Curiosamente, se formos consultar o Dicionário Lello Ilustrado da Língua Portuguesa, por alturas da última década do século XIX, pode ler-se na definição de "Terrorismo": "Sistema, regime de Terror, em França (1793-1794). Por extens. Sistema de governo por meio do terror ou de medidas violentas.". Até 1974, a definição mantém-se a mesma".
E, dado que corresponde a uma realidade histórica muito concreta e bem documentada, não deixa de ser, no mínimo, irónico. Quer dizer, o resultado das ideias iniciadas por Descartes, Locke e Hobbes, prosseguidas e transpostas seguidamente pelos noctiluzes, vulgarmente conhecidos por iluministas, e aplicadas na prática pelos revolucionários de Paris, resultaram no triunfo duma máquina, isto é, no regime duma máquina - a guilhotina. Cuja invenção, recordo, e estudei a fundo a sua génese, obedeceu a crítérios e preceitos humanitários. Não brinco: impunha-se executar o condenado com o menor sofrimento possível. Requeria-se o mais limpo e asséptico dos despachos. Doravante, ser executado já não doeria quase nada. Daí à banalização da degola benemérita, foi um pequeno passo. Afinal, a máquina inclina fatalmente à indústria, à produção em larga escala, no caso, ao abate em série. E em ambiente de festa. Como não festejar tamanho avanço do progresso, da tecnologia e, porque não dizê-lo, da própria ciência anestésica?!... Agora o crente, embora forçado, já não recorria ao confessionário para ablução dos pecados: era levado à guilhotina. Esta, com proficiência e rapidez, separava e removia a parte inconveniente.
Como refere Jaques Delarue, na sua "Profissão de Carrasco", acerca da filantrópica decapitadeira:
«Instrumento familiar, deram-lhe nomes ridículos e atrozes: postigo, navalha de barba nacional, chapa de fazer notas, gateira, encurtadora nacional, navalha de barba à Carlitos, porque o carrasco, Charles Sanson, fora, havia muito tempo, baptizado Carlitos pela populaça. Nas bacias de barbeiro liam-se frases como esta: "A minha navalha é mais macia do que a do Carlitos!"
(...)
Subir ao cadafalso era jogar ao frio ou quente, fazer o pino, marcar hora no postigo, meter a cabeça na janelinha, espirrar no saco(...) e, depois de 1793, experimentar a gravata à Capeto.
(...)
Criou-se uma verdadeira imprensa especializada para celebrar as façanhas da máquina nacional. O cidadão Tisset publicava regularmente uma folha que trazia no frontispício cadáveres de gente da corte, bispos e generais empilhados junto ao cesto da guilhotina cheio de cabeças cortadas. Por baixo deste desenho liam-se dois versos:
Estes monstros empilhados por omnipotência divinaProclamam a obra da Santa Guilhotina
(...)
Por último, o mais célebre destes jornalistas muito especiais, Hébert, excitava diariamente com o seu Père Duchène os mais baixos instintos da populaça e injuriava as vítimas imoladas.»
Há, pois, um certo tipo de humor jornalista, bestialmente democrático, com tradições em França. Um riso típico das hienas nas imediações do açougue. Uma mistura de escárnio e injúria soez perante a desgraça (ou desclassificação) alheia. Um lançamento rapazola de carniça ao magote, um atiçar à matilha....à bulha.
A turba-multa da época alcunhara Carlos Samson, o carrasco, de Carlitos. Em francês, Charlie. Era o personagem mais pitoresco de Paris. Foi o único funcionário que transitou do Anciènt-regime para a revolução e seguintes. Decapitara, esquartejara e enforcara na monarquia, guilhotinou na república e no Império. E é a esse Charlie que, muito provavelmente, remonta o Charlie antes do Hebdo. Ao funcionarismo do abate. Só que agora, a bem da democracia, nem os mortos, nem os deuses escapam. Tortura-se, infama-se, expõe-se e pelourinha-se em vida e em éfigie. Ao gosto da moda ou do pagante. A nova revolução perpetua-se muito por regurgitação. Já nada promete: apenas rumina. Nutre-se no seu próprio vómito. O carlitos tem uma máquina cada vez maior, uma engrenagem cada vez mais voraz para servir. E uma plateia cada vez mais rasteira para entreter.
Em Paris, do parto iluminista, nasceu um novo e sempreviçoso totalitarismo: o Totalitarismo da Morte. Exactamente o mesmo que estas bestas do Estado Islamico servem. Embora sem quaisquer preceitos filantrópicos nem dispositivos tecnológicos suavizantes. Degolam à mão.
Em Paris, do parto iluminista, nasceu um novo e sempreviçoso totalitarismo: o Totalitarismo da Morte. Exactamente o mesmo que estas bestas do Estado Islamico servem. Embora sem quaisquer preceitos filantrópicos nem dispositivos tecnológicos suavizantes. Degolam à mão.
Ai a navalha de barba à Carlitos
ResponderEliminareheehe
O palonço do aventalício do Rui Ramos ainda vai propor o dia do ódio democático
Curioso...julgava que o Charlie Hebdo fora buscar o nome ao defunto Charles,o De Gaulle, em honra do qual fizeram uma capa no dia da sua morte, anunciando um baile trágico em Colombey Les Églises, com um morto.
ResponderEliminarEssa será a genealogia exotérica. Ou histórico-wikipédica :O)
ResponderEliminarPorque a explicação esotérica é mais irónica e explica a coisa segundo as causas formal e final. E os princípios...
Pois, de facto a realidade imita a ficção que por sua vez se baseia noutra realidade.
ResponderEliminarO Charles Schultz que também bebeu leite kosher apelidou o seu herói de casota Charlie e mandou-nos comer amendoins durante décadas.
E houve quem comesse às toneladas, torradinhos e refogadinhos em cozinha kosher.
Evidentemente estas coisas têm o seu pedigree...
Há muito que faço distinções de gosto por causa desse pedigree.
ResponderEliminarGosto de comer alguns produtos, mas sabendo o que como.
Do que não gosto é mesmo comer sem saber a que sabe.
Bob Dylan: até 1975 gosto de todos os discos e têm esse pedigree.
Paul Simon: idem aspas.
Filmes do Spielberg: gosto de muitos, sabendo a carga que contêm, tal como a maioria dos filmes de Hollywood.
Pintura: perco-me pelos kandinskys e pelos Chagalls e por muitos outros. Mesmo sem pedigree são a forma mais pura de isenção de pedigree.
E por aí fora.
Depois lembro-me de Gil Vicente e fico tranquilo.
Somos todos daqui e esses pedigrees só têm importância para se saber a linhagem. Mais nada.
O Dylan subscrevo. Embora o meu herói seja o Reed. Do Kandinsky é a minha filha que é fã.
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