Em 1935, a propósito dum "projecto de lei sobre Associações Secretas" apresentado por José Cabral na Assembleia Nacional, escreveu Fernando Pessoa:
«Começo por uma referência pessoal, que cuido por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem Semelhante ou diferente. Não sou porém anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica.»
E mais adiante: "O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vasadas dum metal que procede da Alquimia".
Ora bem, por especial deferência ao maior vulto das nossas letras, também eu principio por uma referência pessoal não menos incontornável:
Não sou maçon, nem católico, nem pertenço a qualquer ordem, religião, seita ou ideologia semelhante ou diferente. Não sou porém, anti-católico, como hoje em dia tanto está na moda, nem, tão pouco, anti-maçon, e passo a explicar porquê.
Pessoa recomenda que não se confunda Ordem com seita. E é esse quesito básico que cumpro. Não confundo uma associação de malfeitores, de ratões e nepotes sabujos - em suma, um grupo alta-recreativo e excursionista de Amigos do Erário Público - com uma Ordem Esotérica. De esotérico é que aquilo não tem nada. De espertalhão, de mafioso, de valhacouto, sim, tem tudo. Transborda. E o único segredo que cultivam é o que dá a alma não ao mistério, mas ao negócio. Refiro-me, como qualquer cidadão adulto na posse mínima das suas faculdades cognitivas já percebeu e facilmente constata dia-sim-dia-sim no sórdido presente desta terra lançada aos abutres, a essa coisa tumorosa e cancerígena que responde pelo pomposo título de Grande Oriente Lusitano. O próprio nome é sugestivo e apropriado: orientação não lhes falta. Julgo mesmo que não gastam a vida senão nisso: orientarem-se. Orientam-se pela medida grande. À grande e à francesa. Anda o país todo desorientado para que eles se orientem.
Não pensem, todavia, que é preconceito ou pura malevolência minha. Admito que existam Lojas da Maçonaria Regular por esse mundo fora que preservem uma qualquer seiva mística impoluta e perpetuem, sem verdete nem caruncho, essas "colunas simbólicas, vasadas dum metal que procede da Alquimia", conforme dizia Pessoa no seu artigo. Admito, sim senhor. Não me custa mesmo acreditar que nesses digníssimos tabernáculos se busca a compreensão, intuição, iniciação, ou o que seja, a sublimes assuntos e Obras transcendentes, já não falando no conhecimento taumatúrgico dos inefáveis projectos do Grande Arquitecto e outras subtilezas fascinantes que tais. Da Patagónia à Conchichina, não o duvido, devem abundar templos desses. Da Groenelândia ao Burkina Fasso, estimo bem que proliferem, em boa luz e harmonia. Não será mesmo por falta de filantropia tão proficiente que o mundo não pula e avança e, pelo contrário, a cada hora que passa, mais patina em bosta e chafurda em sangue.
Pois, é tal qual digo: por esse mundo fora, não hesito em reconhecer todo um vasto leque de possibilidades e prodígios, toda uma cintilante pletora de maravilhas e alambiques. Que, logo por azar, nunca penetraram em Portugal. Não penetraram nem medraram minimamente que se visse. Ou se penetraram, a semente em vez de se elevar do estrume, diluiu-se nele. Porque aqui nem vê-la, à excelsa e sublime Maçonaria. Aqui, aconteceu à Maçonaria o que aconteceu ao whisky e acontece a qualquer produto escocês: martelaram-na em caves turvas à beira Trancão. O néctar deu lugar à mixórdia. De maçonaria ficou só o invólucro, o rótulo e a rolha. Esfregue-se a lamparina e o génio que sai lá de dentro usa cascos e tresanda a bombinha fétida de Carnaval. Obra de pedreiros-livres? Será, não sei aonde. Porque, para cá da fronteira, nunca ultrapassa o esquema de trolhas e mestres-de-obras, agência e gardanho de empreiteiros à rédea solta.
Operam na penumbra? Cavilam e zombam do cidadão comum? Corroem e carcomem os alicerces da democracia? Minam a credibilidade das leis e dos tribunais? Usurpam a putativa soberania popular?
Serei o primeiro a insurgir-me contra tais fábulas. Como é possível carunchar os alicerces de algo que nasce, emerge e viceja da podridão? Como é possível minar um queijo-suíço? Como é possível usurpar uma fantasia?
Por tudo isso, acusar esta seita mascarada - esta Trolharia - de conspiração ou cabala é a anedota mais estapafúrdia que ouvir se pode.
Por uma evidência escancarada: não atentam contra o regime: exercem-no, vistoriam-no, supervisionam-no. Não conspiram, governam. Melhor dizendo: governam-se. Que nem lordes, que nem abades!...
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