domingo, outubro 21, 2012

O Mal Comum - I




Um povo que perde ou abandona a noção de bem comum acaba fatalmente sitiado pelo seu reverso - o mal comum.
Dir-me-ão que o conceito de "bem comum" não passa duma obsolescência medieva, ou, pior ainda, salazarenta. Bem, entre outros seguramente óbvios, começo por fornecer um termo básico,  imorredouro - e nada metafísco, por sinal! -que traduz o "bem comum": território.
Quando na filosofia falamos em definições (singularidade essencial ao pensamento e à sua capacidade conceptual), significamos o estabelecimento de diferenças, linhas específicas de demarcação. São essas linham que permitem o pensamento, pois são elas que permitem a extracção do ser das coisas à indeterminação do caos. Andamos nisto desde Hesíodo. Dizer, assim, o que uma coisa é é sincreticamente estabelecer também o que ela não é.  Lembro-me de iniciar aulas de Ética com a seguinte afirmação peremptória (e provocativa): "Um homem não é uma puta". Partíamos do não-ser do homem para alcançar a sua essência prática.
Ora bem, como equivalente às definições, em termos de territorialidade, temos as fronteiras. Delimitam, definem e determinam. Ou seja, manifestam uma forma, uma essência e uma vontade próprias. A forma radica na geografia, a essência na demografia e a vontade na política. O que é que que acontece a um território que abdica das suas fronteiras?  Padece um triplo prejuízo: geográfico, demográfico e político.
Quando eu referia a definição negativa de homem como "não-ser puta" estava a sacrificar a erudição à eficácia. A mesma fórmula podia ser esboçada como "o homem não é uma mercadoria". E aqui entraríamos em confronto com toda a idade moderna, quer mercantileira, quer marxista, isto é, quer de esquerda, quer de direita, porque, no essencial, materialista toda ela. Entretanto, quem diz um homem, diz um país, ou seja, um território com o respectivo povo e o governo desse povo. E o que a máxima exprime não é simplesmente que a essência do homem não se vende nem compra; é bem mais vasto que isso: é que essa essência não se negoceia, não é negociável, não pertence de todo ao nível do comércio. É uma propriedade inalienável! Não pode ser submetida a qualquer tráfico, seja ele de conveniência ou de imposição.
Agora, repare-se: mais que curioso, é sintomático, como num tempo em que aqueles que erigem a propriedade como direito e conquista suprema da civilização mais não professem que a sua antítese, ou seja, que nenhuma propriedade no fundo  pertence genuinamente a nenhum homem pois todas elas pertencem ao mercado. Já que tudo é transaccionável, o homem resume-se apenas a um gestor de transacções, que age de acordo restrito ao interesse, à conveniência ou à imposição. E à imposição, imaginem, de quem? Pois, do Mercado!
A propriedade privada é um roubo, clamava Proudhon. Na verdade é um mito, uma fantasia, se tanto, um transe. Todo o nosso tempo é um atestado lúgubre do contrário da minha fórmula: o homem não tem nada de próprio e, não sendo nada de concreto, pode flanar na ilusão de que pode ter tudo e mais alguma coisa e, nessa exacta medida, ser tudo e o seu contrário: desde puta a semi-deus, ou mesmo nalguns casos mais delirantes, deus em pessoa. O resultado de homens impregnados desta substância mental é países e povos também eles entregues à voragem, não já apenas da necessidade, nas dos negócios e das transacções, ou seja, dos "Mercados". O caso é que doravante já não temos uma ordem que se eleva do caos, mas a desordem caótica instituída como ordem indiscutível, sublime e inescrutável..

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