quinta-feira, março 10, 2011

O Geo-Carnaval




Em Outubro de 2007, podia ler-se o seguinte:
«Uma juíza federal norte-americana impediu a transferência de um detido de Guantanamo para a Tunísia pela possibilidade de ele vir a ser torturado naquele país.»

Na altura, eu apontei uma série de explicações possíveis para tão insólito facto:
a) O mesmo arguido não pode ser torturado duas vezes - tendo já sido torturado pelos Estados Unidos, não pode ser torturado pela Tunísia;
b) Os Estados Unidos detêm a patente actual da tortura: ninguém pode torturar a não ser em regime de Franchising;
c) Só a tortura dos Estados Unidos e seus satélites é democrática e, por conseguinte, benigna, além de benemérita. Todas as outras são malvadas, abjectas e inadmissíveis;
d) A tortura, devidamente exercida, é terapêutica e melhora a saúde e a qualidade de vida dos paciente; ao contrário da tortura ilegal, contrária aos interesses da humanidade, que, tal qual sustenta a senhora juíza federal, pode causar "danos irreparáveis".
Entretanto, começam a pairar algumas suspeitas: afinal, Guantanamo é um campo de concentração para terroristas ou um local de treino e formação?... (Isto, para além do resort turístico que passa por ser, naturalmente).
Perguntem em qualquer Serviço de Informações internacional, que eles explicam-vos.

