terça-feira, março 01, 2016

A Neo-esquerda peregrina - Parte I



Embora intimamente inquinada por esterilizações ideológicas e geralmente instrumentalizada pela alta finança ou pelos grandes potentados alternativos (afinal, sem grana não há revolucinhas), a esquerda europeia, nos idos, já remotos, do século XX ainda maquilhava a coisa com causas de alguma forma "dignas", ou, no seu léxico tribal, "socialmente justas". Poderíamos ilustrar a súmula de todas elas como "direito a uma vida digna". O que conferia a superioridade moral à cruzada residia num conceito muito simples e quantitativo: maioria. A maioria era oprimida por uma minoria desumana e locupletora. A esquerda batia-se, assim, denodada e estrenuamente, pela redenção social dessa maioria. A esquerda não era nem nunca foi apenas marxista, mas o marxismo, como agente putrefactivo, acabou a contaminar quase sempre o resto. Pelo que na prática a fórmula redundou quase sempre no : "eia camaradas, só há um modo de nos libertar-mos desta via opressora; vamos ali atirar-nos daquela ponte abaixo". Os pontífices marxistas, aliás, como perversão tardia e descefalizada dos católicos, também sempre estabeleceram não pontes para o além (como aqueles), mas despenhamentos no aquém (como só eles alcançam). Ainda hoje, se atentarem, por exemplo, à nossa Intersindical, andam nisso todos entretidos e satisfeitos. 
Não obstante essa calamidade prática, a retórica, repito, apontava a planos elevados, vitais e vitalícios. Dito de um modo ainda mais abrangente: universais. Não era a recompensa no Céu que os norteava, mas o melhoramente das condições de vida na Terra. No fundo, tratava-se de curar e redimir a humanidade inteira e instaurar o paraíso terreal. O problema da cura se traduzir invariavelmente em purga, amputação e sangria continuada por aplicação de sanguessugas acarretava uma série de embaraços óbvios que a história documenta. Mas descontado o inferno terreal aplicado, ficava a intenção angélica reiterada.
Atentemos agora na "esquerda actual". Cito o seu lema mais recente: "Direito a uma morte condigna". Não podia ser mais exemplar da inversão dos valores retóricos da própria esquerda. A neo-esquerda bate-se  e apregoa-se doravante não tanto pela maioria (novamente sujeita a tripudiação asselvajada das oligarquias possidónias e moralmente alarves), mas por minorias especiosas e burguesas até à medula. Não a preocupa sobremaneira as condições de vida cada vez mais degradadas da maioria, mas certos luxos e caprichos de certas franjas burguesas e marginais da própria sociedade. A causa maior da justa comunidade (relembro que nos situamos apenas no plano retórico) cedeu passo às micro-causas fracturantes. Se o proletário dos tempos heróicos, por definição, tinha apenas a sua prole (ou seja, a sua produção  natural, e era esse o seu único bem), já o troletários urbanos da nova e coquete saga reivindicadeira, ou estão a desembaraçar-se precocemente da sua própria prole (por conveniência) ou estão a adquirir uma prole artiicial (por decreto e glorificação aberrante), ou estão a batalhar pela alienação da prole ou progenitura em vasadouros municipais. Os troletários, em bom rigor, em vez de proletários são doravante prolecidas. O proletariado cedeu passo ao prolecídio. Vão até mais longe: os pobres e indigentes, adivinha-se a cada passo, deverão ser expropriados pelo Estado da sua prole, para que. posterior e convenientemente, possa ser redistribuída  a troletários politicamente assépticos e economicamente salubres. Isto, por enquanto, é latente e velado, mas aponta cada vez mais nesse sentido. Ou seja, até o velho lema da "redistribuição da riqueza" se vai convertendo à redistribuição da miséria e da inerente prole natural. Libertam-se e democratizam-se países e regiões inteiras do "terceiro mundo" à bomba, isto  é, reduzem-se povos inteiros à penúria, ao caos e à violência imarcescível, para depois se (re)distribuirem, não já apenas os despojos materiais e os recursos naturais, mas também as hordas de desabrigados, estropiados e órfãos, em forma de refugiado, asilado, em suma: "vítima". O estatuto de "vítima" é, aliás, pandémico e determinante neste Cine pós-holocausto em sessões contínuas: desde a vítima local à vitima internacional, tudo sob tutoria e bênção mediática da "vítima por excelência ou perpétua". O mecanismo associado é global e impregnante: redistribuem-se as vítimas da violência doméstica (ultimamente, corolada quase sempre de pedofilia) como se redistribuem as "vítimas da violência terrorista ou despótica". Ou seja, a panaceia iluminista, da redenção doravante especializada,  (a fragmentação cientistuta deu nisto) por decreto-de-lei nacional ou internacional, é geral e ubíqua.
Em resumo, se a velha esquerda professava uma retórica universalista, almejando de alguma forma uma transformação do todo (e daí até a sua propensão à deriva totalitária), a nova-esquerda, pelo contrário, e acompanhando as modas e as tendências do consumo, é "especialista". Já não é o todo, nem a maioria que a preocupa: é a partícula social, a nova-tribo urbana, o destacamento exótico, a esquisitice legalizada e a bizarria peregrina.
A Neo-Esquerda é só a velha esquerda depois de deixar cair a máscara? Quer-me cá parecer que sim. Sobretudo se entendermos "máscara" como sinónimo de "retórica". Mas por outro lado é também, e evolutivamente, uma empresa deficitária, herdeira de loja arruinada, em permanente regime de saldos e promoções para atrair clientela. Perdido o mercado, procura agora, desesperadamente, o nicho.


6 comentários:

  1. nova ou velha, qualquer esquerda é preferível à coisa que corresponde ao passos coelhismo.

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  2. E a eutanásia, não vai nada, nada, nada?

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  3. Eles andem aí, andem andem. :))

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  4. A Eutanásia, a eulália, a eunice e, sobretudo, a eufémea, que se fodam.
    Tenho coisas sérias com que me preocupar: o 25 de Abril no bolo-rei, por exemplo.

    E mais interessante que a eutanásia é a utanásia, a paratanásia ou mesmo a metatanásia. Já não falando na epitanásia, a protanásia e a palintanásia. Tudo conceitos fundamentais que eu posso explicar a troco de uma módica quantia.

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  5. calhou ver um doc. ontem sobre Allende. vê-lo discursar é comovente e confrangedor ao mesmo tempo. a ingenuidade do homem e no que deu "o governo do povo pelo povo e para o povo " faz rir e chorar.

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  6. Então vê este, Marina:

    https://www.youtube.com/watch?v=Ci_jKd62rFs

    Phi

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