domingo, setembro 16, 2012

Última Estação






O poema que se segue foi aqui postado em 2005, sob o título "A sangue frio". Mas a verdade é que foi escrito em 1987, constituindo então a letra duma canção intitulada "Inferno 87". Na altura, "Inferno 87" transmitia aquela que era a minha visão, assaz sombria, do fenómeno principal da época cá na paróquia: a nossa fresca adesão à CEE. Respiravam-se então os entusiasmos primaveris da recente lua de mel. A mim, todavia, o futuro não me parecia nada brilhante, nem o presente desse tempo nada auspicioso. Mandam histórias antigas que se desconfie dos presentes oferecidos por estrangeiros - e se o cavalinho de pau de cada homem é coisas sagrada, já os cavalos de pau gigantes nunca foram hipismo recomendável.  
  

Filhos da campa-berço
a caminho da masmorra ginásio
Olhos virados do avesso
sistema de rega por naufrágio;
Bar-restaurante de venenos
a dentadura-bisturi
O feto-camisa de Vénus
máquinas de suplício ao Ralenti...

Um açougue-infantário
um antropófago com ténia,
A máquina da Felicidade ao contrário
academia de carrascos em vénia;
Agrilhoado à morgue-escola
um cadáver repetente,
Um oceano de coca-cola
um esgoto presidente...

Três caixões ortopédicos
um suicídio por contrato,
mil conselhos médicos
sobre a autópsia-parto;
Uma retrete-manjedoura
um esqueleto de bikini,
burocratas em salmoura
vermes com pedigree...

Um trono-patíbulo
um cancro benigno,
capelas de prostíbulo
um genocídio por signo;
Um cemitério climatizado
universidades da putrefacção,
um eunuco apaixonado
chatos de elite e estimação...

Uma hóstia-supositório
mumias com nervos em franja,
Férias pagas no purgatório
arsénico com sabor a laranja;
O homem autónomo perfeito
parafusos, cabos e canos
uma bomba eléctrica no peito
a boca fundida ao ânus.

Répteis de sangue quente
A puta que Deus não pariu...
Um deserto de gente
A realidade a sangue frio.



Faltará apenas acrescentar que, na sua qualidade de letra de canção, o poema tinha inicialmente refrões entre as estrofes. O último rezava assim:

   Última estação
   este país promete...
   Podem aterrizar
 - Benvindos a Inferno 87!...


Pois agora que finalmente aterrámos, já podemos todos conferir o resultado das promessas... E não é exactamente o paraíso, a "terra do ouro e do mel prometida", pois não?  
Há algum prazer ou glória em ver as coisas antes de tempo? Bem pelo contrário: há apenas o desprazer e a angústia multiplicados de quem assiste impotente aos desfiles da fatalidade, a que os gregos chamavam Moira, e nós conhecemos por  Destino.
As catástrofes não acontecem apenas aos indivíduos: visitam também os povos e nações.




21 comentários:

  1. Um poema tremendo de realismo. Tão verdadeiro! Exemplo da cidade abandonada por Deus. A mesma cidade que expulsou Deus. E há-de chegar o momento em que os ultimos a fugirem serão apodados de responsáveis. Talvez crucificados! Nem dragões nem interregnos hão-de escapar à voragem.
    Abraço e aplauso, quanto mais não seja pela Resistência!

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  2. Abraço, JSM.

    Sempre bom revê-lo!...

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  3. Digníssimo Dragão

    Qual a sua opinião sobre a televisão?

    Deve ser pública ou privada?

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  4. Caro Faroleiro,

    a minha opinião sobre a televisão é conhecida em praticamente todos os continentes... Nem pública, nem privada: extinta!

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  5. já que a coisa está tipo "discos pedidos"(...)

    Distinto réptil,

    qual a sua opinião sobre a prestação cívica do sr. Viriato Marques?

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  6. AHAHAHAHHAHA

    Eu defendo o mesmo- extinta toda ela. Isso é que era verdadeiro serviço público.

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  7. não acabem com a 2, tv ou rádio, please...

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  8. Quem é o ser Viriato Marques? Embora contrariando os hábitos e costumes de toda a blogosfera em geral e da lusolândia em particular, não consigo ter opinião sobre algo que desconheço.

