«Esquecendo que Roma não era um Estado moderno, muitos historiadores consideraram estes princípios antigos como uma perversão dos princípios modernos; bradaram que em Roma a corrupção, o suborno e o clientelismo grassavam por toda a parte, ou então nada disseram sobre o assunto, considerando que tais "abusos" tinham um interesse meramente anedótico. Segundo os princípios modernos, um homem público não serve verdadeiramente o Estado se se aproveita das suas funções para encher os bolsos ou se coloca a ambição pessoal à frente do interesse geral. Isto é esquecer que o Estado moderno não é a única forma eficaz de dominação: um racket, uma mafia são-no da mesma maneira. A mafia, que protege e explora os italianos imigrados de uma grande cidade americana ou os trabalhadores imigrados de uma cidade francesa, preenche uma função "pública"; administra a justiça entre esses recém-chegados e protege-os contra o resto da população, por solidariedade nacional; tem de se devotar aos seus compatriotas sob pena de perder toda a credibilidade; trabalha para o bem deles, e por isso governa-os paternalmente. Ela desempenha tanto mais conscienciosamente o seu papel quanto o dinheiro que consegue extorquir a tais imigrados tem esse preço: quem protege controla e quem controla pilha.»
- Paul Veyne, in "História da Vida Privada"
Em tese, o Estado moderno ostenta inumeráveis virtudes e vocações angelicais. Na prática, porém, emula, com requintes burocráticos, o paradigma romano. Na verdade, mais até que emulá-lo, resgata-o às inibições cristãs (entenda-se católicas) da Baixa Idade Média. A diferença entre o "Príncipe" maquiavélico e o Padrinho mafioso é muito ténue, se é que existe.
Por outro lado, a mafia concretiza na realidade do mundo o ideal liberal do mini-Estado. Um Estado de funções básicas e exclusivamente devotado aos negócios. São pois tremendamente injustos todos aqueles que acusam de utópicos os liberais; tanto quanto estes são desonestos de todas as vezes que, à bela maneira dos comunistas hagiográficos, se ilibam de qualquer experiência pura na história. Capcitem-se e assumam: o liberalismo puro existe. E até funciona.
Um romance de ficção científica, The Syndic de Cyril M. Kornbluth, explora precisamente a hipótese duma América futura em que o Estado soçobrou e as rédeas da governação foram tomadas pela Mafia.
ResponderEliminarOra bolas, isso não é ficção e muito menos científica...
ResponderEliminarOlhe, Dragão, Vexa sabe, i.e., tem saber. Apesar do fel nostálgico de quem vive num, agora, país de caca (como eu o entendo...), a grande maioria dos seus posts são de alto nível. Pelo que me cumpre cumprimentá-lo. Eu tenho pena de não ter vivido há 500 anos, quando fomos a maior potência mundial e, claro, porque demos porrada aos infiéis. Deus o abençoe e lhe dê uma alegria, volta e meia.
ResponderEliminarExcelente ideia que tiveste em ir buscar o Veyne.
ResponderEliminarE é mesmo assim- o Estado Católico é substituído pelo liberal-moderno.
o Estado Católico é substituído pelo [Estado] liberal-moderno.
ResponderEliminarAqui, Estado tem o mesmo significado? É, efectivamente, a mesma coisa?
Ser católico ou liberal é característica do estado, ou é cada um deles um estado, católico ou liberal, respectivamente?
Estado= civitas- É característica de Estado moderno. Tem o exemplo do Maquiavel e depois o Leviathan do Hobbes.
ResponderEliminarA noção de civitas medieval é a católica e foi precisamente para a substituir que apareceram estes teóricos modernos
Não se trata de as pessoas "serem católicas ou liberais".
ResponderEliminarTrata-se de um modelo não católico (liberal- utilitário) que se opõe ao modelo medieval católico.
Olhe aqui um bom exemplo da mudança em Inglaterra:
ResponderEliminarhttp://youtu.be/UfceiMe45go
Dragão, The Syndic é ficção, sim senhor. Li-o há tantas décadas que já não me lembro se é ficção utópica ou distópica, mas ficção é. De acordo consigo quanto ao não ser "científica", a não ser no sentido convencionado e banal da expressão.
ResponderEliminarEu não me referia ao "The Syndic": referia-me ao enredo do mesmo. Desde quando é que a realidade presente é ficção científica?
ResponderEliminarE mesmo há décadas atrás já assim era. Parece-me mais uma obra do género satírico.
mas já quanto à ciência propriamente dita, aí sim, estaremos certamente em desacordo: toda ela é ficção... científica. E de péssima qualidade literária, diga-se.
