal ainda, um erro de Deus. Como isso arriscaria entrar no domínio do absurdo, o homem terá que ser arrumado, no pior dos casos, algures na gaveta da aberração. Não é um dano essencial ao cosmos, mas apenas um dano colateral, um acidente insignificante. Isto, apenas em teoria, colide com grande parte da tradição civilizacional europeia, sobremaneira desde o século XII, em que o protagonismo do homem na Criação foi instaurado - quer dizer, passou a considerar-se o Homem como o destinatário da obra divina. Todavia, na prática e na experiência empírica, esse optimismo exacerbado cede lugar a um pessimismo dificilmente sanável; e quanto mais o tempo avança e a História se desenrola, mais sinais inequívocos do "erro" abundam. Eventualmente, uma das provas deste "erro" poderia até ser inventariada na "descida da própria divindade" ao mundo para tentar corrigi-lo (ou conceder-lhe alguma espécie de hipótese disso, de auto-correcção). Não se pode dizer que o panorama actual, bem como dos últimos séculos, incline ao optimismo. O homem está cada vez mais homem. Aliás, enquanto "coisa que erra" passou mesmo da essência específica à vocação obsessiva, isto é, trepou da essência à quintessência. Não erra já apenas por natureza; erra por princípio e fim. À auto-correcção preferiu a auto-destruição? Poderá um milagre salvá-lo? O futuro o dirá.
Um protagonista de um dos meus escritos impublicados, que é quase meu homónimo, apresenta o seguinte plano de vida: "se errar é humano, então vou errar absolutamente de modo a tornar-me um super-homem". E trata de agir em conformidade. Começando, claro, na própria linguagem e nos seus significados. A lógica é irrebatível: se errar é humano, então super-errar é suprahumano. Num aparte teológico, poderíamos talvez atalhar que "suprahumano" também é Satã. Mas não entremos, por agora, em teologias.
O certo é que o homem concreto e mundano dos nossos dias aproxima-se, cada vez mais, e perigosamente, do alucinado personagem da minha sobredita ficção. Reparem até como continua a fantasiar-se e auto-investir-se no papel de, unilateral e megalómano, umbigo do mundo. O seu erro metódico e avassalador já o conduziu não apenas ao despejo de Deus, como à usurpação do seu papel na história: arvora-se super-protagonista, mais ainda do que há oito séculos, imensamente mais, só que, doravante, não já como destinatário da criação, mas autor inspirado do seu contrário, a destruição. Dir-se-ia que pretende reescrever a Bíblia às avessas, partindo do Apocalipse para o Génesis. A bomba atómica, tudo indica, subiu-lhe à cabeça: se é capaz de arrasar uma cidade, porque não um planeta inteiro!?... Todavia, o delírio não fica por aqui: ao mesmo tempo que se proclama destruidor do mundo e arredores (depois de expulsar Deus, destrona o próprio sol, portanto passa da religião à física sem sair da anterior), rompe, esquizofrenicamente, em trajes de profeta aceso e clamores à penitência, ao arrependimento, para efeito de salvação do mundo, da qual, não menos curiosamente, se auto-investe de stand concessionário e representante exclusivo. Portanto, é, simultaneamente, o protagonista geral e definitivo - para a destruição, para a salvação e para todas as causas entremeadas. Os antigos acreditavam que Zeus controlava o clima; os modernos substituíram Zeus pelas forças da natureza; estes actuais treparam à torre de controle e garantem que é o próprio homem que, depois de se fazer a si próprio (evoluindo, quiçá, desde aminoácido), faz também o clima. A meteorologia cedeu passo à mentirologia? Não apenas. É mais complexo: é a tal vertigem do erro. Não são apenas os graves, como desde Galileu se sabe, que experimentam no movimento de queda uma velocidade uniformemente acelerada. Os homens também. E isso, entre eles, tem um nome muito sugestivo: Progresso. O progresso, se repararem bem e a história documenta, também é uniformemente acelerado.
