«Mas escutai as misérias dos homens; escutai como, no começo, eram eles ignorantes e os tornei cientes e senhores da sua inteligência. Digo isto sem qualquer censura aos humanos, mas só para vos mostrar como nasceram do coração as minhas dádivas. No começo, eles olhavam e não viam, escutavam e não ouviam, passavam a vida alongada e néscia como sombra de fantasias. (...) Viviam em cavernas, nas eternas trevas dos profundos antros, como formigueiros fervilhando. Faziam tudo sem entendimento, até eu lhes ensinar o nascimento e o acaso das estrelas mais difíceis de avistar. Para eles inventei o número, suprema sabedoria, e a arte de juntar as letras, memória de todas as coisas e infatigável mãe das Musas.»
- Ésquilo, "Prometeu Agrilhoado"
Este, quanto a mim,é um dos textos mais espantosos e fascinantes da nossa cultura. Em primeiro lugar, dá-nos conta duma evolução inaugural que coincide com uma progressão efectiva: a mera matéria animal adquire uma característica humana - o cavernícula torna-se homem. Mas repare-se que não é apenas uma questão de um intelecto ou espírito que lhe é concedido - é uma sensibilidade, um entendimento e uma inteligência. Quer dizer, é o aparato completo do pensamento que a filosofia, durante quase três milénios, não mais cessará de avaliar e prospectar nos seus limites e realizações, aparato esse, pormenor ainda mais importante, que lhe permite uma autonomia existencial e uma elevação acima da natureza. Isto é, concede-lhe uma emancipação da matéria bruta e uma capacidade de atenuação das leis e voragens da necessidade. Afinal, a dádiva é uma dádiva divina, oriunda directamente do coração de uma forma de ser superior. E não é por acaso que Prometeu, para pagar a elevação do homem se veja ele próprio, por castigo, rebaixado à condição anterior daquele. E cá voltamos nós ao paradoxo: o preço da ascensão do Homem é a queda de um Deus. Episódio que, de certa forma, se repetirá mais tarde: quando também para resgate do Homem decaído, um Deus aceitará o Calvário e o suplício da Cruz.
Entretanto, esta ideia de dávida divina como ignição antropológica também está presente noutra das principais fontes do pensamento medieval. o Génesis. Aí pode ler-se: «então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo.»
De novo, a entidade divina intervém sobre a matéria bruta: conforma-a, ordena-a, anima-a. Este animá-la é, em simultâneo, dotá-lo de vida e de espírito (e note-se que no latim spiro significa respirar, como anima significa alma). Para Aristóteles, por exemplo, os animais são dotados de alma - e "animal" denota isso mesmo, algo que respira, que está animado -, mas apenas de uma "alma vegetativa", quer dizer, não possuem intelecto activo, sòmente dispõem de intelecto passivo. E não apenas os animais, alguma gente também (e não, não estou a ser sarcático: em rigor, no De Anima, Aristóteles demonstra isso mesmo: que os homens são [animais] racionais - melhor dizendo, lógicos-, mas nem todos são inteligentes. E é esta diferença fundamental - e abissal, entre razão e inteligência, bem como respectivos objectos, que até aos dias de hoje todas as alforrecas intelectuas continuam, por paixão e impotência, a não discernir. Até porque a maior ambição da imbecilidade, tanto quanto a proliferação e o império, consiste na hegemonia).
Bom, mas o que importa registar para o tema desta nossa demanda, é, em ambos os momentos fundantes, o carácter exógeno da especificação humana. Essencialmente, o Homem é obra de algo exterior à estrita matéria e à ordinária operação da natureza. O Homem é, bem distintamente, algo de extraordinário, de prodigioso, tal qual aparece descrito por Sófocles, na Antígona. "Muitos são os prodígios do cosmos, mas o antropos é o mais extraordinário de todos". Máxima que a tradição fundada no Génesis conduzirá a um extremo limite: "Deus disse: Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança..."
Ora, esta antropovisão reinará na tradição antiga e medieval, com cambiantes variadas, como veremos adiante. Todavia, chegados ao século XIX, o conceito de evolução terá sofrido uma revolução completa, e em vez duma antropovisão exógena celebrar-se-á uma antropovisão endógena: dum ser humano como mero resultado das operações naturais, súbdito não já de regras da ordem inteligível, mas de singulares leis da estrita função mecânica e, inerentemente, material. Ou seja, na origem, do homem, assume-se que nada houve que o elevasse ou enobrecesse acima dos outros seres vivos. Por conseguinte, à falta dum princípio superior, adoptam-se, por meios capciosos, princípios reles em cujo nome se autoriza a engendração de fins soberbos e sumptusosos: através da ciência (ela agora o novo - e usurpador imaginem de quem - prodígio dos prodígios) pode fabricar-se geneticamente uma raça pura de semi-deuses (arianos, judeus, anglosandeus, enfim, o que se queira e a hegemonia da macacada dominante do momento permita e patrocine). O extraordinário, doravante, não está mais no princípio: está no exclusivo meio e promete os mais prodigiosos fins. Só que a palavra que no grego traduz prodigioso - deynos - também significa "terrível", "funesto", "perigoso", "mau". E, como o século XX demonstrou à exaustão e o século XXI parece ainda ir provar com mais exuberância, nada de extraordinário ou digno de admiração prevaleceu.
