Por falar em 2006... Aqui fica uma recordação dragoscópica desse ano. Sempre a propósito, no que toca à pluri-fenomenologia zombi:
Não é em vão que se está a democratizar, sabe Deus a que preço, o Afeganistão. Segundo o jornal “Expresso”, «a heroína de elevado grau de pureza já chegou a Lisboa.» Mais explica o repolhudo semanário, a todos os eventuais interessados na aquisição daquele precioso bem de consumo (e serão certamente muitos), que o mesmo pode ser encontrado à venda “ na Fonte Santa, perto do antigo Casal Ventoso, na Mouraria e no Bairro Alto”. Não refere os meios de transporte mais rápidos para lá chegar, o que é pena, mas um qualquer roteiro da cidade pode facilmente colmatar essa lacuna. Isto, partindo do princípio, assaz optimista, que sabem ler, ou estão em condições disso. Aconselhamos, no entanto, a irem cedo, pelo menos antes de almoço, pois adivinham-se grandes engarrafamentos nos acessos e junto às baias dos drogadouros com o avançar do dia.
Mais detalhes entusiasmantes: esta heroína de imaculada condição, segundo um consumidor experimentado, “tem o mesmo aspecto da outra, mas os efeitos são muito mais fortes.”
“A qualidade é muito superior” – acrescenta, entre o deslumbrado e o dorido, o mesmo atleta do hemochuto – “ sei que em Inglaterra também há heroína como esta porque vivi lá há uns tempos. Quem não estiver avisado morre facilmente de “overdose”.
O jornal identifica-nos este consumidor audaz e viajado como sendo Alberto, proprietário de 35 primaveras, técnico superior de parqueamentos automóveis (“melga”, na terminologia caguinciana; “mitra”, na do meu irmão). O seu depoimento, não obstante, é deveras instrutivo. Ficamos desde logo a saber que o junkieportuguês é, à semelhança de todos os seus compatriotas, um consumado ambulatório - um turista da estupefacção. Anseia estupefazer-se por esse mundo a fora. Quieto no mesmo sítio é que ninguém o segura. Nada de âncoras! Viaja, nomadiza, peregrina. Está-lhe na massa do sangue. O resto que lá mete, na veia atávica, é só um pretexto para a viagem. Para a excursão não apenas psicotrópica, mas também, e não menos essencialmente, globofrénica. Quase aposto que estes toxicodependentes ludâmbulos, aquando de ocasionais encontros ou congressos entre-viagens, também trocam troféus e souvenires em forma de álbuns fotográficos e videogravações. Acompanhados, fatalmente, das legendagens da praxe: “Eu a dar na veia em Hyde Park”; “A Tereza e os miúdos a triparem um ácido porreiro no Bois de Bologne, antes de se prostituirem para a dose do dia seguinte”; “Eu a bezerrar junto aos Alpes”; “O Inácio a vomitar e a malta aflita a pô-lo de borco para ver se ele não se asfixiava, na Praça de S.Marcos”; “Eu outra vez, na ambulância para o Hospital de Geneve, com a minha terceira overdose”; “O Carlitos a ressacar em Berlim - a Vanessa Augusta tinha acabado de fugir com um turco, deixando-o sem abastecimento”; e por aí adiante.
Outra coisa que me aflige, quando não me escandaliza, é a ausência completa de “prevenção drogoviária” por parte do Estado – do Estado ainda por cima Democrático. Isso das “salas de chuto”, só para citar o bibelot mais folclórico, não passa de mera fachada, conversa para enganar tolos. Começa na inadequação do próprio nome: “sala de chuto” lembra escola ou hospital. Nenhum junkie que se preze, daqueles cosmopolitas e mundívagos, com tal tabuleta à porta, lá mete os penates. É garantido. Ou mudam o nome daquilo para “chuto lounge”, ou nada feito. E com separação de áreas de acesso, pois claro - classe executiva, económica, VIP -, que isto da estupefacção não é nenhuma ribaldaria. Há gente das melhores famílias, das melhores castas e proveniências; e das piores, das mais avulsas e banais também. É como em toda a parte. Há junkies de referência, faróis da coorporação, como há trolls anónimos, lingrinhas chupadinhos das carochas completamente irrelevantes.
Depois, a “sala de chuto” pressupõe uma sedentarização que contraria os princípios e leis sagradas da confraria. A não ser que se abram “chuto lounges” nos aeroportos, nos aviões, nos comboios internacionais (a criação de “carruagens especiais para junkies em trânsito” –o chamado “vagon delit” – é uma prioridade)... E mesmo assim, se não forem devidamente equipados com um sistema de “vending machines”, como já existem para cafés, sandochas e chocolates, só que agora abastecidas com as diversas variedades e doses de estupefacientes, leves e duros, não estou a ver como raio se fidelizarão os utentes e respectivos agregados familiares.
