terça-feira, novembro 22, 2022

O dinheiro - VII. O Poder e a moeda. Parte 1






 

«CARIÃO - Oh, O mais velhaco de entre todos os homens! És então Pluto e calavas-te?
CRÉMILO - Tu, Pluto, com essa aparência desgraçada! Ó Febo Apolo e deuses e génios e Zeus, que dizes? Tu és verdadeiramente o tal?
PLUTO - Sim.
CRÉMILO - Aquele mesmo?
PLUTO - Mesmíssimo.
CRÉMILO - Donde é que vens - diz - com esse ar sujo?
PLUTO - Venho de casa de Pátrocles que se não lava desde que nasceu.
CRÉMILO - E esse mal como o sofreste? Diz-me.
PLUTO - Foi Zeus que me fez isto, por má vontade aos homens. Quando eu era rapaz, ameacei que só me dirigiria aos justos e sábios e honestos. E ele fez-me cego, para que não distinguisse nenhum deles. É assim que ele inveja os bons.
CRÉMILO - Mas ele só é honrado pelos bons e justos.
PLUTO - Concordo contigo.
CRÉMILO - Ora vejamos! Se voltares a ver como dantes, fugirás então dos maus?
PLUTO - Prometo.
CRÉMILO - Procurarás os justos?
PLUTO - Sem dúvida. Há muito que os não vejo.
CARIÃO (Apontando os espectadores) - E não é maravilha nenhuma, porque eu também não, apesar de ver.
PLUTO - Deixai-me os dois agora, porque já sabeis tudo a meu respeito.
CRÉMILO - Não, por Zeus, mas muito mais te seguraremos.
PLUTO - Não anunciava eu que vocês estavam para me arranjar sarilhos?
CRÉMILO - E tu - peço-te - deixa-te persuadir e não me abandones, porque não descobrirás, ainda que o procures, homem de melhor carácter do que eu.
CARIÃO (Para os espectadores) - Não, por Zeus, não há outro senão... eu
PLUTO - Isso é o que todos dizem. Mas quando verdadeiramente me apanham e se tornam ricos, simplesmente ninguém os excede em velhacaria.
CRÉMILO - É assim, realmente, mas nem todos são maus.
PLUTO - Pelo contrário, por Zeus, todos sem excepção
    - Aristófanes, "Pluto" (A Riqueza)