PS: Dinossauro é uma palavra e um conceito cada vez mais sugestivo. Também ele era um "deynos" -um deynos-saurio (um sáurio terrível, assombroso)... À semelhança de Hamlet, deviamos meditar-lhe sobre as ossadas.
ehehehe
ResponderEliminarEu eu ontem a lembrar-me destas coisas, no PC, a propósito da treta da evolução das espécies.
Mas está excelente.
ResponderEliminarParabéns.
Eu creio que quem se apercebeu deste descalabro, ainda bem antes, foi o Swift.
ResponderEliminarEle desmontou todo aquele materialismo da época e fez as maiores sátiras ao Leviathan do Hobbes.
E o Leviathan já é isto- o monstro da Razão Estatal a meter ordem naquela trupe toda de euzinhos iguais, prontos a lixarem-se uns aos outros.
O Swift é daqueles que eu venero.
ResponderEliminarVamos ver, imaginemo-nos extraterrestres, lá em cima, na estratosfera, a observar o planeta terra.
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O relatório que eu faria, enquanto observar externo, para a minha base, acerca dos seres vivos do planeta terra era coisa simples. Escuito, alô, daqui comandante Ricci, só para dizer que existem aqui animais que andam com quatro patas e latem, outro mujem; há uns bichinhos que voam e piam, uns tem asas e outros tambem porque senão não voavam ; depois há uns animais que vivem debaixo do mar. Há tambem uns animais com duas patas. Uns tem cauda e muitos pêlos e outros não tem cauda. Os que não tem cauda tem um cerebro mais desenvolvido que os outros. São os únicos, aliás, que nos procuram procurando mirar com telescópios pelo espaço afora. Têm 10% da nossa inteligencia, ainda assim esta raça evoluiu bastante desde a nossa ultima visita. Além de terem perdido a cauda, adquiriram consciencia de si mesmos e essa consciencia despertou-lhes maiores potencialidades. Ao instinto de se proteger numa caverna diante do frio, tecelaram peles para se proteger. Ao instinto de comer raizes e plantas e carne morta, artesanaram formas de a caçar e plantar. A cada avanço da inteligencia o corpo foi-se adaptando às novas realidades. protegidos do frio, os pelos cairam. Tendo feito casas no chão perderam a cauda para trepar às arvores.
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Eles pensam que nós somos o Deus. Afinal de contas fomos nós que por aqui colocamos os primeiros aminóacidos...
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Rb
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ResponderEliminarIsso não é um relatório alienígena. É a redacção do Ricciardi depois de ver o 2001, Odisseia no Espaço. :O))
ResponderEliminarEm todo o caso, isso concorda com a perspectiva exógena. E também com Aristóteles, que não considerava o mundo sub-lunar o umbigo do cosmos.
Pois, realmente tem muito filme nesta cabeça. Africa tem destas coisas. Africa não, a saudade.
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Anyway, na semana passada contava ao meu contabilista, que é preto como o carvão, o que meu filhote disse quando viu um menino preto. Ó pai aquele menino não gosta de tomar banho, não é? tá sujo com óleo. O contabilista riu-se. Tinha estudado na antiga alemanha de leste. Dizia ele que os miúdos de lá passavm o dedo pela pele dele a ver se saia a sujidade. ehehehe
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É um contabilista bacano. Convido-o para ir comigo à praia e ele diz que já está bem moreno, que não precisa.
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A este propósito, a cor da pele, está uma resposta clara da adaptação do corpo à natureza.
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A alma, essa, enfim, objectivamente só existe porque Penso. Subjectivamente não sei se existe porque ainda não deixei de pensar. Um cão não pensa que exista uma alma. Aliás não pensa. E mesmo que o cão tenha medos e receios, que se os vê a ganir com o rabo encolhido, não tem consciencia de si nem da sua existencia. Reage por instinto. Ora eu, que penso um bocadinho, não muito, é certo, mas lá vou tendo consciencia e curiosidade acerca do além, sou daqueles que desconheçe as causas pelas quais o bicho homem pode ter alma.
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Andei à procura nas religiões do Livro e a coisa não me convenceu. Na ciencia também não. Depois reparei naquelas religiões q creem na reencarnação e até fui falar com crente avançado na coisa. Fiquei desiludido. Bastante até. Quando lhe perguntei:
- ó pá, mas diz-me lá, se as almas reencarnam aonde é que é a fabrica.