E aqui desembarcamos no cerne da questão. O Estado, com a hipocrisia característica, proclama condoer-se com os risco de HIV, hepatites e demais infecto-contágios nos estupefactos profissionais; mas não liga patavina à ameaça fulminante de “overdose”. Quer dizer, aflige-se todo com as condições da dose, socorre todo pressuroso a higiene da mesma, mas não passa cartão à iminência da overdose. Em suma, preocupa-se mais com a limpeza das ferramentas, que com a limpeza do sebo dos operários consumidores. É o costume: o humano, ainda que vegetalizado, que se lixe! Que se foda! Que rebente para aí cavalarmente! Que se envenene, mas nas devidas condições de higiene. Em ambiente asséptico, ultra-pasteurizado. Desarvoramos na droga em regime fast-food. Num mundo não apenas já hospício, mas também açougue McDonaldizado. O que conta não é a essência, mas a mera aparência. A marca e a embalagem.
Estivesse o Estado sinceramente interessado em cuidados básicos, em profilaxia elementar e, além das salas e seringas, trataria de fornecer também o produto. O pó devidamente garantido e rotulado. Indicando os comprovados ingredientes e misturas. O grau de pureza. A dose recomendada, de acordo com a idade e o peso, como qualquer papa Milupa ou farinha Cerelac. O modo de preparação e a data de validade. Os corantes e conservantes –esses malfadados Es, quase todos eles cancerígenos. O ano da colheita. A proveniência. O selo da Região Demarcada, como se impõe a qualquer néctar condigno. O carimbo do fabricante, do importador e distribuidor. Dos Serviços veterinários também. Os avisos como nos maços de tabaco: “A droga pode reduzir o fluxo do sangue e provoca impotência”, “a Heroína prejudica gravemente a sua saúde”, etc. Já que não quer acabar com ela, com a droga aos molhos, ao menos que o Estado regulamente e fiscalize a sua distribuição. Cobre uma taxa como a da radiodifusão – neste caso da “radioingestão” – pela mesma via, ou seja,, devidamente dissimulada nas facturas da electricidade. Que crie um “Código da Droga”, à semelhança do da Estrada, com sinalética e regras de tráfego adequadas. Sinais de perigo como, por exemplo, “Heroína pura”, “estricnina quase pura”, “Cocaína escorregadia”, “Passagem de droga com guarda”, “passagem de droga sem guarda”, “Aproximação de traficante com prioridade”, “turba e contra-turba”, “gado bravo”, “queda de pedrados”, etc; ou sinais de interdição do estilo “trânsito proibido a junkies descapitalizados”, “Sentimentos proibidos”, “proibido fumar”, “proibido beber”; ou ainda de obrigatoriedade, como “zombificação obrigatória”, “vegetalização rápida”, “prostituição a menos de cem metros”, etc. E isto já não falando na própria adequação do actual código da estrada ao tráfego estupefacto, com a criação, designadamente, de passadeiras e corredores especiais para junkies; semáforos psicadélicos; parques de bezerramento; vias rápidas para ressacados com urgências; quiosques devidamente identificados à porta das escolas; facilitação de acessos ajunkies paraplégicos, tetraplégicos, invisuais ou meramente fetichistas de cadeira-de-rodas; estacionamento reservado a dealers; venda em portagens; rede de drive-ins, ou melhor dizendo, drug-ins; áreas de chuto para camionistas; zonas francas de amochanço junto a discotecas; etc.
Mas se o Estado é o descalabro que se assiste, que dizer da Deco? Sim, o que é que a putativa Defesa do Consumidor tem feito na defesa desta classe desamparada de consumidores? Nada! Népia! Nicles! Há contrafacções e mixordices de toda a espécie. Há desgraçados a fumar caldos Knorr, adolescentes crédulos a injectar farinha Branca de neve ou pudins Royal, papalvos a snifar Lauroderme à força toda, e a Deco - a Deco, no seu alheamento olímpico -, não quer saber! E, como se isto já não bastasse, a Quercus também não!
Dos macabros resultados de tanto desmazelo falam-nos as estatísticas:
«Segundo dados oficiais do Instituto da Droga e da Toxicodependência, no ano passado, morreram em Portugal 219 pessoas por motivos relacionados com o consumo de droga – um aumento de 40% em relação a 2004.»
Com tamanha desorganização, com tanta incúria e displicência, admira-me que só tenham sido 219. As estradas matam mais, é certo. Só este ano já liquidaram para cima de 337 pessoas. E são, dizem eles, não sei quem, os melhores resultados dos últimos 30 anos. Tal proeza, supõe-se, após um ror de fortunas gastas em legislações, fiscalizações e campanhas de prevenção. Amarga conclusão: a droga que circula nas artérias sanguíneas ainda não é tão perigosa e letal quanto a droga que circula nas artérias rodoviárias.