Assim, é-se tanto mais progressista ou amigo do progresso quanto mais se erra, em acto, pensamento ou potência. Até porque o progresso é sempre mais sedutor e atractivo para muita gente, dado que afaga e cativa aquilo que pulsa e habita numa, digamos assim, propensão material/natural/emotiva do humano ao erro. O invólucro da novidade, a excitação da descoberta, a sensação da velocidade, também contribuem ao enlevo (e ao engodo), e não é pouco. Fernando Pessoa recorre a uma outra fórmula equivalente ao "errar é humano": ser insatisfeito é ser homem. Lá está, o erro fica sempre aquém, nunca preenche, realiza ou satisfaz plenamente. Apenas cartografa um percurso - ou um precipício, se quisermos ser rigorosos - onde cada erro é apenas um degrau necessário para outro ainda mais abaixo, ainda mais infundado; em suma, onde cada novo erro, mais que conhecimento real, apenas cria um vício e uma necessidade de mais e mais erros, quais doses sempre escassas e, por fim, vácuas, nadificantes da própria existência. O erro, em bom rigor, como toxicodependência radical. Um vazio que tanto mais se dilata quanto se procura encher. O "quanto mais sei, mais descubro que nada sei" também não dista muito daí. Entretanto, em épocas mais religiosas, talvez se apresentasse o erro na embalagem do pecado (remontando ao pecado original). A teologia cristã elaborou exaustivamente sobre o assunto, tentando inúmeras explicações, até porque a questão não era fácil: se a Criação era perfeita como podia o erro surgir no âmago da mesma? Quem criou a serpente? Que raio fazia ela no Éden? Etc. Daqui partirão os gnósticos para o demiurgo trapalhão. O próprio Platão, no Timeu, entrega a criação do mundo material (inferior, portanto) a um demiurgo, que trabalha para um Deus superior. O Deus Desconhecido, benevolente e misericordioso, é o de Jesus? Tudo questões hirsutas que, ao longo dos tempos, abordaram o erro. Foi preciso chegar a Idade Moderna, e o erro maior e mais obstinado da "razão", para surgir uma explicação mais superficialmente abissal (assim mesmo, com todo o paradoxo): o pecado era movido por uma voluptas - o homem retirava um prazer especial no erro. Especial e voluntário: a voluptas decorre, com efeito, do exercício duma voluntas, isto é, o prazer culmina um desejo: o homem deseja o erro. Porque o erro lhe confere uma gratificação libidinosa. Excita-o muito. Desembarcamos assim num mundo obsceno; a limite, e com mais ou menos cobertura edulcorante, o "paraíso de Sade", da lógica sado-masoquista, que prevalece - e se refina, recicla e circunvoluciona - até aos nossos dias. Onde Poder e Prazer surgem entrelaçados, situando-se o primeiro como a capacidade de errar - não só no sentido de se mover sem respeito por qualquer ordem ou sentido (destino ou mapa prévio), mas também de cometer todo o tipo de "pecados", atentados, atropelos, violências e alucinações-, e o segundo como recompensa anexa e estímulo inesgotável.
Se recapitularmos a obra mais sinistra do Divino Marquês, "Os 120 Dias de Sodoma" (cuja última parte é simplesmente ilegível, embora adivinhável segundo a cadeia lógica dos acontecimentos), constataremos uma sociedade concentracionária, sumamente legislada e repressiva (embora aparentemente entregue ao deboche e à libertinagem desenfreada) onde as vítimas (a maioria) estão submetidas a todas as regras e interdições, muitas delas humanamente inconciliáveis, de modo, precisamente, a ocasionarem motivo para falta e castigo. As quatro bestas presidentes àquele labirinto, personificações do Poder e da Volúpia soberana, escoltados por uma corte de acólitos e torcionários coadjuvantes (especialmente as "historiadoras", sacerdotisas da linguagem), contabilizam as faltas, ministram os castigos, reprimem e abusam desvairadamente, até ao paroxismo inexorável, culminando, por fim, na chacina literal das vítimas e retirando de tudo isso um prazer demoníaco (já que mesclado numa exasperação furiosa por acarretar consigo um vazio sempre crescente e frustrante - onde o clímax é só o patamar para a queda). Há nisto uma espécie de silogística dos abismos: o inferno não é apenas um lugar de suplício dos internados; é também uma área de prazer dos demónios torturadores. Portanto, se estamos confinados ao inferno, sejamos demónios o mais possível. Tanto melhor será a nossa posição nesse mundo quanto piores formos; quanto mais errarmos e atentarmos contra o outro. Erremos, pois, com todas as nossas forças e volições. Esta lógica rastejante vem de longe, andou tanto que gastou as pernas. Não é esse itinerário que, por agora, importa aqui mapear. Todavia, se transpusermos a alegoria para o nosso tempo, ela cai que nem uma luva. Desvela-se a cada ano que passa, uma corte algoz (os tais menos de 1%, mai-los apaniguados de aluguer) com intuitos globais - ou seja, de confinamento planetário a um único parque de recreio e delícias -, onde a maioria silenciada é submetida a todo um aparato kafkiano de leis, tabus e interditos, que principia na linguagem da propaganda e se dissemina através de sistemas securitários e hipervigilantes, corporizando mecanismos punitivos, mutilantes e zeladores do bom andamento dos suplícios, bem como da alimentação do medo. O que distingue esta minoria residual superpotente da maioria disfuncional impotente é precisamente a possibilidade de transgressão. Um estar acima das leis, das pseudo-regras e da própria lógica ficticiamente vigente. Na verdade, gozam de impunidade na medida em que são eles quem administra os rituais e burocracias da punição, quem sacrifica, quem, de certa forma, se substitui aos próprios flagelos naturais. Que não macaqueiam apenas: expandem, ampliam, refinam. À esporadicidade daqueles opõem agora uma perseverança hermética e ininterrupta; desempenhando-se como um flagelo perpétuo, impiedoso, omnipresente. Por outro lado, o estar acima é também um estar fora. Administram o progresso - controlam-no e urdem-no; o desenvolvimento da história decorre segundo os seus interesses, caprichos e insondáveis desígnios. Mas, simultaneamente, escapam-lhe, transcendem-no: enquanto pilotam os acontecimentos, estão imunes a eles, para lá do próprio olimpo administrativo, arvorando-se princípio e fim dos mesmos. São, por isso, o "fim da História" e o "motor do progresso". Além deles é o impensável, o indizível, o despenhadeiro. De tal modo que, se atentarmos bem, já nem estamos sequer no domínio dos novos-deuses ou semi-deuses. O caso já reenvia para uma espécie de mecânica fatal, cega e obscura como era o Destino para os gregos clássicos. Só que destituído de qualquer sentido ético, estético ou profético. Bem pelo contrário, no seu exacto avesso: do perverso, ascoroso e exasperante. Em bom rigor, uma maquinaria absurda numa aceleração helicoidal directa ao infinito, onde o extermínio de todo e qualquer sentido compete com a urgência distópica. No meu "Tratado da Besta" eu chamo-lhes "Meta-criaturas". Para facilitar a compreensão ao nível do quotidiano, eles auto-denominam-se, cinicamente, o "Ocidente". De contrafacção, como é óbvio.
