Sendo certo que Maquiavel é visto como um dos teorizadores do "Estado Moderno", não é menos seguro que o "Estado moderno" há muito vinha germinando na realidade concreta. Quero com isto dizer que os pensadores políticos raramente são os pais da criança. Regra geral, limitam-se a tentar compreender e conceptualizar o mundo que os embala. E mesmo aqueles mais visionários e nefelibatas (que não é exactamente o caso de Maquiavel, bem pelo contrário - mas é o de Marx), quando anelam a outros-mundos, é deste que partem, é neste que firmam e montam trampolim. Resumindo: a ideia estritamente política (e uma ideia é estritamente politica quando se esgota no mundano) nunca é fundamento nem fonte da realidade, mas mera excrescência desta, não raramente, destilado subtil ou, ainda mais frequentemente, pura mixórdia tóxica. Não espanta até por isso que tantas vezes os seus crentes se comportem como verdadeiros alcoólicos, vociferando toda a incasta série de grosseiras alarvidades ou ébrias aleivosias.
Dito isto, vamos então ao mundo e àquele que nele, em meu entender, inaugura a galeria prototípica do "estado moderno". Senhoras e senhores, Filipe IV, de França, cognominado "o Belo". Reinou entre 1285 e 1313. Só para relacionarmos no tempo: Maquiavel escreveria o seu "Príncipe" dois séculos depois; e Hobbes apenas publicaria o seu "Leviatã" passados trezentos anos. A descrição que se segue parece-me eloquente. Qualquer semelhança com a actual realidade do "estado" não é mera coincidência.
«(...) Filipe IV, "o Belo", constitui um mistério para os historiadores. Se bem que se conservasse sempre silencioso e letárgico nos bastidores da política, escolheu consistentemente ministros ousados e agressivos, que fizeram tudo para exaltar a coroa, imprimindo uma marca indelével na história da França e da Europa. (...) Esses ministros, que o rei apoiava em todas as circunstâncias, eram quase todos juristas do Midi, homens muito aptos e completamente destituídos de escrúpulos, que não respeitavam outra lei que não a da lealdade ao seu senhor, e que dependiam inteiramente do favor do rei. (...)
«Filipe e os seu ministros eram hábeis na arte da propaganda, recorrendo agora a esses talentos de forma muito arguta, se bem que pouco escruppulosa. Insistiram com vigor na independência da coroa francesa o que ia ao encontro do sentimento nacional e agradava também a um anti-clericalismo nascente - (nota: independência moral do rei em relação ao Papa e dispensa consequente dos serviços vicariais deste: o rei passa a representar directamente Deus, tornando-se o real capricho emanação incontestável da "vontade celeste" - e registem que Henrique VIII de Inglaterra só copiará este precedente dois séculos adiante. Mas mais gritante ainda: a dependência moral do rei ao representante legítimo de Cristo na terra, após as manobras de Filipe e dos seus ministros - através da eleição manipulada dum papa francês e dum colégio de cardeais quase todo gaulês-, converteu-se em sujeição política do papado ao rei de França) -.
(...)«O efeito de todos esses conflitos e das grandes despesas por eles ocasionadas sobre as finanças de Filipe foi porém desastroso. Os rendimentos feudais que o costume atribuía ao rei eram francamente insuficientes para cobrir as despesas. Foram pois reforçados por suplementares por levas ocasionais, que se tornaram permanentes, e pelo lançamento de novos impostos. O clero era frequentemente obrigado ao pagamento de dízimas, apesar da resistência oferecida por Bonifácio VIII. Os nobres tinham de pagar pesadas taxas militares, em substituição da prestação do serviço militar obrigatório. Em 1292 foi lançado um novo imposto sobre todas as vendas (nota: um proto-IVA?), que incidia sobre produtos de primeira necessidade, como o trigo, o vinho e o sal, e que se tornou permanente. Como tudo isso não fosse ainda suficiente, o rei contraiu grandes empréstimos junto de banqueiros italianos e franceses. Filipe adquiriu a reputação de ser um "moedeiro falso", pois recorreu frequentemente à prática da desvalorização da moeda, com algum lucro imediato para a coroa e grande prejuízo a longo prazo para os seus súbditos. Quando por duas vezes (1306, 1313) causou igualmente grandes prejuízos ao reino, atrapalhando os negócios. Era impossível encher a bolsa cronicamente vazia do rei, e nem mesmo os expedientes mais desesperados resultaram. Em 1306 os judeus foram expulsos do reino, em 1307 o rei apoderou-se dos bens dos Templários, em 1311 foram igualmente expulsos os banqueiros italianos do rei. Os bens das vítimas de tais medidas eram imediatamente confiscados, e os seus credores passavam a sê-lo do rei (nota: proto-nacionalizações?).»
- in "História da Idade Média", de C.W. Previté-Orton
Uma nota final: onde se lê "coroa"ou "rei", julgo não errar muito se disser que, pela primeira vez, pode começar a ler-se "estado". "Estado" no sentido desse mesmo "estado" que hoje nos mastiga e regurgita e que, como avisou certo filósofo, "acaso exista ainda um povo, esse nada compreende do Estado e odeia-o como ao mau olhado, como a um pecado contra a moral e o direito.»
O povo, devo reconhecê-lo, duvido que exista. Restam alguns fragmentos... Indivíduos.
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