«Neste fim de século, o valor que se supõe supremo é a Paz, ainda que desligada do Cristianismo; e ser uma nação pacífica é qualidade que basta à incorporação na comunidade mundial. É essa a ética da Carta da Organização das Nações Unidas, e é essa a jurisprudência internacional. São vastíssimas as implicações desta mudança. Nação alguma, com efeito, se declara ou confessa belicista e agressora: todas protestam um pacifismo caloroso, quase místico. Cada Estado ou bloco de Estados pretende o reforço da sua posição com tantos apoios quanto viável; e não se ousa emitir dúvidas sobre o carácter pacífico de qualquer nação, na esperança de que o auxílio a esta concilie a sua boa-vontade para com a política do estado que o concede. Todas são assim indiscriminadamente admitidas no sistema internacional, e no seio do seu grémio mais apurado, que se presume ser a Organização das Nações Unidas. Considera-se deste modo que a paz forma um denominador comum de valia sem par; e o facto significa que todos os demais valores lhe devem ficar subordinados. Está assim a paz situada, pelo menos, acima do direito, da verdade, e da justiça. se a paz for aceite como superior ao direito, haveremos de concluir que o fraco fica sem protecção perante o forte, visto que apenas este, porque dispõe da força, está apto a definir a ordem pública internacional e, através desta, a firmar a hierarquia dos Estados. Pode um Estado desrespeitar todos os direitos de terceiros Estados, e até invadi-los e ocupá-los; mas desde que disponha de força que baste para o fazer em paz, e impor a aceitação do seu acto por terceiros, será havido como pacífico. E se à paz é dada preferência sobre a verdade, regressamos ao maquiavelismo (ainda que mal entendido) em que os fins justificam os meios e os processos, e abandona-se o Estado-pessoa de bem, subordinado à consciência, à moral e à equidade. E se à paz se atribui mérito maior do que à justiça, são postergados os princípios de legitimidade, e nenhuma jurisdição internacional se torna possível. Não haverá paz pela lei ou pelo direito: será a paz dos impérios.
De tudo haver-se-á de concluir que são extremos os riscos que indivíduos, povos e sociedades civis podem correr perante o conceito de paz a que se pretende dar curso generalizado. Neste particular, três aspectos são de destacar: o pacifismo, o desarmamento unilateral, a objecção de consciência. Pacifismo é a paz a todo o preço, quaisquer que sejam as circunstâncias, ainda que signifique abandono, entrega, rendição, perda de independência, vassalagem, opressão, fim. para os pacifistas, todos os demais valores são adjectivos, mesmo irrelevantes; liberdade individual e independência nacional são conceitos a que não atribuem sentido: não existem sequer: e nem lhes ocorre que na sua defesa estão por igual a defender um interesse pessoal também. pacifismo é a paz nos termos do agressor ou do mais forte. E na sua lógica, o pacifismo reclama o desarmamento universal: e em face do armamento poderoso de um adversário, advoga a entrega, preconiza quando muito conversas que sabe terem de conduzir à submissão.
(...)