:O))
Estado igual a Civitas? Não exactamente, zazie. Hobbes não teve qualquer dificuldade terminológica com a escrita de De Civitas, mas teve-a com a escrita de Leviathan, que é basicamente o mesmo texto em inglês.
ResponderEliminarHobbes usa recorrentemente a palavra "Common-wealth", que define assim no Cap. XVII:
«[T]he Multitude so united in one Person, is called a COMMON-WEALTH, in Latine CIVITAS. This is the Generation of that great LEVIATHAN, or rather (to speake more reverently) of that Mortall God, to which we owe [...] our peace and defense.»
Está a ver o problema terminológico de Hobbes: se "civitas" equivale a "common-wealth"; se este termo não corresponde, a não ser imperfeitamente, ao que o autor tem em mente; e se para isto ainda não existe, no vocabulário político da época, um termo consensual, Hobbes é obrigado a criar uma metáfora: o Leviatã, o Mortall God, o Artificiall Man. E talvez esta dificuldade terminológica, mais do que o propósito de maximizar a divulgação duma tese que o autor tinha por definitiva, explique a dupla publicação em latim e inglês.
Também Maquiavel oscila em matéria de terminologia. Na versão portuguesa d'O Príncipe, a palavra Estado aparece uma vez, nas páginas iniciais, num sentido próximo do de "Estado Moderno" (que é o que Hobbes não consegue exprimir senão metaforicamente, e que corresponde a State no Inglês de hoje). No resto do texto, contudo, a palavra "Estado" tem mais o sentido de "possessão", como em "Estados Papais" (ou, em Inglês actual, estate).
Recuando ainda mais no tempo, civitas aparece-nos frequentemente, com efeito, nas várias retóricas do Cristianismo; mas como ignorar que o latim civitas não só substitui (por razões doutrinais óbvias) o termo res publica, mas traduz exactamente o grego polis de Platão e Aristóteles?
Já havia a tradição da Laude Civitatis, na qual o rei simbolizava o Reino e este era era um espelho moral da Jerusalém Terrestre.
ResponderEliminarSe The Syndic é uma sátira (hipótese que não rejeito), então é uma sátira que aponta para dois alvos iguais e opostos: um que existe e para outro que não existe. Ou seja, intencionalmente para um liberalismo puro e presente; e inadvertidamente para a sua imagem virtual, igualmente pura, exaltada como utopia (fútil) por Ayn Rand.
ResponderEliminarQuanto a qualidade literária, recordo-me o suficiente de Atlas Shrugged para dizer que é péssima; em relação a The Syndic, nem isso.
Mas não era a polis. Era a cidade que simbolizava o Mundo. E havia Cidades do Bem e Cidades do Mal Jerusalém e Babel.
ResponderEliminarA noção de civitas desenvolve-se nesses conselhos morais para os príncipes e é daí que vem a noção de civilização.
O Cortesão, do Batasar Castiglinone deve ser o antecedente mais próximo do Príncipe de Maquiavel.
O Dragão está a dizer é que a América já é assim, sem precisar de ficção alguma
ResponderEliminarahahahhah
De qualquer forma, eu escrevi Estado católico e Estado Liberal/Moderno, porque o Muja não estava a perceber que eram entidades diferentes.
ResponderEliminarOnde uma dá lugar a outra, é isso.
ResponderEliminarAh, a Grande Utopia medieval, talvez a mais bela (geometricamente) que jamais se inventou...
ResponderEliminarPois era. O grande teórico dessa civitas medieval- do Reino- foi o Tomás de Aquino
ResponderEliminarÀs vezes penso nisso. Desapareceu e era perfeita.
ResponderEliminarPois. Tal e qual.
ResponderEliminarAgora a tal Ayn Rand, essa da utopia fútil assenta-lhe que nem uma luva. A tipa é também outra coisa em estado puro: vómito.
Pois, na América já é assim, mas o que é a City Upon a Hill, esse cume do excepcionalismo americano, senão a Jerusalém Terrestre? Talvez a mafia americana possa erguer para ela os olhos, mas a siciliana? E a marselhesa? E a russa? Que luz pura e redentora se derrama sobre estes liberalismos?
ResponderEliminarSão sucursais.
ResponderEliminarO Liberalismo é a ideologia que se nega como tal; pergunte-se a um liberal e ele dirá que é contra o predomínio de qualquer ideologia ou de qualquer religião... excepto a dele.
ResponderEliminar.