    PS: entretanto, e aqui imitando os meus congéneres, vou ver ao google.

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  9. Ah, espere lá, minto. Caso se refira ao Dr. Viriato Soromenho Marques... Ah, esse conheço, pessoalmente. Cá em casa, eu a srª Dragão, quando o vemos na pantalha, exclamamos: olha, lá está o Soromenho. O viriato e o Marques jamais nos ocorreriam.
    Bem, mas vamos à questão. O tipo tem prestações cívicas, é? Olhe, antes cívicas que bancárias. Nisso já leva alguma vantagem em relação à generalidade da malta. A maior parte das pessoas não tem tempo (nem antena) para prestações cívicas porque está atolada em prestações bancárias. Neste país, aliás, há mesmo essas duas classes distintas de cidadãos: os que têm e ostentamm prestações cívicas e os que são possuídos por prestações bancárias. Comenta-se, cada vez menos em surdina, que a existência (cada vez mais dramática) destes é consequência directa das prestações daqueles, ou seja, a prestação cívica duns tem redundado, ano após ano, na prestação onzeneira (já transnacional) de outros. Não me admirava nada.
    Na verdade, não tenho acompanhado com muita atenção a fulgurante carreira do Soromenho. Enfim, civilidades à parte, a ideia que dele tenho é a de uma pessoa suporífera, com o brilho e a densidade duma pedra-pomes. Também não surpreende, se tivermos em conta que o chamado "pensamento de esquerda" em mais não consiste que numa forma de esterilização mental, donde resulta, regra geral, uma disfunção eréctil do espírito crónica.

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  10. ehehehe

    Mas é uma pedra-pomes ecológica

    ":O)))))

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  11. sempre sagaz, estimado réptil...
    Grato pela opinião. O regime multiplica-se em faces, apesar da redundância de conteúdos.
    Abraço

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  12. Longe vão os tempos em que Pimentas e Agostinhos nos deliciavam em fugazes aparições televisivas... isso é que era gente de estatura imensurável...

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  13. O J Pimenta? Julguei que esse era mais prédios... Aliás, um ilustre precursor, um intrépido pioneiro dos rutilantes tempos que se seguiriam. Agora o J Agostinho, esse sim, esse era fugaz apenas na medida em que era rápido, não descansava enquanto não se punha em fuga e pedalava levado de seiscentos diabos, Deus o guarde!... Nunca mais tivemos outro igual, com um coração daqueles!...

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  14. o dragão devia escrver posts com os comentários que escreve e (algumas vezes) em vez de alguns posts que escreve metê-los nos comentários (ou metê-los na saniata depois de terem exercido o seu papel)

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  15. Optimismo seu, ó caro faroleiro!

    Sou de opinião, aliás convicção reflectida, que são todos, isso sim, dignos da retrete. De resto, nem imagina a trabalheira que é ir com monitor, atrás de monitor, para o troninho. A trabalheira e o dispêndio, reconheça-se. Mas mesmo assim, graças à racionalidade supimpa dessa coisa santa chamada capitalismo, sempre me fica mais barato que comprar tinteiros.
    Pode até calcular o contributo que não tem sido o meu para a dívida nacional. Ele é Samsungs, Fujitsus, HPs, LGs, e até Sonys - sim, até Sonys! -, atrás de Samsungs, Fujitsus, HPs, LGs e Sonys, pasme bem. E, ainda por cima, tudo comprado na candonga, furtado aos impostos, como manda o ministro.

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  16. eu também

    felizmente que a tecnologia dá nisto

    fode o capitalismo e liberta os oprimidos

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  17. Se eu foder o capitalismo, dado que ele está fornicar ininterruptamente os oprimidos, redunda assim tudo numa espécie de comboio, uma mariquice pegada, não é?

    Não me excita o capitalismo. Eu é mais senhoras, altas de preferência.

    Por outro lado, os oprimidos levam muito a mal que se lhes tire o capitalismo de cima. Reagem mesmo com brutalidade. Não, com casais sado-masoquistas é que eu não me meto!...

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  18. Há até aquele ditado popular: "entre marido e mulher ninguém meta a colher".

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  19. Por outro lado, os oprimidos levam muito a mal que se lhes tire o capitalismo de cima. Reagem mesmo com brutalidade.
    LOL LOL LOL

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