Mais detalhes entusiasmantes: esta heroína de imaculada condição, segundo um consumidor experimentado, “tem o mesmo aspecto da outra, mas os efeitos são muito mais fortes.”
“A qualidade é muito superior” – acrescenta, entre o deslumbrado e o dorido, o mesmo atleta do hemochuto – “ sei que em Inglaterra também há heroína como esta porque vivi lá há uns tempos. Quem não estiver avisado morre facilmente de “overdose”.
O jornal identifica-nos este consumidor audaz e viajado como sendo Alberto, proprietário de 35 primaveras, técnico superior de parqueamentos automóveis (“melga”, na terminologia caguinciana; “mitra”, na do meu irmão). O seu depoimento, não obstante, é deveras instrutivo. Ficamos desde logo a saber que o junkieportuguês é, à semelhança de todos os seus compatriotas, um consumado ambulatório - um turista da estupefacção. Anseia estupefazer-se por esse mundo a fora. Quieto no mesmo sítio é que ninguém o segura. Nada de âncoras! Viaja, nomadiza, peregrina. Está-lhe na massa do sangue. O resto que lá mete, na veia atávica, é só um pretexto para a viagem. Para a excursão não apenas psicotrópica, mas também, e não menos essencialmente, globofrénica. Quase aposto que estes toxicodependentes ludâmbulos, aquando de ocasionais encontros ou congressos entre-viagens, também trocam troféus e souvenires em forma de álbuns fotográficos e videogravações. Acompanhados, fatalmente, das legendagens da praxe: “Eu a dar na veia em Hyde Park”; “A Tereza e os miúdos a triparem um ácido porreiro no Bois de Bologne, antes de se prostituirem para a dose do dia seguinte”; “Eu a bezerrar junto aos Alpes”; “O Inácio a vomitar e a malta aflita a pô-lo de borco para ver se ele não se asfixiava, na Praça de S.Marcos”; “Eu outra vez, na ambulância para o Hospital de Geneve, com a minha terceira overdose”; “O Carlitos a ressacar em Berlim - a Vanessa Augusta tinha acabado de fugir com um turco, deixando-o sem abastecimento”; e por aí adiante.
Outra coisa que me aflige, quando não me escandaliza, é a ausência completa de “prevenção drogoviária” por parte do Estado – do Estado ainda por cima Democrático. Isso das “salas de chuto”, só para citar o bibelot mais folclórico, não passa de mera fachada, conversa para enganar tolos. Começa na inadequação do próprio nome: “sala de chuto” lembra escola ou hospital. Nenhum junkie que se preze, daqueles cosmopolitas e mundívagos, com tal tabuleta à porta, lá mete os penates. É garantido. Ou mudam o nome daquilo para “chuto lounge”, ou nada feito. E com separação de áreas de acesso, pois claro - classe executiva, económica, VIP -, que isto da estupefacção não é nenhuma ribaldaria. Há gente das melhores famílias, das melhores castas e proveniências; e das piores, das mais avulsas e banais também. É como em toda a parte. Há junkies de referência, faróis da coorporação, como há trolls anónimos, lingrinhas chupadinhos das carochas completamente irrelevantes.
Depois, a “sala de chuto” pressupõe uma sedentarização que contraria os princípios e leis sagradas da confraria. A não ser que se abram “chuto lounges” nos aeroportos, nos aviões, nos comboios internacionais (a criação de “carruagens especiais para junkies em trânsito” –o chamado “vagon delit” – é uma prioridade)... E mesmo assim, se não forem devidamente equipados com um sistema de “vending machines”, como já existem para cafés, sandochas e chocolates, só que agora abastecidas com as diversas variedades e doses de estupefacientes, leves e duros, não estou a ver como raio se fidelizarão os utentes e respectivos agregados familiares.
E aqui desembarcamos no cerne da questão. O Estado, com a hipocrisia característica, proclama condoer-se com os risco de HIV, hepatites e demais infecto-contágios nos estupefactos profissionais; mas não liga patavina à ameaça fulminante de “overdose”. Quer dizer, aflige-se todo com as condições da dose, socorre todo pressuroso a higiene da mesma, mas não passa cartão à iminência da overdose. Em suma, preocupa-se mais com a limpeza das ferramentas, que com a limpeza do sebo dos operários consumidores. É o costume: o humano, ainda que vegetalizado, que se lixe! Que se foda! Que rebente para aí cavalarmente! Que se envenene, mas nas devidas condições de higiene. Em ambiente asséptico, ultra-pasteurizado. Desarvoramos na droga em regime fast-food. Num mundo não apenas já hospício, mas também açougue McDonaldizado. O que conta não é a essência, mas a mera aparência. A marca e a embalagem.
