terça-feira, março 31, 2015

Acromiomancia Revisitada - XII. Correntes de ar na Igreja





«O País é Lisboa e o resto é paisagem".


«Os nossos bispos estão a desaparecer. Têm quase todos setenta anos, ou perto. Quando desaparecerem, ficam os novos padres, os progressistas, sem disciplina, e desenvolvendo aquela actividade caótica e sem freio que é própria de todo aquele que de repente se sente solto da disciplina a que estava submetido. Vai ser uma tragédia. Estamos como no tempo das lutas entre o Império e o Papado.»
- A.O. Salazar (A Franco Nogueira, 19 de Julho de 1964)

- «Entre nós, o clero não obedece aos bispos, nem, ao cardeal; e o sentimento dos "progressistas" é que o Bispo do Porto, D.António, e o Bispo da Beira, D.Sebastião, constituem os verdadeiros representantes da Igreja portuguesa.»
- Franco Nogueira, Diário 1960-1968  (5 de Agosto de 1964)

Em Abril de 1922, realizava-se em Lisboa o II Congresso católico. Oliveira Salazar discursa e estabelece a posição da organização, convidando ao ralliement entre os católicos portugueses e as autoridades republicanas. Nos anos anteriores, sobretudo ao nível universitário, a sua acção na defesa intransigente dos valores católicos contra a repressão aberta e declarada por parte da jacobinite instalada fora sempre das mais destacadas e efectivas. Significa isto que a ligação de Salazar à Igreja católica e desta aos primeiros tempos do seu regime decorrera sempre num ambiente duma certa amizade íntima. A concordata negociada por Salazar com a Santa Sé fora mesmo reconhecida pelo Papa como uma espécie de paradigma desejável para todas as outras no futuro. Não restam quaisquer dúvidas que, juntamente com a Instituição Militar, a Igreja católica constituiu um dos sustentáculos meritórios do regime (embora, desde sempre, Salazar cultivasse uma certa separação republicana entre Estado e Igreja, ou dito com mais propriedade, uma "ligação" maior da Igreja portuguesa à nação portuguesa do que ao Vaticano). Em 1923, na primeira página do Novidades, diário católico de Lisboa, o retrato de Salazar aparece como sendo "uma das mais altas personalidades do nosso renascimento nacional": No ano seguinte, por alturas do I Congresso Eucarístico Nacional, Salazar discura novamente, dando voz a uma perspectiva cristã-social. (muito contra a perspectiva da luta de classes). 
Por outro lado, para termos uma ideia do ambiente político que mediou entre o assassinato de Sidónio Pais e a Revolução nacionalista de Gomes da Costa, basta lembrar alguns episódios particularmente ilustrativos:
- Em 19 de Outubro de 1921, a famigerada camionete fantasma: um bando de bolchevistas, em infernal digresão nocturna pela capital, vai prender a casa várias altas individualidades do Estado, que posteriormente assassina com requintes de malvadez;
- Atentados à bomba, greves, manifestações descabeladas, crises ministerias em catadupa, são o pão nosso de cada dia;
- A iminência da tomada do Poder, através do terror, pela legião vermelha era um facto;
-  Num primeiro sinal de insurgimento contra esta degradação generalizada, a 18 de Abril de 1925, o cruzador Vasco da Gama, capitaneado por Mendes Cabeçadas, bombardeia Lisboa.  Anulada a tentativa, os responsáveis são julgados. O Tribunal Militar reunido para o efeito, absolve-os e manda-os em liberdade. Inicia-se então, a fermentação entre a classe militar que deflagrará no 28 de Maio de 1926.
Entretanto, esta revolução militar terá o seu correpondente político no discurso de Salazar de 30 de Junho de 1930. A reacção, por parte do Grão-mestre da Maçonaria, é elucidativa:
«Desde a vitória da Revolução nacional, que a república não é mais do que uma palavra. O estado Novo era qualificadop de 'estado Absoluto', dominador e despótico, revivescência dos Estados imperialistas e teocráticos da Idade Média.
O discurso do doutor Oliveira Salazar, pronunciado a 30 de Julho de 1930, não tinha paralelo na história de Portugal. A concepção de Estado Corporativo, exposta nesse discurso é a mais tenebrosa de quantas presidiram a formação de outros estados ditatoriais.
A mensagem do grão-mestre terminava por um apelo à insuureição para libertar Portugal das "manobras e das cabalas" que tendem a fazer-nos regressar à ignorância medieval.» (in J. Ploncard d'Assac, Salazar).
Seguir-se-ão dez anos conturbados. Comunistas, socialistas congregados na Aliança Republicana Socialista e franco-mações, vítimas da indiferença popular, lançam-se, despeitados, no terrorismo. Desmultiplicam-se em  intentonas, pronunciamentos, revoltas, atentados, em suma, em "manobras e cabalas" beneméritas, onde, dum modo sucinto, estrebucham e conspiram por duas urgências bramantes e luminosas: derrube de Salazar; e União Ibérica. 
Ao mesmo tempo, dado que o projecto salazarista se propunha libertar o país do facciosismo, da partidarite e do sectarismo, os próprios católicos não recebiam privilégios especiais ou distribuições de cargos. 
« - tendo sido o senhor Presidente um dos fundadores do Centro Católico, havendo até quem diga que foi essa organização que o levou ao Poder, a sua atitude foi julgada (...) incoerente, ilógica, talvez ingrata...» - pergunta-lhe António Ferro, em 1932.
Responde Salazar:
-A primeira observação está certa. Eu fui, na verdade, um dos fundadores do Centro Católico na sua forma actual, porque senti a necessidade de colocar a Igreja, como hoje sinto necessidade de colocar a Nação, fora da preocupação de regime. Conseguida essa finalidade (...) acho que a acção do Centro Católico pode com utilidade transformar-se numa acção puramente social. A União Nacional fez-se, precisamente, para destruir o espírito de partido ou de facção, esteja ele onde estiver. os católicos que desejem colaborar com o seu patriotismo na vida política da Nação sabem, portanto, qual o melhor caminho a seguir.