- nos próprios humanos. Morrem e depois voltam para outro corpo.
- ah está bem, mas diz-me se a população de pessoal está a aumentar cada dia que passa não há almas hoje suficientes que financiem tanta reencarnação.
- Ahh?
- Atão pá. Vejamos, hoje temos, imagina, 10 gajos no mundo e há gravidas ali ao virar da esquina quase a parir mais dois. O que tu dizes é que é preciso que morram pelo menos dois para que aqueles bébes possam nascer?
- Bem, ahh, quer dizer...
- Não, espera meu. Agora se a população está a aumentar a um ritmo superior à quantidade de gente que morre, aonde é que, raios, vais buscar almas para reencarnar?
- Importamos, disse a besta.
- Importam de onde?
- Do universo. Almas alien. Extraterrestres. As almas são todas iguais, os corpos é que são diferentes.
- Foda-se pá, como é sabes isso?
- Ahh, porque, ahh...
- Olha, ahh o caralho. Vai buscar extraterrestres à puta que pariu. Isso é alguma coisa? mas pronto, dando de barato isso, a nivel macro, do universo, o problema é o mesmo, não é?
- Não porque o universo é infinito.
- Ora bolas, agora pareces matemático. Não sabes resover a equação e pimbas atiras com o infinito.
- Os matemático não se justificam com o infinito.
- Ai não? então diz-me quando é 1/3 + 2/3. Resolve esta equação.
- Ora, isso dá 3/3 que é igual a um.
- Vês, agora diz-me quanto é 1/3?
- 0,33333333333
- Agora soma 0,3333(3) mais 0,6666(6)
- Dá 0,99999(9)
- Então não dá UM. Dá 0,9999. Justifica isto?
- Os numeros infinitos...
- Vês. O infinito.
- Não percebo aonde queres chegar ricci
- Aqui. Não sabes nada acerca da alma.
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Rb
Mas olhe, caro dragão, se esta teoria da reencarnação e de almas alien for verdadeira, eu asseguro que vossencia proveio de trotinete da nublosa de Hélix, o Olho de Deus nosso senhor. A Zazie, juro, veio de Centauros numa carroça espacial. Eu cá devo ter vindo da nublosa de Orion de bicicleta e só parei aqui no planeta Terra porque vi um tipo fantástico, lindo, esbelto, supimpa mesmo, numa barriga a querer sair e pimbas tomei-lhe conta da carcaça.
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Rb
Essa teoria da reencarnação alien vai ter que descuti-la com o Eng Ildefonso caguinchas. Ele é que tem um tese sobre o psicorapto praticado por alienígenas. Ainda pelas contas dele, os americanos, praticamente, já foram todos ocupados por extraterrestres.
ResponderEliminarJá agora, ando há que tempos para lhe fazer a pergunta (se achar indiscrição, mande-me à fava): vossência é alguma coisa ao Ricciardi que trabalhava para o Espírito Santo, em Luanda, nos anos 90?
ehehe
ResponderEliminarò Dragão- a pergunta devia ser outra: vossência é alguma coisa aos Medicis de Florença
":OP
Francamente, genealogia é para começar pelo início
Porque é que julgas que eu lhe chamo o morgadinho da cubata?
ResponderEliminar":OP
Não. A única familia que tive em Angola tiveram dois colégios, ele economista e escritor de livros e ela professora de frances, mas vieram embora via Namibia na independencia.
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É engraçado. Mas como eu tenho a mania de viajar, reportar e fotografar (coisa, aliás, a que me vou dedicar exclusivamente talvez já apartir do proximo mês, em forma de negócio (claro), mandando tudo resto para as malvas), dizia, numa dessas viagens a Porto Amboim, e depois de entrar na igreja (local que nunca dispenso de conhecer e em angola ainda mais - o ambiente é comovente) entrei por uma escola pública adentro. Pois bem, a escola estava um caos. Tudo grafitado e esburacado. As carteiras eram novissimas. Tudo o resto parecia uma pocilga. Esse meus familiares quando viram as fotografias reconheceram imediatamente. Era um dos colegios deles, aonde depositaram parte substancial da vida. Num territorio tao grande entrei justamente na escola deles. Coisas do diabo. Nem sabia que eles lá tinham negócio. O de Luanda ainda não descobri - os nomes alteraram-se - e esta cidade não é própria para andar a visitar calmamente.
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Mas, já agora, em que cidade de angola é que o Dragão esteve?
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Rb
Digamos que conheço tão bem Luanda como conheço Lisboa. Muceques incluidos.
ResponderEliminarDigamos também que a minha vida dava um romance, daqueles de aventuras. Um dia destes ainda o escrevo. Pelo menos para os meus netos terem um certo orgulho no avô. Já que com o país e as suas gentes (especialmente as ditas cujas elites) estou mais que conversado.