Estivesse o Estado sinceramente interessado em cuidados básicos, em profilaxia elementar e, além das salas e seringas, trataria de fornecer também o produto. O pó devidamente garantido e rotulado. Indicando os comprovados ingredientes e misturas. O grau de pureza. A dose recomendada, de acordo com a idade e o peso, como qualquer papa Milupa ou farinha Cerelac. O modo de preparação e a data de validade. Os corantes e conservantes –esses malfadados Es, quase todos eles cancerígenos. O ano da colheita. A proveniência. O selo da Região Demarcada, como se impõe a qualquer néctar condigno. O carimbo do fabricante, do importador e distribuidor. Dos Serviços veterinários também. Os avisos como nos maços de tabaco: “A droga pode reduzir o fluxo do sangue e provoca impotência”, “a Heroína prejudica gravemente a sua saúde”, etc. Já que não quer acabar com ela, com a droga aos molhos, ao menos que o Estado regulamente e fiscalize a sua distribuição. Cobre uma taxa como a da radiodifusão – neste caso da “radioingestão” – pela mesma via, ou seja,, devidamente dissimulada nas facturas da electricidade. Que crie um “Código da Droga”, à semelhança do da Estrada, com sinalética e regras de tráfego adequadas. Sinais de perigo como, por exemplo, “Heroína pura”, “estricnina quase pura”, “Cocaína escorregadia”, “Passagem de droga com guarda”, “passagem de droga sem guarda”, “Aproximação de traficante com prioridade”, “turba e contra-turba”, “gado bravo”, “queda de pedrados”, etc; ou sinais de interdição do estilo “trânsito proibido a junkies descapitalizados”, “Sentimentos proibidos”, “proibido fumar”, “proibido beber”; ou ainda de obrigatoriedade, como “zombificação obrigatória”, “vegetalização rápida”, “prostituição a menos de cem metros”, etc. E isto já não falando na própria adequação do actual código da estrada ao tráfego estupefacto, com a criação, designadamente, de passadeiras e corredores especiais para junkies; semáforos psicadélicos; parques de bezerramento; vias rápidas para ressacados com urgências; quiosques devidamente identificados à porta das escolas; facilitação de acessos ajunkies paraplégicos, tetraplégicos, invisuais ou meramente fetichistas de cadeira-de-rodas; estacionamento reservado a dealers; venda em portagens; rede de drive-ins, ou melhor dizendo, drug-ins; áreas de chuto para camionistas; zonas francas de amochanço junto a discotecas; etc.
Mas se o Estado é o descalabro que se assiste, que dizer da Deco? Sim, o que é que a putativa Defesa do Consumidor tem feito na defesa desta classe desamparada de consumidores? Nada! Népia! Nicles! Há contrafacções e mixordices de toda a espécie. Há desgraçados a fumar caldos Knorr, adolescentes crédulos a injectar farinha Branca de neve ou pudins Royal, papalvos a snifar Lauroderme à força toda, e a Deco - a Deco, no seu alheamento olímpico -, não quer saber! E, como se isto já não bastasse, a Quercus também não!
Dos macabros resultados de tanto desmazelo falam-nos as estatísticas:
«Segundo dados oficiais do Instituto da Droga e da Toxicodependência, no ano passado, morreram em Portugal 219 pessoas por motivos relacionados com o consumo de droga – um aumento de 40% em relação a 2004.»
Com tamanha desorganização, com tanta incúria e displicência, admira-me que só tenham sido 219. As estradas matam mais, é certo. Só este ano já liquidaram para cima de 337 pessoas. E são, dizem eles, não sei quem, os melhores resultados dos últimos 30 anos. Tal proeza, supõe-se, após um ror de fortunas gastas em legislações, fiscalizações e campanhas de prevenção. Amarga conclusão: a droga que circula nas artérias sanguíneas ainda não é tão perigosa e letal quanto a droga que circula nas artérias rodoviárias.
Mais perigoso que qualquer uma dessas redes viárias, só há um sítio em Portugal: o útero das mulheres. Em Portugal são feitos em média 20 mil abortos por ano em estabelecimentos clandestinos. Vá lá que sejam só metade...
E depois ainda nos vêm com aquela ficção anedótica dos terroristas fundamentalistas e bombistas que querem atacar-nos para darem cabo do nosso invejável "modo de Vida". Era preciso que fossem extraordinariamente estúpidos, os ditos cujos, o que é duvidoso que sejam. Ninguém perde tempo nem energia a atacar quem já se entrega, cega, febril e paulatinamente, ao suicídio.
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