quarta-feira, junho 03, 2009

Prenúncios, mais que arquétipos



Retiro a descrição de Graves, por me parecer clara e sucinta:
"Salmoneu, filho ou neto de Éolo e Enarete, reinou durante algum tempo na Tessália antes de partir, à cabeça de uma colónia eólica, para os confins orientais da Élida, onde construiu a cidade de Salmone, não muito distante da nascente do rio Enipeu, afluente do Alfeu. Salmoneu era odiado por todos os seus súbditos, e levava tão longe a sua insolência e o seu orgulho real que chegou ao ponto de transferir os sacrifícios de Zeus para os seus próprios altares, anunciando a todo o povo que era Zeus. Costumava mesmo percorrer as ruas de Salmone, arrastando ruidosamente atrás do carro enormes caldeirões de bronze, presos por fortes cordões de couro, para simular o trovão de Zeus, e lançando para o ar tochas de carvalho em chamas; algumas destas, ao caírem, queimavam os infelizes súbditos, que eram forçados a tomá-las por relâmpagos. Um belo dia, Zeus puniu Salmoneu, desferindo um raio a sério, que não só o destruiu a ele, carro e tudo o mais, como também incendiou a cidade inteira."

Salmoneu, note-se, como todos os nomes míticos, não é um nome qualquer, ao acaso. Pelo contrário, possui uma significação precisa, um simbolismo exacto. Fusão de "saleyw" e "monos", pode ser traduzido como "agitado-sòmente", "pavão-sòmente" ou "sòmente-ruído/algazarra". Salmone, a cidade - a cidade fundada por Salmoneu, e forçada a venerá-lo como um Deus (por conseguinte, obrigada a tomar por verdade a mentira e a falsificação), indica a mesmíssima ideia: só agitação, só clamor/ruído, apenas pavoneio, exclusivo vácuo exorbitante.
Podemos imaginar Salmone, o reino de Salmoneu, como uma cidade mítica, perdida algures num passado remoto, por entre as brumas duma dimensão fabulosa. Mas também podemos entendê-la como um aviso, como um quadro intemporal, como algo que resultará necessariamente de algo, isto é, "se fizeres assim, é isto que acontece". Evidentemente, o ser humano tem a liberdade de fazer assim. O resultado subsequente, porém, é não se livrar das consequências que advirão fatalmente. Pensas que podes fugir às lágrimas agora, mas não te hás-de rir depois. Dir-se-ia, portanto, que a tão famosa e (ultimamente) tão celebrada liberdade do ser humano é devir escravo fatal dos efeitos dessa liberdade.
Mas que "assim" é este para o qual o mito nos admoesta? Abreviando no sermão, é a impiedade. Ora, a impiedade constitui uma das grandes - senão o maior - abismo da mitologia. A limite, coroa a hubris, significa-a no seu zénite. E o que é realmente a "impiedade"? Que significa, de facto, o ser ímpio?
Recorrendo ao vulgar dicionário, na actualidade, temos a impiedade como "falta de piedade", "acto ímpio", "blasfémia", "sacrilégio", "crueldade", etc; e ímpio como "aquele que não tem piedade ou compaixão", "desumano", "cruel". Pois bem, na mitologia grega a impiedade significa em primeiro lugar "falta de respeito pelo divino". Podendo ser, e sendo usualmente, uma falta individual, acarreta, todavia, e regra geral, sanções não apenas individuais mas colectivas. O ímpio atrai a ira dos deuses e do Cosmos (ou seja, da ordem eterna) não apenas sobre si mas também sobre a sua própria philos e polis, isto é, sobre a sua própria família e cidade. Como, de resto, podemos comprovar no mito em epígrafe: Zeus não apenas fulmina Salmoneu como arrasa toda a cidade.
O coro da Antígona reflecte sobre isso mesmo: "desde as mais remotas eras, uma lei eterna vigora: a cada excesso do homem logo sucede rapidamente a desventura". E o pior de todos os excessos reside na tolmas (a soberba)
Olhando ao nosso tempo, teremos que constatar a impiedade como algo, mais que normalizado, banalizado. Toda uma pretensa humanidade cada vez mais instruída, mecânica e iluminada ou duvida que haja qualquer espécie de divino, ou, embora proclamando-se fervorosa crente na doutrina x, y ou z, age como se não houvesse (ou lhe servisse apenas de instrumento a quaisquer ganas ou aleivosias). Não admira, pois, que neste nosso tempo, após uma evolução de séculos, impiedoso adquira contornos quase absolutos de "falta contra o humano", de crueldade ou desumanidade (tal qual aparece no dicionário). E, convenhamos, faz todo o sentido. Em nada escapa ao encadeamento previsto ancestralmente.
Como passo a explicar.
Numa frase muito simples: acham, Vossas digníssimas Excªs, meus raros e caros leitores, que um tipo que não respeita os deuses respeita os homens? Que quem não respeita o superior, vai depois, por certo miraculosamente, respeitar o igual? Pior: Que alguém que proclama "nada existe superior a mim! Eu sou o cume, o zénite, o vértice!", tem depois tendência, seguramente angélica, para ver igualdade em seu redor?
Ou será que a impiedade para com os deuses não resultará, necessariamente, na impiedade para com os homens? Ou será que a impiedade não acarreta, fatalmente, a desumanidade - que começa por ser uma falta de proporção para com o distinto e se transforma depois numa falta de proporção para com o semelhante? Que principia sendo um descaso do extraordinário e culmina num desprezo pelo comum?
Que faz Salmoneu? Imagina-se deus e, por inerência de funções, acha-se no pleno direito de flagelar os homens. Porque Salmoneu não se contenta em ser rei: cisma de ser deus. Não pretende fundar apenas uma cidade: arroga-se a fundação e a direcção de um cosmos, ou, no mínimo, dum mundo. Quer dizer, arvora-se prerrogativas sobre-humanas que se revelam, susequentemente, desumanas. Por outras palavras: a falsa sobre-humanidade é, na verdade, uma dupla desumanidade. Não sendo o homem nem o macaco de Deus nem o deus de outros homens, ao desmedir-se - quer exorbitando-se, quer nanificando os outros -, está a não ser homem duplamente. Os antigos tinham perfeita noção disto. Nós, aterrorizados com as constantes tochas que caem do céu, já não temos perfeita noção de coisa nenhuma.
Salmoneu e a sua Salmone representam-nos, projectam-nos lá das profundezas misteriosas do tempo. Prenunciam-nos. Os mitos, se calhar, são a eternidade a rir-se de nós.








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