Passados mais de quatro anos, eis que irrompe novo géiser bizarro. Só que agora o assunto em causa não é a tortura, mas o bombardeamento. O bombardeamento aéreo de civis, mais propriamente. Toda a americanidade roncante que infesta o planeta, do presidente Obama aos liberdadeiros blogosféricos, passando pelos pseudo-governos europeus, está escandalizada, chocada e indignada com os bombardeamentos que Kadaphi tem ordenado contra os rebeldes líbios. Isto é, os muçulmanos estão a bombardear-se uns aos outros e isso parece que não é admissível. Que horror!, matar civis à bomba!... Crime de lesa-humanidade? Não, muito pior: crime de lesa privilégio: todos sabemos que matar civis muçulmanos à bomba é uma prerrogativa exclusiva dos norte-americanos e do seu mini-me, vulgo estado de Israel. Quem julga o Kadaphi que é? Caso para dizer: Mais ciumentos e zelosos que os deuses, só mesmo os semi-deuses.
Convenhamos, há nisto qualquer coisa de verdadeiramente anedótico. O nível de desossificação moral de toda estas coisas vagamente semelhantes a pessoas atinge já as raias do inverosímil.
Reparem: são os mesmos que, salvo raríssimas excepções, nos têm vindo a endoutrinar, obsessivamente, de que o "único muçulmano bom é o muçulmanos morto", de preferência à bomba, granada ou míssil intelectual, que agora, subitamente, num flique-flaque vertiginoso, descobrem que há muçulmanos bons, jovens, e ardentemente sequiosos de democracia. Aos molhos! Muçulmanos benignos e amigos do ambiente - mais: muçulmanos instruídos e informatizados, que twitam e faceboquejam! - que urge preservar das bombas dos muçulmanos pérfidos, retrógrados e anti-democráticos. De que modo? Bombardeando imediatamente os maus. Tão simples quanto isso.
Este certificado de bondade à pressão integra-se no regime de alucinação colectiva e fantasia permanente que avassala o bacoco semi-letrado ocidental: acredita, tão toina e piamente, que vive numa democracia, como acredita que os outros, da Patagónia ao Bornéu, logo que se convertam ao mesmo carnaval, passam a desfilar tão livres, abastecidos e chilreantes quanto ele. Mas o mais interessante na beleza do raciocínio até nem é isso. O mais interessante e engraçado é como entende que compete àqueles que o oprimem andar por esse mundo fora a libertar os outros. Como assim? Bem, ao contrário desses outros povos oprimidos por esse mundo fora (sob autocracias, tiranias e desdemocracias variadas), que conseguem identificar e fulanizar os autores da sua desgraça, nós por cá, no ocidente supimpa, vemo-nos oprimidos por entidades tão inefáveis quanto diáfonas e crípticas - a mais impiedosa e principal das quais, pelas contas recentes, respondendo pelo nobríssimo título de Défice. Isto é, os nossos liberais da treta, que consideram que os estados não devem desperdiçar dinheiro com hospitais, nem escolas, nem quaisquer infraestruturas de interesse público, entendem que as mesmíssimas entidades devem, em contrapartida, torrar dinheiro às pázadas em porta-aviões, frotas, esquadras e batalhões, para correrem à democratização global XPTO. Nisto, para variar, já não é o Santo Mercado que automaticamente determina e impera. Não; é o cacete supersónico, escavador de reportagens e Défices. Mas quanto custa um porta-aviões/dia, ó pombinhas de rapina? Quem paga? Em primeiro lugar o otário contribuinte americano. Depois, o otário contribuinte europeu, que é quem, no fim de contas, acaba por pagar sempre os serviços globais do cabo de esquadra planetário. Ou aqueles que acreditam tão solenemente que não há almoços grátis, crêem, em simplório tandem, que há intervenções puramente beneméritas e gratuitas? Ou que a cowboiada global não sai do bolso ao pagante se plantão? O caso é que, tudo somado, resulta em qualquer coisa como o escravo do crédito e do défice ocidental, no fundo, a sacrificar-se, penando as cangas do fisco e da burocracia, para que os povos oprimidos do mundo sejam resgatados e emancipados das suas grilhetas geo-históricas. É extremamente reconfortante saber isto... Que a nossa masmorra acende a liberdade na Cochinchina e nas Áfricas. Assim como antigamente escravizávamos esses digníssimos povos de modo e termos, nós, mais folguedos, agora lançamo-nos, ávida e generosamente, na servidão mais frenética, lorpa e compulsiva para que eles vivam melhor. Abdicamos da nossa liberdade em prol da libertação deles. Ah, virtude angélica do caraças! Sempre dá um certo sentido ao absurdo em que mergulhámos e vegetamos à espera da sepultura final. E seria a mais maravilhosa e virtuosa das caridades se, ao menos, fosse consciente e voluntária.
É claro que o facto disto lembrar cada vez a mais a antiga União Soviética, onde as massas se submetiam à servidão mais completa por amor forçado às mordomias duma nomenklatura olímpica, às engrenagens duma burocracia atroz e à voracidade dum aparato bélico mundial, tão folclórico quão libertador, não passa de mera e casta coincidência. Uma coincidência só superada por uma outra ainda mais gritante, mas não menos imaculada: o de estas chusmas liberdadeiras da Internacional Democrática desempenharem o sucedâneo completo, o upgrade venéreo das hordas marxistas-leninistas-maoistas do passado.
Entretanto, de mãos dadas com o obtuso, passeia o óbvio. Servindo de contrapeso à liberdadeirite eufórica, zumbe, soturna e austera, a liberdadeirite céptica. Vários marranos de eleição, imitação, adesão ou simplesmente de serviço, recusam o embarque fácil na romaria dos benevolentes. Dificilmente escondem o escândalo, tanto quanto o mal-estar com a peregrina hipótese. Afinal, a democracia no norte de África e Médio Oriente é patente exclusiva do pequenino estado mini-americano, quistozinho seboso e benigno no meio de toda aquela vasta metástase terrorista (em acto ou potência). Se porventura (o diabo seja surdo!), por alguma excentricidade inopinada e milagreira do chifrudo, algum daqueles vespeiros desata a ser democrático, lá se vai a exclusividade rutilante dos eleitos! Ora, isso é ainda mais inadmissível do que os civis muçulmanos serem bombardeados por outras que não as bombas inteligentes, beneméritas e democratas!...
Além disso, há um detalhe fatídico que está a escapar grosseiramente aos eufóricos, induzindo-os num erro que raia o hipercrime cumulativo de deicídio e lesa-império: todos aqueles muçulmanos aos saltos, sejam eles (segundo a nova tabela períodica dos elementos) benignos ou malignos, todos eles, sem excepção, - persignemo-nos, compadres! - execram e detestam Israel. Ora, como podem ser democráticos, se abominam a essência mais sublime e transcendente da democracia, o âmago mais refinado, rococó e filigranático da liberdade e do bem-estar da civilização ocidental? Logo, democratas, uma ova! De toda aquela fermentação, ninguém duvide, vai germinar um belo caos convenientemente tripulado pelo fundamentalismo islâmico. Fenómeno, esse, que uma intervenção dos emissários do otário contribuinte ocidental apenas agilizará. A ideia, de resto, é mesmo essa: urge lá ir destruir todo e qualquer resquício da velha ordem, mas, compete, sobretudo, neutralizar os arsenais remanescentes. Por detrás de toda a agitação, o objectivo real não é tanto resgatar tão infecundos povos para a democracia, mas mergulhá-los, isso sim, a eito e definitivo, no fundamentalismo. Para efeito da contínua (e altamente lucrativa) saga epopeica da luta contra os gambozinos, convém aquilo transformado em vespeiro desarvorado, berçário duma nova e revitaminada ameaça, mas desdentado o suficiente para não constituir qualquer efectivo perigo. Especialmente, para a única democracia do Médio-oriente e, se formos a ver bem, de todo o Universo.


PS: É mau para a Europa? Será péssimo - para nós, então, que andávamos por lá a fazer pela vida, será horrível, a juntar à catástrofe. Mas será óptimo para os Americanos, para os mini-americanos, para os Russos, para os Turcos e até para o José Eduardo dos Santos. Afinal, a Líbia até competia com ele no Golfo da Guiné. E os Europeus, que trocaram as bolsas naturais pela Bolsa artificial, só têm aquilo que merecem.

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