Mas, como em qualquer odisseia da palavra, por pequena que seja, voltemos ao início. Se atentarmos bem à definição, nesta, não é o erro que é uma essência do homem: é o homem que é uma essência do erro. Noutras palavras, não é o erro que serve ao homem: é o homem que serve ao erro. Quer dizer, logo na expressão "errar é humano", o sujeito não é o homem, mas, outrossim, é o homem que se sujeita, se reduz ao erro. Sendo o erro inútil ao homem, este, todavia, é útil ao erro, na medida em que lhe serve de transporte. De predicado. Etimologicamente, também tem a sua piada... o Prae - dicus , ou seja, a ante - dito/nomeado/exposto. Donde o homem como expositor do erro, como montra, enunciação e pronunciação do erro. O erro não exprime o homem: o homem exprime o erro. Lembram-se da teologia, lá atrás? Será que necessito acrescentar um desenho?... Não precisam de lhe chamar Deus (ou o seu contrário). Podem também pensar enquanto Kosmos, ordem, beleza, Ser. A ilacção é a mesma; e é fatal. A não ser que o homem se confine ou nanifique ao erro, então a dimensão do homem é muito mais vasta que esse mesmo erro. Quando digo que o homem se exprime, essa expressão do homem, pode também exprimir-se enquanto erro, mas esse erro não o exprime absolutamente, é apenas uma falha sua, um acidente. Todavia, se o homem se deixa reduzir (esgotar) a mera expressão de algo, o erro, então não estamos perante uma real expressão humana, mas sim diante da expressão de algo, o absoluto erro, através do homem. A diferença que existe entre ambas as acepções é exactamente aquela que existe entre condutor e veículo. Se o homem conduz, então pode também errar, ter um acidente, despistar-se: mas não é essa a sua finalidade, nem o princípio e causa que o levou à viagem. Mas se o homem é apenas um veículo que erra, sem respeito por princípio ou causa, mas por mero capricho ou vício de errar, estrita sucessão de despistes e colisões, despenhamentos e avarias, nesse caso nem sequer há uma viagem, porque ausente princípio e fim, partida e chegada, tudo se resume a nada. Não sendo expressão do Ser humano, o homem, enquanto viajante do cosmos, é expressão do nada. O Homem enquanto essência do erro (a limite, do mal) é mera expressão duma ausência. De si em si, de ordem em si, e de ordem no mundo.
ResponderEliminar"Mas não entremos, por agora, em teologias".
É preciso entrar para apreciarmos melhor o que seja "o impensável, o indizível, o despenhadeiro".
De resto, no futuro condomínio das Potências no mundo, não está apenas em causa o "Ocidente".
Meto a Bíblia pelo cu acima, fico a ver os anjinhos e a virgem a peidar-se ao vento.
ResponderEliminarEm quase nada se vê melhor essa ilógica do erro que na deriva da transgressão dos tarados do alfabeto +...
ResponderEliminarOu, como diz o Soral, que se esconde no "+" ?
O meu primo na Suíça diz que de noite costuma ver árabes a enrabarem adolescentes brancos na rua. Dizem que há um aplicação no telemóvel, e os miúdos escolhem os montadores profissionais alegremente. Este ano quase não tiveram aulas, quase todos os professores emigraram para a universidade de São Petersburgo ou para a China, não há alunos estrangeiros, é o deserto total. Só se leva no cu.
ResponderEliminarEssa cena dos árabes aparece na "Morte a Crédito", do Céline. Princípio do século XX. Só que naquela altura era uma violação. Agora, pelos vistos, já é por vício.
ResponderEliminar