Toda a ideologia é uma quase doutrina religiosa, no entanto um liberal coloca o liberalismo acima dos valores, das tradições, das religiões e ideologias comuns, das normas para se viver em sociedade... e num plano mais elevado, do que qualquer concepção ideológica e religiosa. Aos olhos de um liberal os adeptos de qualquer ideologia que não seja o Liberalismo são "totalitários” ou “fanáticos” ou, no caso portugues da blogosfera dita liberal, denominam quem discorda de "socialistas".
.
Esta atitude arrogante dos únicos possuidores da verdade faz-nos lembrar a narrativa judaica do Velho Testamento, onde os devotos de Um Só Deus se presumem estar num nível superior ao dos pagãos.
.
Alguns académicos descrevem o Liberalismo como Protestantismo secularizado.
Eu presto mais atenção à tendência anti-solidariedade e excessivo enfase nos desejos individuais que o Liberalismo destila... e vejo o Liberalismo como Satanismo secularizado. Até nos postulados ou principios.
.
O Liberalismo tem tudo a ver com o culto da globalização materialista e anti-religiosa, com o neo-liberalismo, a alienação consumista, a negação das raízes, a destruição da família e da natureza.
.
A visão liberal promove o EU, um modo de ver o mundo egocentrica, angustiada, narcisista, satanica enfim.
.
Rb
não percebo esse seu exemplo do youtube Zazie...
ResponderEliminarQue é que tem a casa de malucos que ver com isto?
De qualquer forma gostei de ver.
O exemplo do youtube é uma canção popular que se espalhou em Inglaterra, no seguimento da Reforma.
ResponderEliminarOs conventos foram abolidos e era aí que os mendigso e pobres encontravam apoio e refeições.
Com a ética prot tudo isso foi considerado loucura e passaram a prendê-los- todos juntos- mendigos, loucos, vagabundos nesses hospícios.
Este conta a história de um rapaz que foi parar a Bedlam. Aí os maluquinhos serviam de distracção ao domingo.
As pessoas pagavam 1 penny para os irem ver e davam-lhes canas para lhes baterem na cabeça.
As ilustrações seguem uma sátira do Hogarth (e também Swift- Conto de um Tonel) que recordaram esta tradição inglesa.
http://cocanha.blogspot.pt/2009/05/proposito-da-caridade-puritana.html
ResponderEliminarHmm. Ok, percebo agora.
ResponderEliminarMas então, o Estado Liberal/Moderno é, por definição, Protestante? Ou o protestantismo tende a criar estados liberais?
Como é que se relacionam as duas coisas? Dá-me a impressão que Vs. as relacionam, mas escapa-me alguma coisa...
Boa pergunta.
ResponderEliminarDeixa essa para a o Dragão. Eu também gostava de saber qual a continuação teórica do Maquiavel nos países católicos.
Mas a continuação do Hobbes vão ser as Luzes e em França a Revolução e depois o jacobinismo.
http://dragoscopio.blogspot.pt/2008/07/quem-possa-interessar.html
ResponderEliminarPode ser interessante como ponto de partida...
Obrigada, Dragão.
ResponderEliminar«Da ausência de fundamento real germinarão todos os fundamentalismos inerentes aos sucessivos "renascimentos morais". A retórica política tentará sempre compensar o vazio ontológico.»
ResponderEliminarEste teu texto do maquiavelismo é genial.
Ocorre-me perguntar se não haverá mais convergência que divergência entre uma tradição protestante que vê na pobreza um vício a punir e uma tradição católica que vê nela uma virtude a cultivar. Sobretudo depois da peripécia fatal que foi o encontro das duas, alta noite, numa qualquer esquina de Estrasburgo.
ResponderEliminarA pergunta está mal colocada. A começar pela equiparação: não há nenhuma tradição protestante. E a católica já foi às urtigas há muito tempo, não teve ocasião desse tal encontro à esquina. No caso protestante, há uma evolução. Eles estão sempre a evoluir, ou ainda não reparou nisso? Nada de tradições. É o self-made-mundo a cada instante O mercado não pára um minuto quieto.
ResponderEliminarPor outro lado, colocar a coisa em termos de pobreza também não cola. Deve colocar, pelo contrário, em termos de riqueza. A ideia não consistia simultaneamente nessa ficção hipnótica e nesse engodo de que, por via da emancipação (histórico)científica íamos todos ser riquinhos da silva?
Bem, está à vista a bela cornucópia.
Bom...pois a mim quer-me parecer que a tal de Rand tinha era falta de....humm...bom....
ResponderEliminarDe qualquer maneira até nem desgosto dos livros dela, nada disso!
O que se passa é que em vários estabelecimentos comerciais encontra-se bem melhor. E de folha dupla!