terça-feira, março 15, 2011

Sinais do tempo - II. A Corte do Exturquistão




Vamos supor que existe de facto, e não como mera fachada operativa de oligarquias, plutocracias e neo-feualismos rococó. Refiro-me, obviamente, à democracia. Faz-me confusão que se faça dela uma finalidade e não o simples meio que ela efectivamente não é, mas devia ser. Como se a democracia, em vez de mera forma de regime político se transformasse, simultaneamente, em mandamento e fundamento teológico. Em que é que esta democracia, nessa singular essência, se distingue do fascismo, do comunismo ou de qualquer outro totalitarismo moderno ainda está para nascer quem consiga o milagre de me explicar. Por outras palavras: mais que uma opção, entre outras, a democracia virou superstição. Dourada de fetichismos vários: o voto, o sufrágio universal, a alternância democrática, a soberania popular. Regredimos ao nível dos animismos africanos, mas com a pompa e circunstância de ideologia religiosa.
Ora, ideologia não enche barriga; nem alma, tão pouco. Esta treta da democracia para toda a obra tresanda a supositório paliativo universal de carregar pela orelha, lembra a vaselina multi-uso ou a banha-da-cobra para massajar o papalvo: "tendes fome? Mas sois democráticos!"; "Não tendes emprego? Mas tendes democracia, que diabo!"; "O futuro desaparece pelo ralo? Mas resplandece e eleva-se no firmamento a democracia, ora essa!"; "Perdestes a independência? Mas ganhastes o parlamento!"; "falta-vos tudo isso e ainda os sonhos, mas tudo isso são acessórios; o essencial é a democracia." Tudo pela democracia, nada contra a democracia!
Porque em havendo democracia, garantem-nos a todas as horas, o resto, mais tarde ou mais cedo, há-de jorrar em cornucópia. O problema é que não há, e a que há não jorra, a não ser para o meio-milhão de super-mamíferos (ou seja, as mesmas 200 famílias do antigamente mais as centenas de arribadores de agora). A que há, para a generalidade da população, só pinga um fel intragável que, em cada dia, vem azedando mais e mais. A que há não serve ninguém, a não ser aqueles que se servem dela para reduzir o povo à servidão absoluta.
Foi um mimo ver como, mal se anunciou uma manifestação não engendrada pelos alfobres e tutores do costume, logo os gansos da situação - os Pachocos pereiras e outras rameiras canoras- desataram no alarido manhoso (e típico da agitprop onde mentalmente se cevam e vegetam) de "atentado à democracia", "conspiração contra a democracia", "ensaios protofascistas, nazis, stalinistas, nihilistas, draculianos em gestação". E tudo isto por uma razão muito simples: Porque a manifestação (como sublinhou e ressublinhou com fotorreia exaustiva à posteriori, o Pachoco) era contra a classe política e a política tripulada e açambarcada pela classe política. Ora, este grasnar crónico nada revela da identidade da manifestação (que acabou, como se viu, por estilhaçar com todos os preconceitos e antecipações) mas estadeia em quase tudo da estirpe destes gansos profissionais. Para eles a democracia significa, em exclusivo, a classe que a exerce profissionalmente, e não a generalidade da população para quem (e em nome de quem) é exercida. E quando esta se manifesta, à revelia e contra aquela, eles malsinam que a população tem intuitos anti-democráticos. A "Democracia somos nós", é, no fundo, o que proclamam e ameaçam, lá das entranhas do seu rosnido. Estar contra eles é estar contra a democracia, porque, mais ainda que interpretá-la ou exercê-la, personificam-na. Consubstanciam-na. São a sua encarnação absoluta. Ora, este conceito solipsista de democracia não é exactamente liberal, por muito tartufo e troca-tintas que o liberalismo consiga ser, e consegue. Na verdade, a estes cucos ideológicos, o ninho liberal serve-lhes apenas como incubadora dos seus ovinhos armadilhados. A sua permanente e recorrente elitose revela bem da sua efectiva génese - a dos polipríncipes de vão de escada, das nomenklaturas recauchutadas, das vanguardas esclarecidas da classe operária, mais chinesas até que soviéticas. Basta atentarmos na extracção e proveniência de cromos hiperactivos e ubifónicos como esse tal Pachoco Pereira.
Só assim se explica como padecemos sob sequestro duma casta parasita que dirige à revelia e contra os interesses da população hospedeira que, apenas em tese, é suposto representar. Mas lá está: não têm tempo para representar as pessoas, porque estão atarefados, absorvidos, ocupadíssimos a representar a democracia. Em suma: a auto-representar-se. A fazer de conta e por conta. A mirar-se e remirar-se ao espelho, crocitando: "espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais democrata do que eu?"
Porém, enquanto tudo não passou dum esquema típico do Exturquistão - enquanto foram subtraindo apenas as contribuições, os impostos e os fundos putativamente destinados às pessoas, mais os cargos, os subsídios e os ecrãs, a cleptocracia mixordeira que se traficou por democracia puro malte foi sendo mais ou menos tolerável. Mas quando mais que a carteira, já é o futuro e os sonhos que se perpetra roubar a todo um povo, então a falcatrua, de abusiva devém assassina, e, aí, torna-se intragável, insuportável, abjecta. Mais: torna-se dever de todo o português vertebrado acabar com ela! Não com a democracia que não existe, mas com a corja de narcisos insaciáveis que se faz passar (e pagar opiparamente) por ela. Porque a democracia é uma simples forma duma sociedade se organizar, que pode funcionar melhor ou pior, ou assim assim. Não é, de todo, e à semelhança de outros palavrões inefáveis e ultra-maquilhados (estilo Mercado, por exemplo), como nos querem fazer crer, um ídolo feroz e inescrutável que exige a submissão e o masoquismo exacerbado das humanas gentes. E não é, tão pouco, um luxo, pelo qual um povo inteiro se tenha que arruinar, suicidar e empenhar os vindouros até à sétima geração. Luxo mesmo, daqueles supinamente incomportáveis, é uma corte destas, tão descomunal, cigana e dispendiosa, para um rei-povo reduzido à indigência (mental, moral e económica) e um reino outrora soberano remetido à mendicidade!



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