Nem vos conto o que foi a minha reentrada na tasca –aliás, cibertasca. Andámos à porrada, nem mais. O caso, de resto, nem era para menos. Parece que me contradigo, mas é só impressão vossa. O que é facto é que eles, refodidos com a minha diáspora, rosnaram: “olha o peneiras, o blogomerdas voltou”, e eu, que fervo em pouca água e ainda em menos vinho vociferei: “olha, os cabrões mansos continuam refugiados em tábuas!” Aleive puxa insulto, insulto reboca impropério, sarcasmo arrasta calúnia, e em menos de nada, engalfinhados num ameno sarrabulho, já tínhamos escavacado parte da mobília ao Armindo Taberneiro, um ganancioso de merda, diga-se, que em vez de tomar partido por uma das partes, de dar e levar também como Deus manda, só carpia e gemia, só uivava –feito sirene lancinante- enfim, só choramingava o recheio do estabelecimento e tentava pusilanimemente deitar água na fervura, atirando com baldes dela à molhada. Aquilo enfureceu-nos ainda mais, especialmente ao Dinossauro, que estava de bengala, bem dura por sinal, e considerou o pano encharcado que o outro, com pontaria de sniper, lhe endereçara às trombas como uma afronta pessoal. Uma falta de respeito de todo o tamanho. Ofendeu-se mesmo todo, com quantos melindres tinha. Perfilou-se hirto e de olhar incendiado, fulminejabundo. Eu ia até para lhe desfechar com mais uma cadeira nos costados, mas estaquei também, ciente da gravidade da situação. Estacámos todos, aliás, subitamente petrificados, entupidos de súbita reverência. Fez-se silêncio, um silêncio sepulcral, enquanto o pano encharcado, depois de lhe conspurcar as ventas, resvalou lentamente e inobilizou-se, por fim, com um lúgubre “plop”, no chão pouco asseado do estabelecimento.
-“Chega um homem a uma idade destas, para levar com um pano encharcado na tromba!... – Como que crocitou, soturno. –“Andou um homem a combater no ultramar, agora no inframar e já não tarda muito no Além-terra e a paga que tem é um pano encharcado nas fuças!... ”
Íamos até para ter pena do gajo, quando, sem que nada o fizesse prever, irrompeu pelo antro o Finuras aos gritos de “Venham depressa!Venham ver!...”
Instintivamente, fomos. Um brado daqueles prometia variedades. Excepto o Dinossauro, bem entendido, que continuava perplexo com o pano.
Era o Animal Feroz. Estava a atacar a menina Liberdade. O Animal Feroz, aproveito para informar, é o ratito hamster do bordel Europa e, por alguma razão que se desconhece, experimenta uma vertiginosa atracção pela menina Liberdade, a mais eclética e palerminha das funcionárias do estabelecimento. Mas, talvez por isso mesmo, das mais procuradas e lambuzadas pela clientela. O costumeiro é que sempre que o Animal Feroz (assim alcunhado por obra baptista do Ildefonso Caguinchas) , escapa do recinto gradeado onde urde constantes planos de evasão, corre na direcção da menina Liberdade, com sérios e lúbricos intuitos de lhe amarinhar pelas pernas acima e gozar por elas abaixo (suspeita a grande maioria dos espectadores, excepto o Caguinchas, que, em aleive erudito, proclama a certeza mais completa e absoluta). Desta vez, deixem que vos conte, o Animal Feroz, aproveitando um instante desatento da tratadora - a Carla Bocadoce, como se veio mais tarde a apurar-, esgueirara-se solertemente e, com boa velocidade e superior desembaraço, encetara uma louca perseguição à sua tradicional vítima. Alvo de tão minúscula se bem que descomedida obsessão, a menina Liberdade esbaforira-se com grande alarido. Após atribulado rali pelo interior do albergue, acabara por vir cá para fora aos gritos e, simultaneamente de poleiro e torre de menagem (neste caso a deux, mas contrafeita) na mesa ao canto da esplanada, debulhava-se agora num pânico altamente cómico, embora pungente. Um grupo de clientes habituais, entre gajos do sexo feminino e gajas do sexo masculino, tripulados por um comité de proxenetas profissionais bestialmente iracundos (que a generosidade, tansice e proficiência da menina Liberdade é lendária e sustenta, de uma forma ou doutra, todo um mar de gente), organizava já uma manifestação espontânea, em protesto contra os recorrentes tormentos da desgraçada às patitas ínfimas - mas velozes e contumazes - da cruel microbesta. Um abaixo-assinado, daqueles tesos, circulava entre as abespinhadíssimas hostes, convocando ao encarceramento urgente e inediato da alimária opressora. Enquanto isso, a menina Liberdade lá ia imitando as ambulâncias, à medida que o Animal Feroz, num avanço sôfrego, depois de tomar de assalto uma das cadeiras, sondava agora, com indisfarçável gula e não menos fogoza arte, um acesso expedito à mesa apetecida.
Diante de tão grotesco espectáculo, onde o surrealismo e o rilhafoles se entrelaçavam em perfeita sincronia, toda a tasca, digo cibertasca, desatou num fartote de riso. Que redobrava a cada nova peripécia do circo chão.
-“Ai, socorro! Acudam! Lá vem ele, o Animal Feroz!...” – Uivava a menina aflita.
- “Que arrogância! É inaudito!... Irra, que besta... fascista!! Salazarento!!” – Barafustavam os manifestantes, tremebundos e noctiluzes de indignação cívica.
- “É um atentado flagrante ao estado de direito democrático! – Denunciava, em tom gosmoso, um dos proxenetas mais veteranos, às varandas, janelas e postigos circunridentes. Nunca esquecendo os terraços e águas-furtadas, claro está.
Nisto, recobrado do seu amuo entorpecente, arrima-se à porta o Dinossauro e, intrigado pela ridícula barafunda, pergunta:
- “Mas afinal o que é que se passa?...”
Responde-lhe o Caguinchas, com aquele seu dom de síntese característico:
- “São os chavalecos e as barbies, ou os barbies e as chavalontras, já não se percebe bem: querem mamar na Liberdade e o Animal Feroz não deixa!
- “Humm... – Fez o Dinossauro, pensativo. – Suspeito que só a águia Vitória poderá salvá-los.”
- “Sim –corroborei eu. – Ou, em último caso, o gato Tareco.
Porém, este meu último comentário foi abafado por um grande bruá que eclodira entretanto. Todo um clamor ufano e entusiástico sacudia agora os manifestantes. Murmúrios pariam interjeições. Até que, no auge da excitacinha, feito arauto à naçãozona, o decano dos alcaiotes, mais conhecido pelo Chupa-cabras da Marmeleira (ou Toucinho Semiótico II, para os amigos), cacarejou em truanesco delírio:
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