O que significa, então, a Nação, para Salazar? Significa, penso eu, o espaço vital onde todos, católicos, monárquicos, republicanos, nacionalistas, enquanto portadores de uma boa-vontade podem realizar-se na edificação de um Bem Comum - o Bem de Portugal.  (Há uma certa mística nisto; e Salazar, quase posso jurar, acreditava nela).
Pode decorrer disto um conflito com a própria religião Católica se, por exemplo, o "Bem de Portugal" e o Bem do Vaticano não coincidirem? Penso que sim. Isso explicaria em parte o divórcio, que começa a manifestar-se ao longo dos anos 60, entre o regime e uma parte substancial da Igreja - a nova reacção progressista dos peixinhos vermelhos de água benta (como lhe chamava o próprio Salazar)? Não me admiraria. O novo progressismo católico arquejava de suspiros internacionalistas (o próprio catolicismo é, na essência, um internacionalismo, ou transnacionalismo, para os mais sensíveis) e, fruto de promiscuidades várias e contaminações óbvias, começava a soslaiar no portuguesismo isolado uma mutilação dolorosa do frémito humanitário e humanista que por toda a parte desbordava e convocava à festa. O mundo ansiava por receber-nos de braços abertos e bronzeador à descrição, mal deixássemos de oprimir e perseguir os bons dos irmãos terroristas, anjos mandatados das populações escravizadas. Os ventos da história só anelavam por frisar-nos a trunfa e secar-nos o cabelo das ideias novas. Cumpria, sobretudo, democratizar o rectângulo, de modo a que todos estes torvelinhos mentais e novas permanentes pudessem cabriolar à vontade. Embora, para serrmos honestos, à vontade já eles cabriolavam, faltava-lhes, porém, o à vontadinha. E quanto mais à vontadinha se fica, mais opressões insuportáveis e freios escandalosos se esquadrinham e catam. Retenho na memória, como figura emblemática desse tempo, um cromo baboso que me causava particular asco: o Alçada Baptista. Havia ali qualquer coisa de gastrópode sem casca, deixando um rasto de ranho viscoso à passagem (aquela tirada já posterior, em plena democracia das bananas, de querer corrigir o próprio hino de Portugal diz tudo da lesma escrevinhante)...
Contra o regime austero militava também o rescaldo do Vaticano II. Salazar acreditava que Paulo VI iria ser um mártir (iriam trepar por ele acima e despejar por ele abaixo) e que daí por uns vinte anos viria um outro Papa para colocar tudo nos eixos. Mas o certo é que estas novas excentricidades eleutéricas do Vaticano não auguravam nada de bom para a causa Ultramarina portuguesa. De serviço ao fole da História para grão-cagaço de meninos ou espantalhamento de moscas, o duo passava a trio: Americanos, Soviéticos e Vaticanenses. Era obra. E não seguramente de Deus.

O facto é que no fim dos anos 60, coincidindo com o crepúsculo do próprio mentor/fundador do regime, um dos seus sustentáculos principais transforma-se numa das suas fontes de instabilização. Salazar tem a clara percepção de que chegou ao fim e que, infelizmente, esse desenlace natural coincide com o momento histórico mais desfavorável: Portugal está no auge da tempestade, no olho do furacão... Se aguentarmos mais dez a vinte anos teremos ultrapassado este obstáculo, profetiza. Um novo Papa viria, os Soviéticos ruíriam certamente e os Kennedys, pela sua hubris desvairada, já haviam até convocado a própria nemésis. A pequena casca de noz só tinha que se aguentar à borrasca, indiferente a ventos e mostrengos...
A nau até teria aguentado, estou em crer (em 1974, até já passara o pior no terreno ultramarino)... Faltou a vontade que ata ao leme.


PS: Bem sugestivamente, os medievais catalogavam as hostes demoníacas na categoria dos gasosos aéreos, voláteis.

PS2: Há também um paralelismo inequívoco entre o princípio e o fim de Salazar: aquilo que vai desaparecendo com os primeiros tempos da sua acção ordenativa, começa a reaparecer gradualmente com o desvanecer dessa mesma acção. Se repararmos bem, em 1974 (prenunciada e preludiada por toda uma efervescência crescente durante o Marcelismo) retoma-se, em apoteose histriónica de fim de recalcamento prolongado, toda a balbúrdia aleivosa e grotesca que antecedeu e motivou a Revolução Nacionalista de 1926. Mais do que uma qualquer revolução da qual ninguém fazia a mais pequena ideia, tratava-se duma descompressão, duma larilice emancipada, em suma, dum país maricas a sair do armário. Desfechando, por vingança pura, acima do seu desamor íntimo, um  rancor entranhado, um ódio amontoado à paisagem com quem o tinham obrigado a casar.



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