quarta-feira, junho 08, 2011

A ressaca das orgias

«A revolta popular contra o domínio estrangeiro e a revolta popular contra o domínio de revolucionários nacionais são, no fundo, da mesma origem, partem ambas do mesmo instinto - a tradição ferida, ou no seu conjunto patriótico, ou no seu hábito político e social. Digo mal, digo pouco: há entre as razões para os dois tipos de revolta uma identidade absoluta. Visto que existem revoluções, e visto que (como se viu) não existem revoluções nacionais, conclui-se que toda a revolução é um acto de desnacionalização, uma invasão estrangeira espiritual. E a história assim o confirma - quer no caso da Revolução Francesa, que foi uma intrusão de ideias inglesas, quer no estabelecimento dos vários constitucionalismos e repúblicas modernos, intrusão, nos vários países, de uma indistrinçável mixórdia anglo-francesa.


De modo que com verdade se pode dizer que não há revolta nacional que não seja contra o estrangeiro - quer ele seja o estrangeiro de fora, quer ele seja o estrangeiro de dentro.


E assim, como há verdade popular só nesses movimentos, a Democracia moderna, sobre ser provada falsa em toda a extensão dos seus princípios, queda provada também falsa em toda a extensão dos seus processos, que são os revolucionários.


Ser revolucionário é servir o inimigo. Ser liberal é odiar a pátria. A Democracia moderna é uma orgia de traidores.»

- Fernando Pessoa, "Páginas de Sociologia Política"



Isto do pensamento a crédito, das ideias por empréstimo, tem sempre o inconveniente dos juros, da dívida acumulada. É tal e qual como o consumo de bugigangas, luxúrias e pato-bravuras múltiplas. Cria, de charola com a viciação, a tóxico dependência. De tal modo que, a partir de certa altura, o junkie, mais que do vício, torna-se escravo do abastecedor. E entra na espiral dos tais empréstimos para pagar juros de empréstimos, das doses cada vez maiores para paliar as ressacas das doses anteriores.


O turista ideológico padece exactamente do mesmo circuito fechado. Hamsteriza-se a olhos vistos e passos largos. Descobre rapidamente que a revolução é sempre escassa, e tem que ser reformada, revista e restaurada mensalmente. Há sempre um défice de revolução em toda a parte. Porque, convenhamos, acima da pressuposição simples e cândida de homens-anjos, porfia-se, o mais industrialmente possível, pela transformação dos homens em anjos. Os homens, porém, recalcitram, demoram, tergiversam. Só pode ser porque a revolução não está a ser bem subministrada, a dose e a terapêutica não são as correctas, a receita tem que ser revista, os enfermeiros não dominam ainda a plenitude da técnica. Há que continuar a pesquisa, o ensaio, a experimentação. É gente sobremaneira metódica e científica. Tanto assim que, após fiascos acabados da democracia popular e em putrescência acelerada da democracia liberal, já se apontam ganas e aleives festivos à "democracia directa". Lá está, é a revolucionarite típica e convulsiva: o que conta não é o monte de bosta onde, mansamente, chafurdam. Não, é o adjectivo em forma de bandeirinha com que o coroam.


Há um detalhe apenas que conviria a todos estes estrangeirados militantes recordar... Prende-se com a democracia original e os atenienses seus inventores. Não se tratava apenas das mulheres, os escravos e os metecos não terem acesso nem ao voto nem a cargos políticos. Esse folclore, como tantos outros, já está mais que visto e revisto. O que convinha relembrar é o destino daqueles que não podiam pagar as dívidas contraídas: tornavam-se escravos dos credores.

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