Decerto: a paz é um valor em si: e nenhum homem responsável nega a paz ou a quebra por método ou doutrina, ainda que a guerra escatológica seja inerente à crónica da humanidade. Mas uma atitude pacifista, como princípio e como doutrina, apenas faria sentido e acaso seria viável - dentro da verdade, da justiça, do direito, da liberdade - se do mesmo passo estivesse claramente definido e delimitado um conceito de agressão, que tivesse acordo geral, e se houvesse mecanismo para a prevenir ou punir. Sucede que em tempos contemporãneos, há mais de meio século que a comunidade das nações tenta definir agressão; e não o conseguiu. Significa isto que cada Estado ou bloco de Estados, que formam o sistema internacional, querem ficar livres de prosseguir a sua política por quaisquer processos, incluindo a guerra; e são esses que mais entusiasticamente defendem o pacifismo para terceiros. E como apenas pratica uma agressão quem tiver força para o fazer, e como os pacifistas e os objectores de consciência não permitem a legítima defesa, concluiremos que é pacífico o que for forte. Só este pode agredir impunemente. Aliás, podem ser múltiplas as modalidades da agressão: militar, ideológica, económica, comercial; por guerra indirecta de subversão e de auxílio a forças subversivas; por intermédio das forças armadas de um terceiro país; por infiltração terrorista; ainda por outros meios. Tudo isto pode tornar impotente e paralisar o agredido; porque o agressor permanece anónimo; ou fica escudado em construções legalistas que podem ter o apoio de organismos internacionais ou de grandes potências, a cujos interesses convenha a agressão; ou abrigado por detrás de doutrinas ou forças - uma mística da libertação, um exército de combatentes da liberdade - que tem recebido o aplauso de um sector do sistema internacional. E todos estes processos são sobretudo utilizados por quantos, de outros ângulos, se proclamam indefectíveis arautos da paz e pacifistas estrénuos.»
- Franco Nogueira, Juízo Final
Tudo isto, sendo indubitávelmente verdade, é um bocado conversa de "beta male", arredado das fêmeas pelo macho dominante da alcateia.
ResponderEliminarSim, porque a treta do estatuto de "amigo e aliado" do Senado e Povo Romanos não foi própriamente inventada ontem, e a frase "casus belli" existe por alguma razão.
Nomeadamente que há aparências a manter, que os vencedores escrevem a história, e que "vae victis".
Ah, e quando o Virgilio falava em "pacisque imponere morem, parcere subiectis, et debellare superbos”, não estva a pensar que o senado romano se tornasse vegetariano.
Quem pode, pode. E os outros aguentam, ah pois aguentam.
E Deus?
ResponderEliminar> E Deus?
ResponderEliminarHá sempre a respostinha tola dos jacobinos - "Não tive necessidade dessa hipótese" - mas eu por mim não percebo o suficiente de teologia.
Mas se calhar uma sociedade em que a frase "temente a Deus" já quase não tem tradução mental (embora se saiba o significado das palavras) não tenha muito a esperar desse lado.
"Eli, Eli, lama sabachthani?", mas não é Ele, somos nós. Bezerros de ouro, temos muitos, a maior parte a prestações. E sabemos a quem os compramos.
Mas esse pormaior é determinante de tudo o resto. Retira-se e fica aquilo que Jünger referiu a propósito de Sade:
ResponderEliminar"Bem, já que estamos todos aqui reunidos neste curral...»
Demolidor. Eu devia ter lido mais desse senhor.
ResponderEliminarLer isto é muito instrutivo, mostra à saciedade como temos estado desde 1910 entregues a atrasados mentais, sejam eles republicanos, salazaristas, do reviralho, marcelistas, comunas, mações ou marcos antónios das jotas. Isto tem uma explicação: a rígida separação num país onde toda a gente se conhece entre os bem nascidos, aqui incluídos os pobretanas filhos de regedores ou presidentes da junta, e o povo, a massa, a chusma, durante décadas e séculos condenada a viver subnutrida, com piolhos, suja e ignorante. Era assim o formidável Portugal da minha infância, esquálido, encardido, sem calçado, esfomeado, com a quarta classe, emigrante, a escrever aerogramas sobre uma guerra tonta, feita pela mesma canalha que dispõe do país desde 1834. É ver os nomes das famílias que mandam, são os mesmos desde então. Isto só podia ter caído com uma revolução, tão tolos eram os cegos salazaristas como os tapadinhos marcelistas, é só podia passar dos comunas bem-nascidos para os gatunos bem nascidos desta republiqueta de entremês. Os socrates, passos, veigas Simões ou filhos de presidentes da junta e outros cabeçudos apenas animam a festa.
ResponderEliminarÉ o apartheid social, ó haja pachorra.
ResponderEliminar:O))
O estado-social é só maquilhagem.