Nos nossos dias existe uma convicção um tanto ou quanto mal amanhada, mas deveras conveniente, que proclama aos quatro ventos e brisas associadas a seguinte lei indiscutível: o Poder corrompe. Pensemos no Deus Omnipotente e teríamos então qualquer coisa como o Absoluto Corrupto (reductio ad absurdum). Ah, mas não, é só entre os homens que funciona assim, até porque Deus é, por natureza, incorruptível. Mas nem todos os poderosos foram corruptos, citando alguns na nossa própria história: D.Afonso Henriques, D.Pedro I, D.João II, Salazar. Vou dizer-vos onde funciona inexoravelmente assim: nos romances do Marquês de Sade. Porque onde também não funcionava dessa forma era na Grécia Antiga. Aristófanes, a experimentar em primeira mão o fenómeno, vai direito ao cerne: o que corrompe o homem é a riqueza. É o próprio Pluto que o declara: "quando me apanham e se tornam ricos simplesmente ninguém os excede em velhacaria.» E assim deparamos, pela primeira vez, preto no branco, o carácter corruptor e degradante do dinheiro. 
Voltando agora ao nosso tempo. Testemos a tese. O nossos primeiros-ministros de fancaria, mesmo com maioria absoluta na assembleia palramentar, é o poder que os corrompe? Muito mais poder, poder a sério, não corrompeu D.Afonso Henriques, D.João II ou Salazar. Como é que um poderzinho de cacaracá causa tamanhos vícios nestes? Que significa a corrupção senão compra e venda (activos, passivos), ou, em muitos casos, ainda mais insidiosos e venais, pura chantagem, ameaça velada, torpe sedução. Digamos doutra forma: homens fortes, homens fracos. Um homem fraco qualquer coisinha o tomba, o tenta, o salda, o varre. Porque, na essência, aquilo que faz forte um homem é uma forte convicção no espírito, uma tenacidade na vontade, uma certa auto-suficiência na vida. E um módico de inteligência que, uma vez na política, lhe permite saber que o todo é mais importante e, necessariamente, mais forte que cada uma das partes; e que representar esse Todo, consiste, per si, numa posição dominante, acima, nomeadamente, dos agentes económicos e dos circos da riqueza. É por isso que mais facilmente descamba no totalitarismo (ou seja, num excesso de poder) do que na corrupção. Hitler ou Stalin são casos emblemáticos disso mesmo. A corrupção dum homem de estado equivale, bem vistas as coisas, a uma alienação de poder, ou melhor dizendo, de função. A criatura cede (qual quota em sociedade comercial) parte da sua função, da sua comodidade, ao comprador. Ou seja, deixa de ser um homem de estado, um político, e degrada-se a traficante. A sua dignitas devém mercadoria, a sua posição um balcão, o seu cargo uma loja. É o poder que o corrompe?  Antes diria que é mais o seu contrário: a sua impotência, enquanto político e homem de estado. A sua impotência intelectual, ética e política. Isto convertido em sistema dá qualquer coisa como a "democracia liberal". Na realidade não passa duma acracia: duma ausência efectiva de poder ao nível do Estado, e ainda mais ao nível do Povo. É irrelevante haver eleições, como são irrelevantes os resultados das mesmas. O processo está pervertido e viciado à partida. O governo não é soberano, o povo não só nada ordena, como refocila avidamente na desordem e vegeta num estado de alienação induzida e bombada ininterruptamente por cadeias de desinformação e deformação opressivas e calafetantes. Entretanto, esta acracia efectiva assenta num tripé sustentador: anomia, abulia e aloarquia. Que traduzem, respectivamente, a desordem dos valores, o desânimo da vontade própria, a dependência duma governação alógena. Que, nestas degradadas circunstâncias, a trafulhice, a velhaquice, a venalidade, a resignação, a morbidez, a cobardia, a traição, o mercenarismo, a corrupção e o sicofantismo geral vicejem, frutifiquem e se tornem infestantes é o efeito óbvio e necessário. De resto, basta atentar no nosso próprio exemplo enquanto nação: monarquia -> poliarquia  -> aloarquia.
A quem convém então esta tese do "poder corrompe"? Precisamente àqueles que vicejam da implantação da impotência e da desordem entre os povos e respectivos governos. Os mesmos que, com base numa riqueza sem freio e sem limite, tudo pervertem, infiltram e contaminam; a começar pelas  próprias estruturas governativas - desde os respectivos processos e trampolins eleiçoeiros até aos critérios de gestão subsequentes e, sobretudo, ao controle pela trela de todo o aparato de sicofantas vigilantes na Mass-media. No regime de acracia, a imprensa cripto-controlada passa por livre, a expressão ultra-filtrada trafica-se como voz do progresso e o totalitarismo implícito, em construção e hermetização permanentes, mascara-se de fim da História - fim, enquanto realização plena e corolário definitivo. Toda e qualquer não aceitação, disputa ou cepticismo é, de chofre, degradado a retrogradismo hirsuto, conspiração contra o melhor dos mundos, crime de lesa-enxame. O regime de acracia é, assim, um estado terminal. Na medida exacta em que, para lá dele, só o apocalipse, a catástrofe global, o fim do mundo. Por analogia, é uma espécie de pistola apontada, com percutor armadilhado, à cabeça da humanidade. Tentar afastá-la ou afastar-se dela é premir o gatilho. O outro aspecto, especialmente ilustrativo da irracionalidade do fenómeno é, nessa declaração absurda, arbitrária e aleivosa de fim/conclusão do processo, estar a negar-se em absoluto o próprio conceito, princípio e totem supersticioso que lhe deu corpo e justificação desde a eclosão revolucinhária: a própria ideia de progresso. É o mesmo que dizer: a partir daqui não há cá mais progresso nem necessidade dele. Acabou; é comer e calar.
Mas tornemos à riqueza. Corrompe necessariamente o homem? Aristófanes é pessimista, nesse aspecto. Todavia, não me parece que seja fatal. Socorro-me de exemplos da vida prática e histórica da nossa própria comunidade: Alfredo da Silva, no antigamente; Rui Nabeiro, no pós-abrilice, só para citar dois exemplos. Não cederam à corrupção e enriqueceram a comunidade, beneficiaram substancialmente o país. Decerto a CUF não era uma empresa angélica, mas era um empório a muitos títulos extraordinário.  E extraordinário no bom sentido: um autêntico modelo. A Delta confunde-se com a própria vila de Campo Maior. Estes homens enriqueceram e enriqueceram os outros; respeitaram, nomeadamente os seus empregados, e foram e são respeitados. Merecem um lugar na história, tal qual um general competente e audaz. Por conseguinte, mesmo nos tempos actuais, problemáticos a muitos títulos, e sobretudo em sede da riqueza, não é forçoso que o dinheiro corrompa. Corrompe a maioria, mas nunca foi a maioria que decidiu coisa que se visse. O caso é que, assim como, na economia, (r)existe uma minoria cada vez mais reduzida de gente heróica, também na para-economia, existe igualmente, e em contrapartida, uma minoria cada vez mais escroque e facínora geradora não de riqueza benéfica, porque integrada na comunidade, mas de corrupção plutofacciente, isto é, riqueza extraída como tortuoso malefício, gangrenante parasitismo anti-social, anti-económico, anti-cultural e anti-político (no sentido de anti-histórico). Àquela riqueza poderíamos também chamar de fundamental, e a esta de infundada e afundadora. E, neste paralelismo, lá regressamos nós às origens do problema, como o colocou inauguralmente Aristóteles: a diferença, e o confronto, entre o firmado na natureza, fundado na terra; e o ficcionado estritamente no ar e multiplicado indefinidamente sobre os mares do comércio. Ou, por outras palavras, o dinheiro enquanto meio cujo princípio e fim se conhecem e o dinheiro como princípio e fim de si mesmo, enquanto mera ampliação desarvorada, do qual, em bom rigor, ninguém sabe donde veio nem para onde vai. Dinheiro absoluto, em suma. Cripto-riqueza. Não instrumento de soberania, mas soberano instrumentalizante de pseudo-soberanias, soberanias fictícias, meramente convencionais. E note-se que quando se diz "absoluto", é na sua plena acepção etimológica: des-ligado. Desligado e desarvorado como em tempos já aqui se descreveu:

Ora, o dinheiro absoluto desliga-se do homem, tal qual o homem absoluto se desliga do cosmos e de Deus. Este Des-ligamento do dinheiro ao homem -este absolutismo "monetário" - traduz-se numa redução ao nada: ad nihil enquanto origem/proveniência; para-nihil, enquanto fim. Engendra-se dinheiro a partir do nada, do ar, do infundado; almeja-se com esse macaqueamento rasteiro do próprio Génesis,  com essa antítese manifestamente satânica (Satã, significa, na etimologia da aramaico onde foi vertido o texto original, o adversário, o antagonista), o vazio e a própria negação da Criação e da espécie humana enquanto agente duma civilização. Ou seja, enquanto intérprete nobre, legítima e diversificada de políticas (políticas, em suma, sediadas (fundadas) na própria diversidade geográfica e histórica). Donde a emergência duma cripto-economia (uma teo-finança) que se arvora e a tudo se pretende sobrepujar como apolítica. Leia-se, antipolítica na tripla síntese  de para-política, epipolítica e supra-política.  Manifestações e epifenómenos emblemáticos disso são todos aqueles casulos criptocráticos onde se refinam e alambicam, com ares de convénio anual de superdruidas, todo um neo-mundo devidamente desossado e convertido em papa universal (entenda-se, geoculinária única e definitiva). Não são fruto da política, mas, isso sim, da sua negação, do seu banimento, cancelamento e redução ao absurdo.
Por outro lado, mas na mesma lógica, o desligamento do dinheiro ao Homem  acompanha, ao longo dos tempos, o desligamento do dinheiro à própria moeda. No fundo, o esvaziamento religioso do dinheiro. E é essa viagem, assaz sombria e tortuosa, que tentaremos acompanhar ao longo dos próximos episódios. Entretanto, e como fecho deste, julgo já não ser possível recusar o óbvio: o absolutismo monetário é, na verdade, um amonetarismo (ou desmonetarismo). No que as eclosões caóticas mais recentes do circo das cripro-moedas é um sinal mais do que esclarecedor: estarrecedor. Aguardem só pelos efeitos...





5 comentários:

  1. Figueiredo7:18 da tarde

    Permita-me fazer referência ao Presidente Rui Rio, que faz parte da classe dos incorruptíveis.

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  2. Fantástico!!!

    Mais um post raro e antológico como só o Dragão consegue!

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  3. «O regime de acracia é, assim, um estado terminal. Na medida exacta em que, para lá dele, só o apocalipse, a catástrofe global, o fim do mundo»

    O próximo livro do Soral vai chamar-se "Plus con, tu meurs"

    Ahahahaha!

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  4. Extraordinário.
    Ao lê-lo, ocorreu-me Nicholas Nassim Taleb e o seu "Antifrágil".
    E tocou-me, e muito a referência ao Av^da Rita...
    Cpmts.

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